Levantei-me, fresco e quase recuperado. Vesti a farda de
serviço, passei pela messe, engoli um naco de qualquer coisa a título de
pequeno-almoço e cuidei de saber das ordens que regeriam o novo dia das nossas
vidas. Coisa inútil e desnecessária, já que, na tropa, espera-se que alguém dê
as ordens, não se anda, feito otário, à procura delas. Mas, como é óbvio,
precisava saber se tinha ou não liberdade para matar a curiosidade e descobrir tudo
o que por ali havia, especialmente a barragem de que tanto ouvira falar.
Mabubas era assim
como um bocadinho do céu no meio daquele imenso território. Existia e crescera por
efeito da barragem hidroeléctrica que dominava tudo o que antes fora uma parte
do extenso vale do rio Dande e albergava ainda a Companhia de Cerâmica de
Angola (CCA). A primeira, produzia electricidade e a segunda, loiça sanitária,
fábrica que, se não era a única do género, era seguramente a maior da então
província de Angola. Consequentemente, a maioria dos habitantes daquela
interessante comunidade ou eram funcionários da barragem ou técnicos e
operários da fábrica de cerâmica e correspondentes famílias. Um restaurante,
uma mercearia e uma sala de cinema, compunham o resto, coisas que, onde vive
gente, acabam sempre por aparecer.
A parte interessante foi confirmar que ali não havia
quartel. Pelo menos daqueles a que sempre nos habituámos, muralhados e dotados
de guaritas e porta de armas com sentinela e tudo, como era o caso do quartel
do Caxito ali bem pertinho, cuja fortificação me chamara a atenção quando por
lá passámos no dia anterior a caminho deste nosso novo recanto. Estranhei de
facto e não era para menos, até então, habituara-me a que a tropa, estivesse
onde estivesse, ficava sempre confinada a uma área específica, normalmente
delimitada por muros ou arame farpado. Mas não ali, nas Mabubas, as instalações
da tropa estavam dispersas por toda a localidade à mistura com tudo o resto, ocupando
as casas, os barracões, as arrecadações e armazéns disponíveis.
Da estrada que, proveniente do Caxito, seguia para norte em
direcção a Quicabo e a Nambuangongo, nascia o troço de estrada descendente que
penetrava localidade adentro. Interrompido à entrada por uma cancela
basculante, espécie de checkpoint para
controlo de quem chegava, transformava-se, a partir daí, na rua central que, dividindo
a urbe ao meio se prolongava até morrer à entrada do paredão da barragem. Quem entrava,
logo a seguir ao posto de controlo, encontrava, do lado esquerdo, o barracão do
cinema e logo abaixo, à direita, o bar restaurante. A partir daí, uma correnteza
de casas de cada lado dava aquele ar aconchegante e familiar de aldeia. Do lado
direito, construídas ao comprido, acompanhando a rua e com telhado comum,
contavam-se quatro casas cada uma com o seu alpendre; a primeira era, de facto,
a residência de um trabalhador da cerâmica e sua família. Contudo, entre esta e
a do Sr. Almeida, funcionário da barragem, ficava a messe de sargentos,
ali metida no meio. A messe de oficiais ocupava a quarta e última da
correnteza, com vista para a parada, frente ao edifício do comando. No lado
esquerdo da rua, emparceirando com as outras, quatro casas idênticas compunham
a moradia de outras tantas famílias.
Esta agradável anarquia, contrária ao rigor e organização de
todas as instalações militares que conheci, verificava-se em tudo o mais; frente
ao edifício do comando, no outro lado da praça, nascia uma escadaria que levava
à cantina e, nas imediações, a camarata dos soldados, a cozinha e o refeitório.
Noutro espaço, do lado esquerdo quem desce, ocupando outro barracão, ficavam as
oficinas auto e no lado direito, o posto médico dava início a uma correnteza de
moradias, uma das quais passou a ser residência do capitão e outra a do médico,
conferindo dignidade às correspondentes funções. Finalmente, depois de uma
curva e ao fim de uma suave descida a rua terminava dando lugar à passagem
sobre o paredão da barragem, que levava ao outro lado.
Venci os últimos metros da rua e sem pressa atravessei o
paredão admirando aquele enorme lençol d´água. Instintivamente dirigi-me para o
pequeno miradouro que, no outro lado, prometendo uma vista privilegiada sobre a
paisagem, parecia chamar quem chegava.
Subi, e de lá de cima estendi a vista sobre a paisagem
envolvente. A montante, a enorme albufeira reflectia, qual espelho, os raios do
sol faiscando múltiplas cores na superfície reluzente. A jusante, lá ao fundo, após
se despenharem pelo declive do paredão, as águas corriam saltitantes ao longo
do vale, aquietando-se hesitantes aqui e ali, para depois seguirem o curso
natural do rio numa obediência submissa em direcção ao mar.
Fiquei por ali sem consciência do tempo e esquecido de tudo o mais. Apostei comigo mesmo que os maus bocados tinham definitivamente ficado nas terras-do-fim-do-mundo. Naquele momento, convenci-me de que, por fim, a sorte nos sorria; as Mabubas podiam não ser o paraíso na terra, mas perante a lembrança do degredo da Neriquinha, quase o parecia.
Fiquei por ali sem consciência do tempo e esquecido de tudo o mais. Apostei comigo mesmo que os maus bocados tinham definitivamente ficado nas terras-do-fim-do-mundo. Naquele momento, convenci-me de que, por fim, a sorte nos sorria; as Mabubas podiam não ser o paraíso na terra, mas perante a lembrança do degredo da Neriquinha, quase o parecia.