sábado, 16 de janeiro de 2010

O povo da N'Riquinha

A população autóctone da N’Riquinha era maioritariamente constituída por GANGUELAS. Era uma das etnias mais atrasadas de todo o território angolano, o que era visível na sua forma de vida, crenças, hábitos e temores. Tinham pavor de máquinas fotográficas. A fotografia impressa era, para eles, a alma que a máquina demoníaca lhes havia roubado.
Era uma sociedade patriarcal na qual a mulher era apenas força de trabalho e instrumento de procriação. Mas eram pacíficos, simpáticos, afáveis no trato e reconheciam a atenção que lhes dispensávamos, se bem que com muita subserviência.
À luz dos estereótipos europeus, nenhum deles podia ser considerado bonito. De acordo com os nossos padrões de beleza, a adolescente (Kafeco) mais bonita do aldeamento estava muito longe de ser considerada esbelta. O corpo das mulheres, perdia todas as curvas em pouco tempo, tornando-se rapidamente envelhecido.
Mas sabem, ao fim de algum tempo, uma meia dúzia de entre as mais novas já nos pareciam belezas de passerelle… e apetecíveis.
E não deixava de ser estranha a forma como conseguiam fazer tudo, carregando os filhos às costas. Até sexo.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

O Ataque à LDP

Por: Egídio Cardoso
Os três meses passados no Rivungo amenizaram de alguma forma o desconforto de uma comissão a levar a cabo num local que nos parecia o mais remoto à face da terra. A sensação de abandono que senti quando ali aportei foi sendo mitigada pelos poucos atractivos que fui descobrindo.
A proximidade do rio, as amizades que se foram cimentando e a habituação paulatina ao local, construíram um novo modo de vida que minimizava as agruras da missão espinhosa que nos atirou para aquele pedaço inóspito da imensa África selvagem.
Hoje, passado tanto tempo, continuo convencido de que as privações por que passei integram certamente uma parte importante das razões que me levaram a dar valor a pequenas insignificâncias, fossem elas as que resultavam das histórias do Administrador Litenda ou dos misteriosos silêncios dos dois agentes da DGS, passando pela boa disposição do Chefe França, acompanhando o sargento Rodrigues da Marinha na sua interminável luta com a cerveja. Depois, eram as partidas de futebol, os serões ocupados em renhidas disputas de monopólio ou intermináveis jogos de king e tudo o mais que se inventava para passar o tempo.
Até um arremedo de programa radiofónico se ensaiou, com recurso a duas pequenas colunas de som que o Vilela desencantou não sei onde e que a sua habilidade para a electrónica fez com que funcionassem. Reparou ainda um velho gira discos avariado que se encontrou nas instalações da marinha e durante algum tempo difundiu-se música pelo aquartelamento. O disco é que era sempre o mesmo que ali não havia onde comprar outros.
A relação com o pessoal do Destacamento de Marinha preenchia boa parte dos momentos agradáveis, a começar pela forma como cada um dos seus elementos se relacionou com a tropa recém-chegada. Foi uma agradável convivência que despertou e fortaleceu amizades, a começar no seu comandante e acabando no marinheiro mais novo - o Ruço - que, com a sua cara de menino, ganhara a alcunha devido à farta e desalinhada cabeleira loura.
Com esta malta, passei algumas aventuras inesquecíveis, desde as incursões de caça, levadas a cabo por quatro inconscientes armados em aventureiros: eu, o Silva, um dos marinheiros (de quem infelizmente não recordo o nome) e o condutor Comandos com um jeito muito especial para fazer coisas impensáveis ao volante do Unimog. Ainda hoje me arrepio quando me lembro de algumas.
Saíamos sempre muito cedo em direcção às chanas do Caxoxo. Aí, quando o sol ainda mal despontava no horizonte, recrutava-se um guia e partíamos à aventura, avançando muito para além de onde terminava a picada, perseguindo a caça numa correria louca através da terra de ninguém.
No fim, com duas ou três peças de caça carregadas, procurava-se o caminho de regresso sem saber para que lado seguir. Era aí que a importância do guia se revelava crucial. Como se tivesse um mapa genético acoplado, avaliava o local, determinava o rumo e com a mão esticada ia indicando o caminho que nos levava direitinhos ao Caxoxo.
Mas também eram aventuras as explorações que se faziam aos meandros do Rio Cuando e aos seus recantos labirínticos, montados no pequeno bote utilizado nos patrulhamentos mais curtos.
Só não deu para andar na lancha. A LDP 210 do Rivungo, de fundo chato e proa basculante, como todas as Lanchas de Desembarque, era a razão da existência de marinheiros em local tão impróprio. Equipada com uma velha metralhadora pesada OERLIKON, tinha por missão o patrulhamento rio abaixo até às imediações do Luiana.
Mas, a manutenção desta simbiose de laços de amizade e rotinas de vivência começou a ser ameaçada.
Primeiro, a comissão do sargento Rodrigues chegou ao fim e regressou a Luanda, deixando o Chefe França sem competidor à altura. Depois, o meu grupo voltou à Neriquinha sendo substituído pelo do Alferes Correia. O Tenente da Marinha foi substituído pelo guarda-marinha Valério que, desde logo, se incompatibilizou com os homens que se supunha dever comandar.
