A população da Neriquinha não era diferente da de qualquer outro dos kimbos das redondezas. Contudo, se atentarmos bem à sua composição e razões que levaram à formação, naquele local, de um aglomerado populacional, identificam-se características muito particulares. Não obstante as semelhanças, insisto na ideia de que a Neriquinha era, em muitos aspectos, diferente dos demais.
Com efeito, a dezena de kimbos então existentes naquela vasta área que vai de Mavinga ao Chipundo representava aglomerados populacionais que ali se fixaram pelas diversas razões que levam o ser humano a sedentarizar-se criando raízes naqueles exactos locais e não noutros. Era ali que encontravam tudo o que precisavam e, por razões que a antropologia melhor saberá explicar, era também onde se sentiam bem.Mas o aglomerado populacional da Neriquinha e apenas este, era subtilmente diferente. Aquele lugar não era sítio que atraísse população. E quando penso nisso, mais uma vez sou levado a concluir que fomos obrigados a viver dezoito meses num local tão inóspito que nem a população autóctone encontrava razões naturais para ali se fixar, a não ser que, pelas circunstâncias, a isso se visse obrigada.
É verdade, o kimbo da Neriquinha nasceu e cresceu em consequência da guerra. Razões ditadas pela estratégia militar determinarem ser aquele o local adequado para a implantação das instalações militares: primeiro um pequeno aglomerado de tendas de lona, material que, ao longo do tempo, foi sendo progressivamente substituído por paredes de tijolo e cobertura de chapas de zinco. Dois barracões pré-fabricados completaram aquele arremedo de urbe aprisionada numa frágil cerca de arame farpado que, delimitando o perímetro, parecia querer conferir segurança ao local.
A população, essa, acossada pela guerra que lhes alterou o modo de vida e correspondentes rotinas, foi-se juntando do outro lado da cerca, acoitando-se à sombra de uma segurança de proximidade e, em simultâneo, beneficiando das comodidades inerentes à vizinhança da tropa. Formou-se assim um kimbo que foi crescendo com o tempo e atraindo novos habitantes, congregando no mesmo meio gente de etnias diferentes.
Quando chegámos àquele bocado semidesértico das terras do fim do mundo, a população da Neriquinha era mais ou menos estável e tinha estrutura idêntica à de qualquer aglomerado populacional da zona, ficando demonstrado que os costumes e modus vivendi eram os mesmos. E isso via-se em tudo: na construção das suas habitações e materiais que usavam, nos hábitos alimentares, nos temores e superstições, na forma como se organizavam e socializavam, nas hierarquias tribais típicas de uma sociedade agrária iminentemente paternalista (talvez devesse dizer machista) e ainda nos direitos, nos deveres e demais normas não escritas que regiam as suas condutas, o seu quotidiano e o resto.
Enfim, uma sociedade regulada segundo cânones ancestrais cujos ditames, gravados na cabeça dos velhos, deixavam transparecer uma sociedade bem mais complexa e organizada do que aquela que uma análise superficial permitia revelar. A autoridade civil máxima descansava nos ombros do Soba, secundado pelos Sékulos, não obstante a autoridade real, fosse qual fosse a coisa a regular, pertencesse ao comandante da companhia ali aquartelada.
A população do Cuando Cubango era constituída por uns quantos grupos étnicos. Não sei bem quantos, mas eram mais do que se podia esperar poderem existir numa das maiores mas seguramente menos populosas províncias angolanas. Os Ganguelas integravam o maior dos grupos. Na verdade a ideia que se tinha é de que, excluindo os Bosquimanos com traços fisionómicos claramente identificáveis e os Camachi, de tez menos carregada, todos os demais seriam Ganguelas. Mas não era assim. Lembro-me dos Lutchaze e, em menor número, dos Bundas, dos Luvale e dos Luimbi entre outros que não recordo. O facto é que cada grupo falava o seu próprio dialecto, embora tenha a ideia de que o Ganguela seria o dialecto falado senão por todos, pelo menos pela maioria.
Isto significa que, entender aquela gente, implicava ser-se poliglota em dialectos das terras do fim do mundo e isso era impossível. E como muitos deles pouco falavam o português a comunicação tornava-se complicada.
O Lupale distinguia-se dos demais porque, para além de falar fluentemente o português, dominava ainda uns quantos dialectos. E isso, conjugado com as habilidades de um autêntico relações públicas, tornava-o num homem importante. E insinuante, acrescente-se. Na verdade, o Lupale era simpático, popular e desenvolto.
