quarta-feira, 18 de junho de 2008

DE ÉVORA A SANTA MARGARIDA

O calor tórrido daquele verão alentejano, tornava penoso cada dia daqueles longos três meses de instrução, derretendo esforços, calcinando tudo e imprimindo um efeito retardador no tempo, à medida que paulatinamente iam sendo cimentadas amizades, conhecimentos e afinidades, primeiro passo para uma convivência de proximidade que comandaria, nos próximos dois anos e tal, a vivência deste punhado de homens recém-reunido.
Arrastava-se o tempo preenchido com frequentes marchas, corridas e exercícios vários, cumpridos a contra gosto, sob um sol sufocante e impiedoso, normal neste recanto lusíada, mas parecendo mais severo do que seria de esperar, percebendo-se o seu efeito no dia-a-dia de quem quer que por ali viva ou esteja de passagem, impondo de forma enfática uma drástica desaceleração de todo e qualquer movimento, secando tudo num afã impiedoso, com excepção do copioso suor dos corpos em permanente processo de desidratação. Se efectivamente África era tão quente e soalheira como constava dos compêndios de geografia, este era o melhor local para uma adequada adaptação, se é que isso alguma vez fora previsto nos gizados planos de instrução militar.
Foi ali, debaixo da inclemência do sol alentejano que a arte da guerra foi sendo ensinada em ritmo acelerado com transmissão de conhecimentos em catadupa, sob a forma de técnicas, práticas, procedimentos e toda uma panóplia de esquemas, tácticas, métodos evasivos, de defesa e ataque, num esgotante plano de instrução, repetido vezes sem conta a grupos formados em “U” ocupando cada um dos cantinhos menos castigados pelos implacáveis raios solares, numa tentativa nem sempre conseguida de transmitir a uns conhecimentos há pouco adquiridos por outros.
A liberdade chegava a conta gotas em cada fim de dia (para quem não estava de serviço) e com ela a oportunidade de, na tasca mais à mão ou numa esplanada da Praça do Giraldo, re-hidratar o corpo com meia dúzia de imperiais e regalar os olhos nas roliças moçoilas passantes, autênticos colírios para a vista de tropas que, num pavloviano salivar, sofriam com o jejum ditado pela distância das respectivas amadas deixadas em sossego (ou talvez não) na santa terrinha.
Com o fim da instrução, companhia formada, seguiu-se a derradeira etapa que finalmente nos tornaria aptos para o que desse e viesse na luta, que se queria feroz e sem tréguas, contra um inimigo distante e desconhecido. Designada por IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional) era destinada apenas a militares em vias de embarque para terras do ultramar, decorrendo esta espécie de ensaio geral no campo militar de Santa Margarida (perto de Abrantes) para onde havíamos sido transferidos numa autêntica demonstração de eficiência da logística de transportes.
Aqui, o efectivo foi engrossado com os especialistas vindos dos quatro cantos do território, também estes formados com a mesma rapidez e eficiência, em enfermeiros, mecânicos, vagomestres, cozinheiros, padeiros, radiotelegrafistas e técnicos de transmissões, já que, carpinteiros, pedreiros, barbeiros, pintores, electricistas, escriturários e contabilistas, homens honestos e alguns aldrabões, sisudos e foliões, esses compunham, mais uns do que outros, os cerca de 160 homens, metidos nesta aventura à força. Enfim, um conjunto de artífices que tornariam a 3441 auto-suficiente, no que toca às habilidades humanas que formam uma sociedade, verdadeira micro comunidade pronta a povoar qualquer deserto onde fosse largada, mas que ainda não tomara consciência do que a esperava.
Neste incaracterístico local de passagem efémera a caminho da guerra, plantado de barracões a fazer lembrar acampamentos militares exibidos em múltiplos filmes de acção, receberam-se as últimas dicas e executaram-se novos exercícios, desde acções na mata, a assaltos encenados com emboscadas e emboscados, uns fazendo de NT (nossas tropas) e outros de IN (o inimigo) exercitando e praticando o salto de viatura em andamento que, pelo menos para mim, acabava sempre com um joelho, uma perna ou outra parte do corpo ensanguentada, esfacelada ou pelo menos sem parte da pele, já que o solo não era relvado e os seixos abundavam, em resultado do permanente rodar, resvalar e derrapar dos Unimogs utilizados.
