O Cuando-Cubango, sendo uma das regiões mais extensas do país, é provavelmente aquela que dispõe de maior área livre da influência humana; pelo menos era. A proximidade do deserto, a savana imensa com paisagens a perder de vista, a ausência de estradas ou outras infra-estruturas e a imensidão de planuras de areia num cenário semidesértico entremeado por sucessivas chanas pantanosas e traiçoeiras, constituem óbices ao conforto a que o ser humano se habituou.
Esta imensidão natural é assim morada de uma fauna variada e numerosa que ali habita passeando-se em manadas sem destino usufruindo da erva viçosa que cresce quer alimentada por chuvas abundantes quer, na sua ausência, subsistindo na humidade perene das chanas, longe dos olhares indiscretos de humanos predadores, impedidos de se aproximarem pelas condições naturais do seu habitat.
Contudo, enquanto que para a vida selvagem tudo são rosas, para nós, europeus destacados em missão de soberania, tudo era hostil, não só pela acção dos guerrilheiros que nos combatiam mas também pela dureza dos elementos e variadas pragas que atacavam as nossas fragilidades.
Hordas de mosquitos vorazes sugavam-nos o sangue inoculando-nos viroses e maleitas várias. Percevejos habitavam as nossas camas colando-se à pele e perturbando o sono. Um sem fim de insectos desconhecidos, uns menos inofensivos que outros, passeavam-se por entre as ensanchas da roupa, irritando a pele e muitas vezes infiltrando-se sob a derme, provocando micoses e infecções várias, por vezes graves. Bandos de moscas, umas maiores que outras, zumbiam à nossa volta não se intimidando com os safanões com que desesperadamente as tentávamos afugentar e a temida tsé tsé, abundante na região, ameaçava-nos de morte com a invisível doença do sono. E tudo isto debaixo de um sol impiedoso que ampliava o sofrimento e tudo ressequia fazendo com que qualquer movimento levantasse nuvens de pó que se colava à pele suada, pegajosa e vulnerável ao mosquitame que eclodia em frenesim de milhões de larvas incubados pelas abundantes águas que impedidas de circular pela ausência de declives, se aquietavam transformando a savana em pântanos dispostos em sucessão irregular e labiríntica.
Assim, não era de estranhar que a nossa companhia tivesse direito a médico privativo.
O Dr. Lacerda era o alferes médico da companhia, integrando o seu corpo de oficiais, com a missão de olhar pela nossa saúde e, de caminho, cuidar das maleitas da população que, verdade seja dita, não acreditando em modernices, preferia a medicina tradicional, carregada de misticismo e baseada mais em crenças ancestrais do que na eficácia de alguns remédios naturais de preparação caseira.
Sob a batuta do Dr. Lacerda, a equipa de enfermagem chefiada pelo Furriel Pinto, ia cuidando da malta, quer combatendo os males que afligiam ora uns ora outros, quer ministrando medicação preventiva. E o depósito de medicamentos estava bem fornecido, já que, pelo menos neste aspecto, o exército não olhava a meios, estando disponível um sem número de comprimidos, pomadas, tinturas e unguentos, xaropes e analgésicos, desde a morfina injectável à simples aspirina, sem esquecer os cremes repelentes os pós anti-alérgicos os aerosóis anestesiantes e os complementos vitamínicos entre outros remédios. Para mim, que nada percebia daquilo, cheguei a julgar que ali, nos confins da savana, naquela espécie de acampamento com ar de provisório, longe de tudo e de todos, existia um stock mais completo que o de farmácia em cidade.
E eram eficazes. Lembro-me que o Merthiolate tinha um efeito miraculoso em cortes, arranhões e esfoladelas. Ardia que se fartava mas anulava qualquer foco de infecção e sarava pequenas feridas de um dia para o outro; o soluto Whitefield (acho que é assim que se escreve), queimava num ápice qualquer erupção cutânea e o talco antimicótico, aplicado nas dobras da pele, fazia desaparecer as comichões e irritações que a humidade sudorífica agravava.
A medicina preventiva era preocupação do furriel enfermeiro. Todos os dias, ao almoço, o Pinto dispunha, junto ao prato de cada um, dois ou três comprimidos: O vermelhinho, que visava compensar as insuficiências vitamínicas e minerais da alimentação pobre e sensaborona; o branquinho que continha a imprescindível resoquina contra o paludismo; e mais um outro que não me lembro para quê. E até havia a dose cavalar de vitamina B11, ou lá o que era, injectável, que se dizia fornecer tudo o que o organismo precisava. Pelo menos o Palúdico, na sua permanente mania das doenças e fraquezas, era cliente assíduo.
Mas, verdade seja dita, a grande preocupação do nosso escasso e improvisado corpo clínico centrava-se no combate ao paludismo e à temível doença do sono. A luta contra o paludismo era diária através de medicação preventiva. Só em caso de contágio, quando a febre subia aos quarenta graus, se justificava a via endovenosa com a injecção de doses cavalares de resoquina. Já a doença do sono exigia a inoculação periódica de uma vacina que era pressuposto imunizar-nos contra uma ameaça invisível que se dizia extremamente perigosa, apenas se manifestando quando já era tarde de mais, o que justificava que, de tempos em tempos, o pessoal se colocasse em bicha pirilau à frente da enfermaria, obrigando os enfermeiros ao trabalho extra de todos vacinar sem excepção.