Para já, falar fluentemente o português e conseguir fazer a retroversão para a linguagem daqueles gentes não era coisa pouca, nem de somenos importância. Por ali, apenas alguns GE’s, uns tantos mais expeditos e os putos que cresceram ao lado da tropa, eram capazes de se expressar de forma a se fazerem entender
Do nosso lado, só ao fim de muito tempo se começou a decorar uma meia dúzia de termos do estranho linguajar daquelas gentes mas compreensivelmente insuficientes para estabelecer uma conversação por mais minimalista que fosse. Ainda me lembro que, durante muito tempo, tinha como certo que o puto que me lavava a roupa dava pelo nome de João Muhala Cassumbi. Só muito tempo depois é que me apercebi que o João apenas se chamava assim: João. Os epítetos Muhala e Cassumbi não eram senão uma brincadeira do seu amigo Manjolo, o outro garoto que com ele repartia a lavagem da roupa na camarata dos sargentos. Os dois nomes, que julgara serem sobrenome ou apelido, apenas significavam qualquer coisa como galinha que esgaravata no chão, uma espécie de provocação inofensiva, sem maldade ou azedume, de um garoto para outro.
O facto é que, quando ali chegámos, o Lupale apareceu-nos como o intérprete oficial, uma espécie de ministro dos negócios estrangeiros do kimbo. A importância do seu papel no seio daquela comunidade era um facto. E isso ficou bem claro exactamente quando uma delegação do estado-maior do kimbo, capitaneada pelo Soba e secundada pelos Sékulos, veio apresentar as boas vindas ao capitão. A solenidade que conferiram ao acto era bem patente na indumentária de gala com que se apresentaram e na imprescindível intermediação do Lupale que, sacando da sua erudição, fez jus à sua indiscutível competência de intérprete, transmitindo as boas vindas ao comandante recém-chegado e aproveitando ainda o ensejo para fazer umas quantas petições e uma ou duas queixas, verbalizadas como correspondendo à tradução literal dos indecifráveis monossílabos tartamudeados por aqueles altos representantes da população local, escassos vocábulos que o Lupale transformava num discurso coerente e bem elaborado, deixando no ar a dúvida se seria uma fiel tradução ou antes o pensar livre do intérprete que acrescentava, por sua conta e risco, uns quantos pontos ao discurso.
Não há dúvida, o Lupale tinha veia de político e demonstrava-o a todo o momento na forma como se comportava ou como se relacionava connosco, quer estejamos a falar do simples soldado, de um oficial ou das altas patentes. E isso viu-se pouco tempo depois quando, no Natal de 1971 o Governador de Serpa Pinto resolveu fazer uma visita de cortesia àquele remoto local da província que governava. Estando presentes, por obrigação formal, o Soba e seus Sékulos e atendendo a que não falavam a língua de Camões, mais uma vez o Lupale teve oportunidade de brilhar, desempenhando com redobrada competência o seu papel de intérprete, mais para transmitir o que dizia o Soba e menos ou quase nunca para lhe devolver a resposta. É…, cada vez mais me convenço que o Lupale traduzia mais o que lhe ia cabeça e menos o que diziam os regedores do kimbo.
Finalmente, não posso deixar passar em claro a fleuma deste homem profusamente demonstrada na estória que o Pedro Cabrita contou aqui, neste mesmo blog, cuja leitura recomendo vivamente e da qual me atrevo a reproduzir uma singela passagem. Relembro apenas que o Capitão foi instado, passe o exagero do termo, a participar numa espécie de tribunal tribal que se reunira para dirimir um litígio de natureza familiar ou seja, uma espécie de julgamento onde um colectivo sui generis deveria apreciar e decidir, aplicando as normas de um direito consuetudinário plasmado em códigos sem existência física.
No caso, dirimia-se uma contenda familiar, um casamento que não
tinha corrido bem. A noiva fugira com outro e a família do noivo exigia a
devolução dos bens que constituíra o alambamento entregue à família da noiva conforme
ditavam as leis. O problema é que tais bens haviam sido desbaratados e já nada
existia que pudesse ser devolvido e, assim sendo, diziam os códigos, a família
da noiva fugitiva deveria levar uma carga de pancada como forma de suprir a
impossibilidade de devolução dos bens.O Lupale, esse, repartia-se entre o litigante activo e acalorado e
o interprete que procurava transmitir ao capitão os argumentos das partes, que
de uma forma geral se resumiam à exigência das vergastadas por parte da família
do noivo e à discordância aflita da família da noiva que não estava disponível
para sofrer na pele as consequências de actos condenáveis que, contudo, haviam sido
cometidos por outrem.
O capitão, lá se esforçou para entender os argumentos das partes,
por entre a tradução de pé de orelha que o Lupale lhe ia fazendo e,
constrangido pelo facto de ter de desempenhar o papel, lá advogou a final, a
favor da ré, explicando que entendia não
poder a família ser responsabilizada pelos actos da mulher adúltera, num discurso
pausado por forma a possibilitar a sua tradução, que se presume transmitida com
rigor pelo Lupale, a julgar pelos sorrisos dos familiares da noiva em contraponto
com os resmungos dos do noivo abandonado.
No dia seguinte, a horas decentes, o Lupale apresentou-se junto do
gabinete do capitão. Postura humilde,
quase a pedir desculpa pelo atrevimento, vinha anunciar que os anciãos ainda
não tinham chegado a uma decisão definitiva. Contudo, tudo apontava para que
seguissem a opinião do capitão.