A sessão terminava com o salto do helicóptero que, para o efeito, pairava a alguns metros do solo, obrigando-nos a uma autêntica simulação de lançamento de tropas heli-transportadas para o assalto ao “objectivo”.
Completadas estas derradeiras semanas de exercício intenso entremeadas por idas ao enfermeiro que, de cada vez, nos perfurava a pele, injectando antídotos que nos dariam (deram) a resistência possível à chusma de maleitas e doenças tropicais a que ficaríamos expostos, com particular referência para a que nos imunizaria contra as picadas da mosca tsé-tsé, primeira pista objectiva relativamente ao local do território angolano onde seríamos largados, mas ainda não divulgado (a mosca tsé-tsé só enxameia certas partes do território). Aliás, só após a chegada a Luanda, seríamos informados do local que nos esperava, um recanto remoto do sueste angolano, muito a propósito apelidado de Terras-do-Fim-do-Mundo. Diziam alguns que tal sigilo era para nos proteger. Não sabendo pormenores, o inimigo estaria impossibilitado de armar uma qualquer emboscada aos "maçaricos" que chegavam. Se calhar era mesmo por isso. Durante o tempo que por ali vagueou, a 3441 nunca sofreu um desses ataques, contra os quais ensaiara, vezes sem conta, as técnicas reactivas.
Preparados para o que desse e viesse, chegou finalmente a tão esperada e prometida benesse final, para muitos a primeira oportunidade de voltar à terra após a incorporação. O direito a gozar dez dias de férias junto da família, incluía o pagamento do transporte para o local de naturalidade, quer fosse de comboio, camioneta, barco ou avião, tudo a expensas do exército.
O dia da partida chegou e com ele um verdadeiro reboliço nas casernas e camaratas, ocupando cada um num afã de arrumar malas e sacos, encafuando da melhor forma os parcos pertences de homens pouco habituados a tratar de roupas e demais preparos de viagem, tarefa que começava a tornar-se um hábito, acontecendo sempre que se mudava de local.
- Já me cheira a palha!
Gritava o Braga no meio da confusão, numa alusão aos apalpanços com que presentearia a namorada mal a tivesse a jeito.
Na camarata dos sargentos, a confusão não era menor. Apenas ligeiramente diferente, porque sempre havia mais peças de vestuário. Os praças não podiam nunca trajar à civil. Os sargentos e oficiais sim, quando não estavam em serviço.
- Vou apanhar o comboio das duas e com um bocado de sorte estarei amanhã em casa antes do almoço.
Anunciou o Silva.
- Se não houver problema nas ligações no Entroncamento e em Campanhã.
Emendou, sem querer lamentar-se por não viver mais perto.
- Cá por mim … penso estar em casa dentro de três horitas.
Retorquiu o Ramirez, confiante na capacidade e potência do seu Fiat 6oo, carinhosamente arrumado no parque destinado aos mais abastados e com o qual previa vencer os quilómetros que nos separavam de Lisboa.
Alguém alvitrou que umas cervejolas, ajudariam a encurtar o tempo e a distância.
- Cerveja, não sei … mas tenho ali uma garrafita de Brandy que pode dar uma ajuda.
Disse o Silva, numa clara atitude de concordância com a solução alcoólica para minimizar o efeito temporal do obstáculo.
- O ideal, é beberes a garrafa toda de uma vez.
Desafiou o Duarte em tom provocatório, no intervalo de duas chupadelas, naquele seu trejeito beijoqueiro com que sofregamente atacava a boquilha do cigarro que cuidava de manter sempre aceso.
- Se pensas que não sou capaz, estás muito enganado.
Respondeu em tom de desafio.
E, num crescendo estúpido de … não és capaz … sou pois … queres apostar, a teima foi arrematada. O Silva beberia a garrafa de Brandy, de uma assentada, sem nada em troca, apenas pelo desafio, naquela recorrente tendência da juventude de não medir as consequências de palavras e actos impensados.
Desenroscou a tampa, levou a garrafa à boca e sem a mínima hesitação engoliu todo o líquido, num glu glu ritmado, até não restar gota.
- Vês, como fui capaz! Vangloriou-se da façanha.
A aparente lucidez exibida, cessou de repente. O corpo atarracado do Silva foi repentinamente acometido de um frenesim louco. Atirava-se contra tudo o que o rodeava, cabeceava violentamente paredes e armários, ao mesmo tempo que soltava gritos roucos de autêntica demência. A loucura acabou em pouco mais de dois minutos, com um par de cabeçadas no velho e frágil roupeiro que compunha a escassa mobília da camarata, destruindo-o parcialmente. Caiu desamparado no chão e não mais se mexeu, em evidente coma alcoólico.