Por mim e creio que para quase todos, mais picadela, menos picadela, já não fazia diferença. Há muito que nos habituáramos a essa rotina, tanto mais que se preferia isso ao desconforto e à perigosidade da doença.
Mas não o Comandos. Se havia coisa de que tinha medo era de agulhas. E medo é pouco. Tinha pavor, coisa que me fazia confusão se se tiver em conta que o homem era um dos condutores mais destemidos da companhia. Aliás, a alcunha de comandos não foi ganha por acaso. Frequentou esse curso de tropas especiais e quem o faz não é propriamente medricas. E eu posso atestar que assim era. Com aquele homem ao volante passei momentos de pura aventura, a elevar a adrenalina ao máximo por aquelas matas desconhecidas, alguns dignos de um filme. Não, medo era coisa que, no Comandos, só existia em doses razoáveis. Humanas, para ser mais exacto. Sim, porque gente sem medo não há.
Mas o homem tinha medo de agulhas, de tal maneira que ao aperceber-se da aproximação do dia aprazado para a inoculação colectiva, entrava em stress e os suores frios não o largavam. Creio que até perdia o apetite.
Quando chegava o dia aprazado o descontrolo era total, especialmente porque tinha consciência que não havia volta a dar. Tinha que ser. Mas o que tinha que ser, no caso, parecia não o acalmar. Andava de um lado para o outro, metia-se na fila para logo dar o lugar ao que se lhe seguia. Saía da fila, sentava-se, passava a mão pela cabeça, certamente num exercício de auto mentalização. Sabia que teria de ser, agora ou mais tarde. E não era tanto pelo facto de a isso ser obrigado, porque se assim fosse, se calhar arriscaria a desobediência. Era mais porque tinha consciência de que, se não fosse vacinado, corria sério risco de contrair uma doença que o poderia matar. E isso atormentava-o ainda mais. Era como se tivesse de escolher entre cortar o dedo da mão esquerda ou o da direita. De repente, tomou a decisão:
- Agora sou eu! Exclamou aproximando-se do enfermeiro.
- Mas não quero no braço. Tem de ser no rabo. Sentenciou.
Justificava que seria menos doloroso do que no braço e ficava fora de vistas. Contudo, o problema não era a picada, nem propriamente a dor, que essa era inferior à das centenas de picadas de mosquitos que já sentira. O problema era mesmo psicológico.
Desceu os calções, esticou-se sobre o banco corrido de rabo para o ar, fechou os olhos com força, rodeou a cabeça com os braços na vã tentativa de se alhear, retesou-se todo e esperou a ferroada.
Mal sentiu o contacto frio do algodão que desinfectava a zona a picar, retesou os músculos num movimento bem visível, cerrou ainda mais os olhos até quase desaparecerem e esperou. O enfermeiro preparou a agulha, como de costume separada da seringa e num movimento brusco, procurando aliviar o tormento do Comandos, desferiu o golpe que pensou ser suficiente para penetrar o músculo em esforço.
Para espanto de todos, a agulha saltou como se tivesse atingido borracha dura. Os músculos do Comandos, tensos até ao limite, impediram que penetrasse e, ao cair no chão, perdeu as propriedades assépticas ficando inutilizada. Seria preciso outra agulha, mas o estado do homem não se alterava. Aliás parece que ficou ainda mais enervado, o que é compreensível. Contudo, não saiu da posição o que demonstrava estar efectivamente convencido que não teria opção. Tentámos acalmá-lo e o furriel Pinto fazia-lhe ver que, estando assim, seria mais doloroso, para além de transformar uma simples picada em algo complexo. Em vão, os músculos contraídos pareciam querer saltar da pele e nada o fazia acalmar. O Pinto perdeu a compostura:
- Acalme-se lá, porra! Gritou.
- Oh Comandos, pensa em gajas! Disse alguém brincando.
Perante o aparente impasse, o furriel sentenciou:
- Eu é que vou resolver isto. E, estendendo a mão para o enfermeiro, ordenou:
- Dá-me uma agulha.
Posicionou-se, pareceu avaliar o alvo, deu uma pequena palmada na nádega nua esperando conseguir alguma descontracção do apavorado soldado e num golpe violento, espetou a agulha, qual estocada em touro bravo. Encaixou a seringa e começou a empurrar o êmbolo obrigando o líquido a penetrar naquela fortaleza de músculos.
O Comandos levantou a cabeça, cerrou os dentes num verdadeiro esgar de dor e aguentou até ao fim, soprando e resfolegando sem abrir os olhos.
- Porra! Você gosta de sofrer. Desabafou o Pinto quando finalmente sacou a agulha num gesto brusco ao mesmo tempo que esfregava com algodão emudecido a nádega repentinamente descontraída.
- Não percebes que assim é que dói mesmo?
Mas o homem não queria saber disso. Levantou-se, puxou os calções e enquanto afivelava o cinto, balbuciou num suspiro:
- Pronto, já está!
E afastou-se a coxear, esfregando o rabo à procura de alívio para o ardor que sentia.