Quando, algum tempo depois, voltei ao Rivungo em missão de reabastecimento, as guerras entre o pessoal da Marinha e o seu novo comandante, tinham atingido o ponto de ruptura, degradando irremediavelmente o ambiente de camaradagem e os tempos bem passados que conhecia.
Mas parece que a quezília não iria durar. Diziam-me que a comissão da maior parte do grupo estava no fim. Dentro de pouco tempo regressariam a Luanda e o Valério que se entendesse com a nova guarnição que estava para chegar.
Não presenciei a história. Os poucos pormenores chegaram-me à Neriquinha, já um pouco requentados. Parece que o Valério, num arremedo de fúria e quando já pouco faltava para o fim da comissão daquele punhado de homens, decidiu levar a cabo uma operação de patrulhamento até ao limite sul da área navegável do Rio.
- Foi só para chatear. Disseram.
Começaram os preparativos, afinaram o motor, abasteceram de combustível, reuniram as rações de combate, olearam e limparam as armas, carregaram munições e o Jorge tratou com desvelo da eficaz Oerlikon. Parece que os turras temiam os efeitos devastadores da metralhadora. Disparava rajadas de projécteis de grosso calibre que explodiam por impacto, varrendo tudo o que aparecesse pela frente.
Com tudo a postos e com uma guarnição contrariada, a LDP começou a descer o Rio, lentamente, em marcha ziguezagueante, aproveitando a corrente, seguindo o curso do rio no seu passeio pela chana imensa até desaparecer das vistas engolida pelos caniçais.
A progressão sinuosa seguiu, navegando lentamente, que mais depressa não podia ser, até onde o Valério entendeu, bem lá para baixo, até que decidiu ordenar as manobras que deram início à viagem de regresso, encetando o mesmo percurso, mas agora rio acima, exigindo um maior esforço do motor para vencer a resistência da corrente.
Durante todo o percurso, havia um único local onde se formava uma espécie de ravina sobre o Rio. Talvez o único barranco em toda aquela região. Era um sítio perigoso, propício a uma emboscada.
Nada aconteceu aquando da ida. Mas, no regresso, de repente, naquele exacto local, caiu sobre a lancha uma saraivada de balas disparadas em rajadas contínuas por um grupo de guerrilheiros emboscado entre as árvores, exactamente por cima do local onde a lancha navegava. Provavelmente já ali estavam, à coca, quando ainda desciam o rio, mas disso ninguém se apercebera.
No meio da confusão, enquanto cada um procurava reagir, teria sido o Ruço, de arma em punho, o primeiro a sair para o convés.
Foi apanhado pelo fogo inimigo que o projectou borda fora, ao mesmo tempo que o Jorge fazia a Oerlikon cumprir a sua missão dirigindo uma resposta eficaz aos atacantes. O efeito devastador das balas explosivas da velha metralhadora, pôs de imediato os turras em debandada, cessando a fuzilaria.
Gerou-se um silêncio pesado e por algum tempo ninguém saiu do local onde estava, ao mesmo tempo que iam tomando consciência do acontecido. Fora tudo tão rápido que nem se aperceberam que, com maior ou menor gravidade, quase todos haviam sofrido mazelas: balas de raspão, arranhões da refrega, uma ou outra entorse, umas quantas nódoas negras, enfim, ferimentos uns mais ligeiros do que outros, mas sem incapacitar ninguém. Apenas o Jorge, por qualquer razão, nem um arranhão sofreu.
Contudo, o Ruço não aparecia. Alguém disse que o vira ser atingido pela rajada e cuspido borda fora.
Enquanto o Jorge agarrado à Orlikon mantendo-a apontada à mata, não tirava os olhos do que quer que se movesse, os outros deitaram-se à procura do companheiro desaparecido. Voltaram para trás, navegaram para jusante depois para montante, revolveram desesperadamente os caniços de um lado e outro. Mas o corpo não aparecia em lado nenhum.
Chamaram, gritaram, podia ter nadado para a margem, ficado atascado na chana pantanosa. Revolveram de novo as margens. Mas nada, em vão. Do Ruço nem sinal.
Interrogaram-se:
Que fazer?
Continuar ali?
Mergulhar?
Mas onde?
E para ver o quê no meio das escuras águas?
Conferenciaram, discutiram, praguejaram e decidiram:
Sair dali nunca! O Ruço, ou o seu corpo, teria de aparecer.
Durante algumas horas por ali andaram. Podia ser que estivesse inconsciente e quando voltasse a si responderia aos chamamentos incessantes.
Não sei quanto tempo por ali andaram. Penso que passaram a noite no local e voltaram às buscas no dia seguinte. Mas o facto é que o Ruço nunca apareceu.
Regressaram cabisbaixos, desolados, amargurados, derrotados, revoltados com o Valério. No momento, foi quem levou com a culpa toda. Afinal fora ele que forçara a operação.
Só falei com eles algum tempo depois, aquando da sua passagem pela Neriqinha a caminho de Luanda, finda a comissão no Cuando.
Aquele grupo de fuzileiros navais que eu conhecera activo, alegre e brincalhão, caminhava cabisbaixo, atravessando a parada em direcção à messe, uns enfaixados, um ou dois de muletas, outros apenas com uns pensos na cabeça, nos braços ou nas pernas, alguns de chinelas, que o pé ferido não tolerava sapatos. Enfim, um cenário desolador.
Ainda hoje retenho a imagem de um grupo que fez parte de alguns bons momentos que passei no Rivungo. Com ar de derrotados, pouco falavam e recusavam dar pormenores sobre a tragédia. Se calhar não tinham pormenores para contar ou então a tristeza misturada com a revolta impedia-os de falar.
Claramente o Ruço fazia ali falta.