Fez-se um breve silêncio de imediato quebrado por alguém que exclamou:
- Não há problema! … respira!
Numa altura em que todos aguardavam ansiosamente o transporte que nos levaria ao comboio, gerou-se uma certa apreensão.
- E agora?
Diz o ditado que "ao menino e ao borracho, põe sempre Deus a mão por baixo”. No caso do Silva, valeu-lhe o facto de existir um pequeno grupo de praças que, residindo para os mesmos lados, já tinham mais ou menos combinado fazer a viagem em conjunto. Um segurou-o pelos sovacos, outro pelas pernas, os restantes carregaram os pertences e assim o levaram inanimado. Contaram-nos depois, já em pleno alto mar, que o Silva dormiu o caminho todo e nem acordou quando o comboio parou na derradeira estação. Quanto ao efeito … foi drástico. Penso que nunca mais ninguém o viu beber uma só gota de álcool. Deve ter sido o único da companhia que nunca se embebedou durante os dois longos anos em que nos mantivemos juntos por terras de além-mar.

segunda-feira, 16 de junho de 2008

ADEUS, ATÉ AO MEU REGRESSO!

Foi num domingo a noite.
-Até pr’a semana!Dois beijos na mãe, um abraço ao pai, mais apertado desta vez, um carolo no caçula e, ala, porta fora, atordoado com as saudades que só mataria daí a mais de um ano de distância.
Saltei a meia dúzia de degraus para a rua e, sem revirar o olhar para a moldura da porta onde eu sabia estarem a absorver uma última imagem, entrei no carro que me deu boleia até Mangualde onde apanharia o comboio para uma viagem, cuja incógnita do regresso, esmagaria os meus pais, caso soubessem o meu novo destino. Lágrimas, não; mas um vazio opressivo teimou em me acompanhar toda a viagem. Ficara alguma coisa por fazer, ou, no mínimo, por dizer. Esta injustiça viria a perseguir-me toda a vida.
Aquele
-Até p’ra a semana!
foi a melhor mentira que encontrei para os livrar da dor que eu já sentia há semanas.
Estava mobilizado para Angola e ninguém sabia, excepto uns quantos amigos de peito: a Ivone, o Jorge, o Vítor Cravo e a namorada da ocasião. Não era notícia que agradasse dar, fosse a quem fosse, muito menos à família. Souberam-no através de um postal, enviado do Funchal, onde o Vera Cruz atracou a caminho de Luanda. O que escrevi, que a coragem e o aperto d’alma não dava para mais, foi curto, abreviando, em desenhos de má caligrafia, pressurosos e envergonhados, os dizeres da fuga e do silêncio que há dois dias me consumia
“Vou a caminho de Angola. Depois telefono. Beijos”.
Nunca telefonei.
Aerogramava, como todos, e, sempre em curtas, evasivas e saudosas mensagens.
A folia contínua no barco não permitia que as ideias fluíssem com serenidade, comendo-nos o raciocínio e fazendo pairar, sobre todos nós, a dose de inconsciência necessária ao sonho de aventuras heróicas numa terra e numa guerra de que apenas conhecíamos o nome. Neste vazio doce e involuntário, ocupava-se o tempo com coisas para encher coisa nenhuma: a viagem de barco (como vomitei durante dia e meio!), o tempo passado na jogatina da lerpa (jogo oficial dos militares no Ultramar), os copos (que iam diluindo, tal como a distância, a temporã saudade dos mais próximos), a euforia juvenil do guerrilheiro (que escondia mágoas à espera do tempo de carpir), as caras dos militares da 3441 em rápido processo de conhecimento (e que durante dois anos seriam a nossa família mais chegada), a expectativa de ver África pela primeira vez (cheia de perigos das doenças tropicais, feras e terroristas, pensávamos nós) e o medo do desconhecido. E logo ali se foram definindo e forjando as amizades sólidas, que o futuro veio a confirmar, nos palpites de ocasião sobre a compra, naquele supermercado ambulante, de máquinas fotográficas Cannon, relógios Orient e outros artigos “livres de impostos”, com que os Sargentos da Marinha nos comiam os últimos escudos do subsídio de mobilização (7.000 escudos, que fortuna, naquele tempo!).
