Durante todo o tempo que durou a nossa estada por terras
angolanas, um dos desejos que mais frequentemente alimentava os sonhos da
rapaziada era, sem qualquer margem para dúvidas, o momento em que, cumprida a
missão, se regressaria a casa. Enquanto durou a nossa via-sacra pelas terras
inóspitas e areentas da Neriquinha, isso era algo que parecia muito distante,
quase inacessível. Mas aos poucos, naquela exasperante lentidão que as agruras
de uma missão espinhosa teimam em empatar e porque o tempo não pára, os dias
foram-se sucedendo às noites, os meses preenchendo-se e o tempo passando até àquele dia memorável em
que nos tiraram dali, despejando-nos no aprazível sossego das Mabubas.
É verdade que nos sentimos verdadeiramente compensados dos tratos
de polé sofridos no meio da savana das Terras-do-fim-do-mundo. Contudo, não
obstante este segundo episódio da história da 3441 se assemelhasse, por vezes,
a umas quase férias num local aprazível, acolhedor e pacífico, aquele sonho de
ver chegado o dia em que voltaríamos às nossas origens nunca foi deixado de
parte.
Alguns se lembrarão de que, por alturas do mês de Novembro
de 1973, correu célere a notícia de que a nossa saída das Mabubas estaria
prevista para o dia três de Dezembro. O embarque, diziam, teria sido aprazado para
as antevésperas do Natal, o que animou muita gente perante a expectativa de
passar as Festas em casa. Quando o dia três passou por ali sem que tivessem chegado
os que nos iriam render, a desilusão patente no semblante de alguns foi a prova
de que, afinal, o fim da comissão nunca deixara de ser o desejo maior.
Ainda assim, quando passadas mais de duas semanas, nos vimos
finalmente em Luanda, simplesmente aguardando o dia do embarque e livres dos
quartos de sentinela, das operações aos laranjais da Fazenda Alice e demais
exigências militares, a coisa esmoreceu um pouco. Não é que tenha a certeza e
não pretendo armar-me em adivinhador dos pensamentos dos outros, mas apostaria
que muitos terão deixado para segundo plano, ainda que só às vezes, aquilo que,
até então, era considerado o sonho diário de cada um. O Natal seria dali a dias
e por isso, passá-lo em casa estava fora de questão, mas certamente que se não
fosse dali a uma semana seria possivelmente na seguinte e essa certeza
dispensava a necessidade de pensar no assunto.
Assim sendo, aproveitou-se tanto quanto possível o afrouxar
da disciplina, usufruindo de tudo o que a cidade tinha para oferecer. Alguns
mudaram-se para a Pensão dos Coqueiros, para facilitar as pernoitas tardias e
comer bem por menos dinheiro, o Gabriel alugou um carro, calcorrearam-se esplanadas, praias, bares e cabarés e compensaram-se as privações passadas, até que, com cada vez maior acerto, foram
chegando informações; o dia cinco de Janeiro foi apontado como certo, depois substituído
pelo dia seis, voltando de novo ao dia cinco.
Na última noite passada em Luanda, aquilo que começou por
ser um simples jantar num qualquer restaurante, virou noite de farra. Um grupo de furriéis entendeu que a última noite seria de desbunda. Calcorrearam-se bares, esvaziaram-se
garrafas, misturou-se cerveja com aguardente, esgotaram-se as últimas notas
de angolares e creio que até as moedas se foram.
Quando a madrugada chegou, largaram no aeroporto o carro
alugado e tomaram um táxi até ao Grafanil. As regras militares exigiam farda a
rigor, formaturas e transporte até ao avião que nos havia de trazer para casa. A
memória não está muito nítida mas creio que, após a exasperante espera da
praxe, embarcámos num Boeing ao serviço da Força Aérea e fez-se a viagem contornando toda a costa de África. Na altura, não era possível aos aviões nacionais sobrevoarem o território dos países africanos hostis ao regime.
Retenho de memória o desembarque em Lisboa, no aeroporto militar de Figo Maduro, no dia seis de Janeiro de 1974, um dia cinzento, enevoado, frio e húmido que contrastava com a luminosidade faiscante do sol quente de Luanda. Uma réstia de saudade de África ainda se insinuou por entre a euforia de voltar ao puto. Mas foi sol de pouca dura; a vida interrompida dois anos antes recomeçou no momento em que, nas instalações do quartel do RAL 1, despimos definitivamente a farda e saímos dali quase sem nos despedirmos uns dos outros.
Retenho de memória o desembarque em Lisboa, no aeroporto militar de Figo Maduro, no dia seis de Janeiro de 1974, um dia cinzento, enevoado, frio e húmido que contrastava com a luminosidade faiscante do sol quente de Luanda. Uma réstia de saudade de África ainda se insinuou por entre a euforia de voltar ao puto. Mas foi sol de pouca dura; a vida interrompida dois anos antes recomeçou no momento em que, nas instalações do quartel do RAL 1, despimos definitivamente a farda e saímos dali quase sem nos despedirmos uns dos outros.
Completaram-se hoje quarenta e três anos.