sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Descobrindo as Mabubas

Quando retornei à minha novel e confortável acomodação, depois daquele jantar de reconciliação com a civilização, estendi-me ao comprido e só acordei no dia seguinte o sol ia já bem alto. Dormi que nem um justo que é como quem diz, com força. O corpo assim o exigiu e nem sequer esbocei o mínimo gesto para o contrariar. E para quê fazê-lo se o efeito devastador dos últimos cinco dias passados naquela interminável e esgotante viagem à torreira do sol, sem ter dormido de jeito uma só noite, exigia reparação adequada? O banho revigorante, o lauto jantar e o conforto fofo da cama compuseram o lenitivo final. Se a tudo isto juntarmos o sossego e o recato do quarto que as portadas das janelas fechadas protegiam da luminosidade daquele sol sempre madrugador e a ausência do normal rebuliço de uma camarata, compreende-se melhor o despertar tardio, pelo menos fora daquilo que era suposto serem os horários militares. O facto é que, sem nada que viesse interromper o sono, o descanso acabou por se prolongar para além da hora regulamentar. Na Neriquinha isso seria impossível; dormindo todos na exígua camarata, acordar cedo era coisa perfeitamente natural e inevitável, por oposição a estas novas instalações que, localizadas fora do núcleo central da urbe, garantiam sossego total.
Levantei-me, fresco e quase recuperado. Vesti a farda de serviço, passei pela messe, engoli um naco de qualquer coisa a título de pequeno-almoço e cuidei de saber das ordens que regeriam o novo dia das nossas vidas. Coisa inútil e desnecessária, já que, na tropa, espera-se que alguém dê as ordens, não se anda, feito otário, à procura delas. Mas, como é óbvio, precisava saber se tinha ou não liberdade para matar a curiosidade e descobrir tudo o que por ali havia, especialmente a barragem de que tanto ouvira falar.
Mabubas era assim como um bocadinho do céu no meio daquele imenso território. Existia e crescera por efeito da barragem hidroeléctrica que dominava tudo o que antes fora uma parte do extenso vale do rio Dande e albergava ainda a Companhia de Cerâmica de Angola (CCA). A primeira, produzia electricidade e a segunda, loiça sanitária, fábrica que, se não era a única do género, era seguramente a maior da então província de Angola. Consequentemente, a maioria dos habitantes daquela interessante comunidade ou eram funcionários da barragem ou técnicos e operários da fábrica de cerâmica e correspondentes famílias. Um restaurante, uma mercearia e uma sala de cinema, compunham o resto, coisas que, onde vive gente, acabam sempre por aparecer.
A parte interessante foi confirmar que ali não havia quartel. Pelo menos daqueles a que sempre nos habituámos, muralhados e dotados de guaritas e porta de armas com sentinela e tudo, como era o caso do quartel do Caxito ali bem pertinho, cuja fortificação me chamara a atenção quando por lá passámos no dia anterior a caminho deste nosso novo recanto. Estranhei de facto e não era para menos, até então, habituara-me a que a tropa, estivesse onde estivesse, ficava sempre confinada a uma área específica, normalmente delimitada por muros ou arame farpado. Mas não ali, nas Mabubas, as instalações da tropa estavam dispersas por toda a localidade à mistura com tudo o resto, ocupando as casas, os barracões, as arrecadações e armazéns disponíveis.
Da estrada que, proveniente do Caxito, seguia para norte em direcção a Quicabo e a Nambuangongo, nascia o troço de estrada descendente que penetrava localidade adentro. Interrompido à entrada por uma cancela basculante, espécie de checkpoint para controlo de quem chegava, transformava-se, a partir daí, na rua central que, dividindo a urbe ao meio se prolongava até morrer à entrada do paredão da barragem. Quem entrava, logo a seguir ao posto de controlo, encontrava, do lado esquerdo, o barracão do cinema e logo abaixo, à direita, o bar restaurante. A partir daí, uma correnteza de casas de cada lado dava aquele ar aconchegante e familiar de aldeia. Do lado direito, construídas ao comprido, acompanhando a rua e com telhado comum, contavam-se quatro casas cada uma com o seu alpendre; a primeira era, de facto, a residência de um trabalhador da cerâmica e sua família. Contudo, entre esta e a do Sr. Almeida, funcionário da barragem, ficava a messe de sargentos, ali metida no meio. A messe de oficiais ocupava a quarta e última da correnteza, com vista para a parada, frente ao edifício do comando. No lado esquerdo da rua, emparceirando com as outras, quatro casas idênticas compunham a moradia de outras tantas famílias.
Esta agradável anarquia, contrária ao rigor e organização de todas as instalações militares que conheci, verificava-se em tudo o mais; frente ao edifício do comando, no outro lado da praça, nascia uma escadaria que levava à cantina e, nas imediações, a camarata dos soldados, a cozinha e o refeitório. Noutro espaço, do lado esquerdo quem desce, ocupando outro barracão, ficavam as oficinas auto e no lado direito, o posto médico dava início a uma correnteza de moradias, uma das quais passou a ser residência do capitão e outra a do médico, conferindo dignidade às correspondentes funções. Finalmente, depois de uma curva e ao fim de uma suave descida a rua terminava dando lugar à passagem sobre o paredão da barragem, que levava ao outro lado.
Venci os últimos metros da rua e sem pressa atravessei o paredão admirando aquele enorme lençol d´água. Instintivamente dirigi-me para o pequeno miradouro que, no outro lado, prometendo uma vista privilegiada sobre a paisagem, parecia chamar quem chegava.
Subi, e de lá de cima estendi a vista sobre a paisagem envolvente. A montante, a enorme albufeira reflectia, qual espelho, os raios do sol faiscando múltiplas cores na superfície reluzente. A jusante, lá ao fundo, após se despenharem pelo declive do paredão, as águas corriam saltitantes ao longo do vale, aquietando-se hesitantes aqui e ali, para depois seguirem o curso natural do rio numa obediência submissa em direcção ao mar.
Fiquei por ali sem consciência do tempo e esquecido de tudo o mais. Apostei comigo mesmo que os maus bocados tinham definitivamente ficado nas terras-do-fim-do-mundo. Naquele momento, convenci-me de que, por fim, a sorte nos sorria; as Mabubas podiam não ser o paraíso na terra, mas perante a lembrança do degredo da Neriquinha, quase o parecia.