E, assim, naquele balouçar de sonolência e enjoo, e, na visão surpreendente do voo dos peixes voadores, que planavam umas dezenas de metros acompanhando a linha d’água roubando a glória às gaivotas e albatrozes, se foram encurtando as milhas que nos aproximavam do destino.
Luanda, a Baía de Luanda, apareceu difusamente no horizonte e uma curiosidade quase sobrenatural cometeu o milagre de silenciar centenas de bocas e paralisar os gestos dolentes, aferroados pelo calor tropical, trazendo-nos à realidade e ao receio de, finalmente, a grande aventura das nossas vidas, começar a delinear-se naquelas curvas suaves da terra que se avistava ao longe e que crescia lentamente aos nossos olhos.
Atracámos, carregados de sacos e recordações. Desfilámos, inchados de coragem e escondendo os receios que nos assaltavam em catadupa. Encomboiaram-nos para o Grafanil e tudo foi novidade, para mim, na mais pequena e espantosa viajem da minha vida: os miúdos, milhares, numa infindável corrente humana que corria ao longo da linha gritando, para estupor de todos nós; aquele calor abafado e húmido que nos enchia o peito e secava a boca; a cor barrenta da terra e o cheiro forte e adocicado do ar, criando novas sensações olfactivas ainda hoje presentes e reconhecíveis nos sonhos em que viajo pelo passado. Esta marca, a primeira verdadeiramente africana, colou-se, até hoje á minha pele e permanece, violenta e real, em todos os dias da minha vida.
Ensanduichados nas barracas de campanha, distribuíram-nos as G-3 (o lema era: come com ela, dorme com ela, e, se fores às putas, leva-a contigo, porque sempre atacas com duas armas!) justificando, assim, a nossa mobilização para esta campanha guerreira.
Numa coluna gigante, formada por camiões de gado, nos quais nós fazíamos do dito, galgámos quilómetros a caminho de Nova Lisboa, tendo, como destino final, o Kuando-Kubango, Leste de Angola.
Vinte e cinco tostões, dois e quinhentos, custaram os abacaxis que alambazámos pelo caminho, fazendo companhia e complemento às rações de combate com que nos haviam despachado para esta viagem, ao quase interior de Angola e que terminaria na cidade do Luso, após uma memorável e nunca olvidada viagem por caminho de ferro, numa composição com mais de quinhentos metros de comprimento puxada por duas locomotivas a vapor, uma à frente e outra à retaguarda, antecedidas por um vagão rebenta-minas.
Angola, ia-nos comendo a alma com novos medos até aí desconhecidos. Travávamos conhecimento com dimensões e sentimentos fora dos nossos parâmetros cognitivos: aquelas terras sem fim e a perder de vista, as florestas intermináveis e densas, as distâncias, que o cansaço tornava maiores, as conversas em surdina sobre coisas até aí nunca faladas, as justificações e razões díspares, cautelosas, mas já tardias. Ao fundo do túnel das nossas vidas neste novo mundo, o vazio do futuro, esse buraco nunca tapado e sempre presente.
Na cidade do Luso, a estadia, foi como uma miragem: breve e fugaz. Os Nord-Atlas, uma espécie de elefantes com asas, encarregaram-se de nos colocar no centro do nosso novo Universo: N’Riquinha, a poucos quilómetros da fronteira com a Zâmbia.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Toque a reunir

Após o fim da instrução e uma vez graduados no posto de Cabo Miliciano, espécie de limbo na hierarquia militar, inventado pelos estrategas de então para justificar o pagamento de um “pré” miserável a um sargento, vinha a colocação numa unidade o mais distante possível dos locais cuja preferência dávamos a conhecer, de forma criteriosa, por inscrição em impresso devidamente homologado.
Sendo natural da Madeira, inscrevi em primeiro e segundo lugares, unidades instaladas nas cidades do Funchal e Lisboa, colocando Caldas da Rainha em terceiro lugar, apenas porque, para além de já conhecer o local – fiz ali a recruta ‑ tinha a vantagem de, estando perto de Lisboa, poder usufruir da oportunidade para, aproveitando folgas, ir fazendo umas cadeiras do curso abruptamente interrompido.
