quarta-feira, 1 de outubro de 2014

VIZINHOS

O relacionamento da tropa com os habitantes das Mabubas processou-se de forma natural. Ao fim de alguns meses estava absolutamente sedimentado conferindo àquela pequena urbe outra dimensão o que é o mesmo que dizer que os forasteiros fardados, resgatados às areias das terras do fim do mundo se adaptaram rapidamente ao novo ambiente, fundindo-se com o novo meio social num processo incontornável de criação de laços semelhantes aos quase esquecidos hábitos das aldeias de onde cada um provinha. Criaram-se novos hábitos e rotinas, lançaram-se raízes, cimentaram-se amizades e como acontece em qualquer comunidade, romperam-se outras como foi o caso do episódio que fez azedar irrevogavelmente relacionamentos recentes. Quer se queira quer não, o incidente com o tasqueiro Manolo, determinou que, entre outras coisas, alguns furriéis até então assíduos frequentadores do seu estaminé, se vissem obrigados a recorrer de novo à messe voltando, na falta da imperial, à cerveja bebida pela garrafa e a contentarem-se com a ementa do Morais aprimorada, se assim se pode dizer, pelas agora já mais bem treinadas habilidades do cozinheiro Lourenço. A lamentável demonstração de ciúmes do Manolo, manifestada com violentas vergastadas sobre as costas do Mota, não nos deixou outra alternativa senão abdicarmos dos acepipes da dona Benvinda que bom jeito dava quando a ementa da messe não agradava.
A verdade é que, tirando isso, o entrosamento da tropa com as pessoas se fez naturalmente, ajudado pelo facto de as instalações militares, sem muros ou ameias, estarem misturadas com as habitações civis. O ambiente de aldeia era visível a qualquer hora especialmente à noite quando a conversa animava a rua e se passavam serões esparramados no alpendre da messe, sentados no rebate da porta ou no degrau da casa de um vizinho, ou ainda, se fosse caso disso, em bancos ou cadeiras trazidas de propósito, diluindo o ambiente militar que, mal o sol se punha, quase desaparecia. Entretinha-se assim o serão aproveitando o fresco da noite enquanto o sono ou a hora da deita não chegava.
Foi graças a esta vizinhança que tive o ensejo de assistir à arte de cozinhar a célebre Muamba. Uma mulher, incontestavelmente com dedo para a cozinha, vinda dos lados do Sassa, costumava tratar da casa do lado; pelo menos a Dona Zulmira não prescindia dos seus dotes. O pátio traseiro entalado entre o da messe dos oficiais e a dos sargentos era o local utilizado para a função. Num pequeno pilão, esmagava as rosadas bagas de dendém colhidas pela manhã das palmeiras abundantes ao longo das margens do Rio Dande, despejava água a ferver sobre as bagas esmagadas e com uma perícia aprimorada pela longa experiência, retirava com uma colher a ténue película de óleo dourado que se formava à tona do líquido acastanhado da lavagem. Depois, juntava aquele óleo fresco e perfumado à molhanga onde mergulhava a galinha, os kiabos e demais temperos. Sei do que falo: a Dona Zulmira convidou-me um par de vezes para saborear o petisco e garanto que nunca mais voltei a comer coisa igual. Não sei se aquele adocicado e apetitoso sabor se devia à frescura do dendém, se à qualidade da galinha ou aos dotes da cozinheira. O mais provável era ser o resultado de todos eles. Só não me agradava a viscosidade do Kiabo e não me parecia nada apetitoso o aspecto estranho e peganhento do funge.
- Coma, olhe que melhor do que isso não vai encontrar em lado nenhum. Incitava a senhora.
Enfim, privilégios de que nem todos se podiam gabar de usufruir aos quais ainda se poderia acrescentar a fatia do bolo acabadinho de sair do forno. E isto sem contar com o jeitinho que deu à camisa que eu comprara em Luanda, apertando as costuras para que ficasse justa ao corpo como então se usava e ainda a trabalheira que teve em costurar os cortinados com que decorámos o quarto. Enfim, pouco faltou para me sentir adoptado como filho. Pelos vistos a senhora gostava de mim, talvez porque, de vez em quando, lhe arranjasse uma garrafita de licor, uma ou duas de vinho do Porto, uma ou outra de whisky encomendada pelo marido, o Sr Almeida, coisinhas que, vindas directamente da Manutenção Militar, sempre ficavam mais baratas.
É claro que estes agrados não vinham só da família do Sr. Almeida. A boa vizinhança era manifestada sem preconceitos e de diversas formas conforme a disponibilidade e a maneira de ser de cada um. Certo dia, eu e o Morais fomos convidados pela família que habitava a casa ao lado para uma ida à praia. Arrumámo-nos no apertado assento traseiro do novinho “NSU Prinz”, abrimos alas para dar lugar à pequenita filha do casal que se acomodou entre os dois e lá fomos passar o domingo à Barra do Dande. Não me lembro se foi ou não divertido, mas recordo que era um lugar aprazível e no restaurante abarracado que lá existia comia-se lagosta ao preço de carapau.
Não admira que aquele fim de comissão nas Mabubas tenha passado depressa. Com tantas mordomias, as saudades de casa foram ficando adormecidas. Por vezes quase esquecidas.