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Mas o aglomerado populacional da Neriquinha e apenas este, era subtilmente diferente. Aquele lugar não era sítio que atraísse população. E quando penso nisso, mais uma vez sou levado a concluir que fomos obrigados a viver dezoito meses num local tão inóspito que nem a população autóctone encontrava razões naturais para ali se fixar, a não ser que, pelas circunstâncias, a isso se visse obrigada.
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É verdade, o kimbo da Neriquinha nasceu e cresceu em consequência da guerra. Razões ditadas pela estratégia militar determinarem ser aquele o local adequado para a implantação das instalações militares: primeiro um pequeno aglomerado de tendas de lona, material que, ao longo do tempo, foi sendo progressivamente substituído por paredes de tijolo e cobertura de chapas de zinco. Dois barracões pré-fabricados completaram aquele arremedo de urbe aprisionada numa frágil cerca de arame farpado que, delimitando o perímetro, parecia querer conferir segurança ao local.
A população, essa, acossada pela guerra que lhes alterou o modo de vida e correspondentes rotinas, foi-se juntando do outro lado da cerca, acoitando-se à sombra de uma segurança de proximidade e, em simultâneo, beneficiando das comodidades inerentes à vizinhança da tropa. Formou-se assim um kimbo que foi crescendo com o tempo e atraindo novos habitantes, congregando no mesmo meio gente de etnias diferentes.
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Enfim, uma sociedade regulada segundo cânones ancestrais cujos ditames, gravados na cabeça dos velhos, deixavam transparecer uma sociedade bem mais complexa e organizada do que aquela que uma análise superficial permitia revelar. A autoridade civil máxima descansava nos ombros do Soba, secundado pelos Sékulos, não obstante a autoridade real, fosse qual fosse a coisa a regular, pertencesse ao comandante da companhia ali aquartelada.
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Isto significa que, entender aquela gente, implicava ser-se poliglota em dialectos das terras do fim do mundo e isso era impossível. E como muitos deles pouco falavam o português a comunicação tornava-se complicada.
O Lupale distinguia-se dos demais porque, para além de falar fluentemente o português, dominava ainda uns quantos dialectos. E isso, conjugado com as habilidades de um autêntico relações públicas, tornava-o num homem importante. E insinuante, acrescente-se. Na verdade, o Lupale era simpático, popular e desenvolto.
Para já, falar fluentemente o português e conseguir fazer a retroversão para a linguagem daqueles gentes não era coisa pouca, nem de somenos importância. Por ali, apenas alguns GE’s, uns tantos mais expeditos e os putos que cresceram ao lado da tropa, eram capazes de se expressar de forma a se fazerem entender
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O facto é que, quando ali chegámos, o Lupale apareceu-nos como o intérprete oficial, uma espécie de ministro dos negócios estrangeiros do kimbo. A importância do seu papel no seio daquela comunidade era um facto. E isso ficou bem claro exactamente quando uma delegação do estado-maior do kimbo, capitaneada pelo Soba e secundada pelos Sékulos, veio apresentar as boas vindas ao capitão. A solenidade que conferiram ao acto era bem patente na indumentária de gala com que se apresentaram e na imprescindível intermediação do Lupale que, sacando da sua erudição, fez jus à sua indiscutível competência de intérprete, transmitindo as boas vindas ao comandante recém-chegado e aproveitando ainda o ensejo para fazer umas quantas petições e uma ou duas queixas, verbalizadas como correspondendo à tradução literal dos indecifráveis monossílabos tartamudeados por aqueles altos representantes da população local, escassos vocábulos que o Lupale transformava num discurso coerente e bem elaborado, deixando no ar a dúvida se seria uma fiel tradução ou antes o pensar livre do intérprete que acrescentava, por sua conta e risco, uns quantos pontos ao discurso.
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Finalmente, não posso deixar passar em claro a fleuma deste homem profusamente demonstrada na estória que o Pedro Cabrita contou aqui, neste mesmo blog, cuja leitura recomendo vivamente e da qual me atrevo a reproduzir uma singela passagem. Relembro apenas que o Capitão foi instado, passe o exagero do termo, a participar numa espécie de tribunal tribal que se reunira para dirimir um litígio de natureza familiar ou seja, uma espécie de julgamento onde um colectivo sui generis deveria apreciar e decidir, aplicando as normas de um direito consuetudinário plasmado em códigos sem existência física.
No caso, dirimia-se uma contenda familiar, um casamento que não
tinha corrido bem. A noiva fugira com outro e a família do noivo exigia a
devolução dos bens que constituíra o alambamento entregue à família da noiva conforme
ditavam as leis. O problema é que tais bens haviam sido desbaratados e já nada
existia que pudesse ser devolvido e, assim sendo, diziam os códigos, a família
da noiva fugitiva deveria levar uma carga de pancada como forma de suprir a
impossibilidade de devolução dos bens.O Lupale, esse, repartia-se entre o litigante activo e acalorado e
o interprete que procurava transmitir ao capitão os argumentos das partes, que
de uma forma geral se resumiam à exigência das vergastadas por parte da família
do noivo e à discordância aflita da família da noiva que não estava disponível
para sofrer na pele as consequências de actos condenáveis que, contudo, haviam sido
cometidos por outrem.
O capitão, lá se esforçou para entender os argumentos das partes,
por entre a tradução de pé de orelha que o Lupale lhe ia fazendo e,
constrangido pelo facto de ter de desempenhar o papel, lá advogou a final, a
favor da ré, explicando que entendia não
poder a família ser responsabilizada pelos actos da mulher adúltera, num discurso
pausado por forma a possibilitar a sua tradução, que se presume transmitida com
rigor pelo Lupale, a julgar pelos sorrisos dos familiares da noiva em contraponto
com os resmungos dos do noivo abandonado.
No dia seguinte, a horas decentes, o Lupale apresentou-se junto do
gabinete do capitão. Postura humilde,
quase a pedir desculpa pelo atrevimento, vinha anunciar que os anciãos ainda
não tinham chegado a uma decisão definitiva. Contudo, tudo apontava para que
seguissem a opinião do capitão.