Sem surpresa, fui colocado no RI-16 em Évora e destacado para Caçadores 6 na longínqua e então, para mim, desconhecida cidade de Castelo Branco, constituindo um sinal de que a mobilização para África era certa e iminente. É que, a colocação em locais tão díspares dos escolhidos, por regra o mais longe possível, assegurava o corte com os elos familiares e de amizade que compõem os afectos próprios do ser humano, constituindo como um primeiro tirocínio de habituação à longa ausência que se avizinhava.
Para já, no BC-6, foi o primeiro impacto com uma realidade diferente, o que significa a passagem da condição de cumpridor de ordens, muitas vezes ditadas por quem nem sequer sabia da arte de mandar, para uma outra, em que, mutatis mutandis, se fazia exactamente aquilo que antes, em surdina se condenava, num quase exercício de imitação, impondo a homens recém-chegados a esta etapa da vida dos jovens de então, um conjunto de ordens e contra ordens, regras, estratégias e afins, entremeadas com exercícios físicos diários, mandados executar sem consciência das capacidades do corpo humano ou do malefício que daí poderia resultar para a integridade física de cada um.
É que, pelo menos naquele tempo, era entendido que seis meses era tempo mais do que suficiente para transformar gente recém saída da adolescência em militares graduados, colocando-lhes sobre os ombros uma responsabilidade do tamanho do mundo, sem que disso, sequer, se apercebessem.
E foi assim, que os novos recrutas daquela unidade serviram na perfeição como cobaias para testar a minha capacidade de ensinar a recém-adquirida panóplia de conhecimentos, técnicas e minudências da arte de uma guerra onde nunca tinha estado, devidamente condimentadas com as qualidades de comando necessárias ao bom desempenho da missão de mandar.
A já esperada notícia chegou, comunicada de forma peculiar pelo Cabo Miliciano Leitão, então colocado no aconchego da secretaria da unidade, a quem os quase 18 meses que já levava de tropa o colocavam entre os “velhinhos” que tinham vindo a escapar de uma mobilização para África.
- Foste mobilizado!
Gritou de longe, esbracejando na minha direcção.
- Quem? Eu?
Retorqui com idiota e redundante pergunta.
Sim! E eu também. Vamos na mesma companhia … para Angola!
E continuou, no típico desabafo que caracterizava o linguajar da tropa.
- F…., lixaram-me! Estou quase a ser promovido a Furriel e já não esperava bater com os costados em África.
Com efeito, pelo menos até então, era quase certo livrar-se de um passeio pelo ultramar, se a mobilização não chegasse antes de completados 18 meses de vida militar, altura em que, finalmente, eram substituídas as divisas de Cabo Miliciano, pelas de Furriel. No caso do Leitão, apanharam-no no limite. Mais umas semanitas e com a promoção talvez conseguisse escapar.
Na semana seguinte, munidos da guia de marcha e necessária requisição de transporte, rumámos à nossa unidade de origem. O Leitão, aproveitando ao máximo a proximidade da terra, saiu no dia seguinte. Eu, aproveitei a borla do comboio e meti-me ao caminho na companhia de uns quantos soldados com o mesmo destino, uma boa parte dos quais, naturais de Cabo Verde, integrando um contingente de novos recursos, em cumprimento de uma nova ideia do regime – Incorporar nas fileiras, naturais de uma colónia que passou de receptora a fornecedora de contingentes militares. Esta nova ideia gerou entre os Cabo-verdianos um sentimento de revolta, com algumas consequências desagradáveis, que vieram dar algum sal e animação à estada no Regimento de Infantaria de Évora.
E ali nos juntámos todos, reunidos para “formar companhia”, prontos para conhecer aqueles que passariam a ser, nos dois anos em que andaríamos por terras longínquas, superiores e subalternos, amigos e companheiros, uns mandando, outros obedecendo e alguns refilando, confinados a alguns metros quadrados delimitados por uma frágil cerca de arame farpado, numa vivência diária cujos contornos, na verdade, ninguém conhecia ou fazia a mínima ideia do que seria. A mim, nem me ocorreu pensar nisso. Quanto ao Leitão, como prémio e recepção de boas vindas, foi informado que, no dia seguinte, estaria de sargento-de-dia.

terça-feira, 10 de junho de 2008

Fala de Capitão...

Tinha 23 anos quando me apresentei em Évora para formar a Companhia de Caçadores 3441.
Chegado a meio da tarde, estacionei o meu Datsun 1200 verde alface à porta do RI-16, cumprimentei a sentinela e entrei pelo gabinete do oficial de dia adentro. Após as burocracias do costume, acompanhou-me ao primeiro andar. Pelo caminho foi-me prevenindo da extrema rigidez do Comandante do Regimento quanto ao atavio. Fiz-me uma leitura e algumas correcções. A última, instintiva, foi passar com os dedos pelos sobrolhos, procurando alinhar os pelos.
Depois de anunciado, fui presente ao Comandante do Regimento para a apresentação protocolar.
Depois de uma tremenda palada e um sonoro bater de calcanhares (havia sido prevenido que o nosso Comandante gostava das coisas assim...), proferi um firme "Apresenta-se o Tenente Miliciano nº 13376769, colocado nesta unidade" e levei a primeira "piçada" militar, ainda não tinha dado mais de dois passos no interior do gabinete: tinha um botão quase a desabotoar-se...
Prometi que não voltaria a acontecer.
Olhou-me com inusitada curiosidade. Fechou o rosto numa impenetrável máscara militar. Percorreu-me de alto a baixo. Parou na minha cara de menino, acentuada pelo escanhoado perfurante até à raíz dos pelos. Respirou fundo, recostou-se resignado (pareceu-me..) e fez um curto silêncio.
Fiquei um tanto perplexo cogitando para mim próprio: será que falhei nalgum elemento protocolar? Bem, não devo ter que me ajoelhar... Ou será que não estou à distância e ângulo certos relativo ao Cmdt, conforme por certo deverá estar prescrito nas NEP's?
Num salto, seguido de postura militarizada um pouco diferente da habitual (punhos cerrados e braços estendidos e meio arqueados para trás), colocou-se em pé e deixou sair em tom firme: está apresentado.
Mantive-me em sentido, claramente intimidado pela atmosfera criada, e sem saber bem que atitude tomar.
Voltou a sentar-se e olhou-me de novo. Eu continuava imóvel e nem sei se respirava. O ambiente criado, a postura do Cmdt e o vozeirão (que me pareceu mais teatral que natural) pesavam sobre os meus 23 aninhos recentemente conquistados.
Deixou passar mais uns breves momentos, como se usufruindo de um poder que quase me poderia enviar para a frente de um pelotão de fuzilamento (a invectiva dura e quase fulminante do botão quase desabotoado ainda me burilava nos ouvidos), determinou, qual César num breve acesso de boa disposição: podes descansar...!
Afastei os calcanhares, cruzei as mãos atrás das costas, tudo com determinação copiada da postura recente do Cmdt.
Em Roma sê romano. E respirei, devagarinho... O silêncio estabelecido a isso me aconselhava.
Baixou os olhos e leu os meus papéis. Teve um leve esgar de sorriso, pareceu-me. O semblante militar nem sempre permitia ler sinais de emoções civis naturais.
Tens 23 anos...?!
Sim, meu Cmdt. - atrevi-me a responder sem saber se era uma pergunta se era uma constatação.
Pois! É o que consta aqui. Já estiveste na guerra?
Quatro meses nos Dembos.
Onde?
Mucondo, Stª Eulália.
Quem era o Cmdt de Batalhão?
Tenente-coronel Duarte Silva.
Hum... Cavaleiro. Foste atacado?
Um ataque e uma mina anti pessoal.
Morreu alguém?
Três pessoas.
Pessoas como? Militares ou inimigos?
Três elementos da população que acompanhavam os guerrilheiros.
Então, três inimigos...!
...!
Tens consciência da responsabilidade que vais assumir? Tens consciência do que te pede a Pátria?
Julgo que sim, meu Cmdt. - proferi com consciência da pouca convicção com que o afirmava.
Julgas, ou tens a certeza?
Tenho alguma consciência da responsabilidade, mas poucas certezas daquilo que me espera.
Olhou-me em silêncio durante o tempo suficiente para que eu admitisse que me ia cair uma tempestade em cima. Quem sabe se não me daria por inapto, tendo em conta as minhas poucas certezas e menores convicções. A do botão ainda não se tinha desvanecido.
Retomou aos papéis por longos segundos. O semblante continuava impenetrável. O calor já intenso daquele verão de 71 fazia-se sentir no rosto do Cmdt em forma de gotículas de suor que amiudadamente limpava ora com a mão, ora com um lenço imaculadamente branco. Por fim rompeu abruptamente aquele silêncio e atirou:
Gostas de vinho branco ou tinto?
Embatuquei. O ambiente deve ter-me transtornado de tal forma que já não entendo bem aquilo que ouço, pensei. Pedir para repetir? Desaconselhável. Rompeu-me a ideia de que um "nim" talvez resolvesse, ou me safasse.
É-me indiferente, meu Cmdt. - balbuciei receoso.
Indiferente como? Ou gostas de branco, ou de tinto.
Bem, afinal tinha ouvido correctamente.
Por vezes vai bem um tinto e outras gosto de um branco bem fresco. No Algarve, donde sou natural, no calor do Verão sabe bem um...
... branco bem fresco, não é? É desse mesmo que eu gosto. Esta noite jantas comigo - rematou o Cmdt levantando-se e encaminhando-se para a porta, não sem antes se postar bem à minha frente, naquela nova postura para mim, esperando mais uma tremenda de uma palada que me esmerei por satiafazer. No momento acrescentou:
A partir de hoje a posição de sentido será assim - disse mantendo aquela nova posição por alguns momentos, esperando obviamente que eu o seguisse.
Tomei a postura, após a continência.
Corrigiu-me.
Punhos mais cerrados e posição mais agressiva. E a partir de hoje vais envergar sempre uma camisola preta debaixo do fardamento. É um distintivo de comando que caracteriza esta unidade.
Desfazendo a postura indicou-me a porta.
Lá fora, o oficial de dia que me havia conduzido até à porta, esperava-me.
Então, como correu?
Não sei. Normal, acho eu.
Não te beliscou com o fardamento?
Um sacana de um botão quase a desabotoar-se que eu tenho a certeza que tinha abotoado, conforme me preveniste.
Só o botão? Estás com sorte. Os atacadores dos meus sapatos não estavam atados de forma parelha...

sexta-feira, 6 de junho de 2008

O REPTO

Caro Amigo:
A Companhia de Caçadores 3441 (Angola 1971-1974) deu origem a 4 livros, já publicados, e escritos por participantes na mesma: o capitão Cabrita (2), o alferes Aranha e o cabo Joaquim Sousa.
Esta circunstância, talvez única, de uma pequena unidade militar portuguesa da Guerra do Ultramar dar origem a tanta literatura, onde pontuam as experiências, os anseios, as desilusões, as lágrimas e as alegrias, o sofrimento, as derrotas e vitórias de cada um, fez-me surgir uma ideia, que, de momento, não passa disso mesmo: lançar um desafio a todos os militares da 3441. Um desafio que, a ser aceite, dará origem, pela primeira vez (que eu saiba), a um acontecimento na história da literatura: um livro escrito por dezenas de protagonistas, descrevendo as mesmas situações e, por isso, vistas por personalidades diferentes. No final, resultaria um livro, escrito por muitas mãos, numa sinfonia de sentimentos comuns e contradições, desnudando almas que jamais se libertaram do passado e da juventude vivida longe da família e amigos, em condições que nunca tinham sonhado.
No final, se a tanto ajudasse "o engenho e a arte" publicar-se-ia outro livro, com um autor apenas: COMPANHIA DE CAÇADORES 3441.
Levar a cabo esta original iniciativa, apenas será possível com a colaboração de um número substancial de participantes. Cada um colocaria neste blog os seus posts depois de fornecido o mote para o capítulo que estivesse na calha, por exemplo: a viagem de Lisboa a N'Riquinha; a primeira sensação de África; o mato; as operações; o dia a dia na caserna; as histórias de amores adiados; etc, etc. Tudo visto e relatado por uma multiplicidade de homens, todos na casa dos "quase 60" e a trinta e muitos anos de distância.
Para que tal fosse possível, todos os interessados teriam acesso livre ao blog, fornecendo eu, o username e a password.
Este primeiro passo, terá continuidade se encontrar da vossa parte, a vontade de colaborar e com regras que em tempo e em conjunto, definiremos.
No fundo, reviveríamos com muito mais frequência os nossos encontros anuais.
Como primeiro acto, sugiro a todos os que acederem a este blog, que passem a informação aos camaradas de armas que estiverem ao seu alcance, devendo cada um, pedir, através dos comentários e indicando um endereço electrónico, os códigos para participar.
A ideia é simples, e, por mail ou através do blog, ajustaríamos cada vez melhor a forma de se levar a cabo esta ideia. Por isso, peço sugestões, sendo certo que não será fácil a empreitada.