domingo, 29 de maio de 2016

COMPANHIA DE CAÇADORES 3441
ANGOLA 1971/73

ENCONTRO 28MAIO16

42 ANOS DEPOIS SEMPRE A MESMA AMIZADE E ALEGRIA DO REENCONTRO
PARA OS COMPANHEIROS QUE NÃO PUDERAM ESTAR PRESENTES VAI ESTA REPORTAGEM























segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O "levantamento de rancho" que não foi

Lembro-me bem; durante o tempo em que o Morais, o nosso furriel vagomestre, esteve ausente, gozando no puto umas merecidas férias, longe daquela terra de ninguém, fui incumbido de o substituir na arte de alimentar o pessoal sem ultrapassar a verba diária de vinte e dois escudos e meio por cabeça. A tarefa não era fácil e a experiência nenhuma, mas lá me desenrasquei o melhor que pude, procurando compor, com os parcos víveres existentes, qualquer coisa que se pudesse comer. A chatice é que, dia após dia e sem que disso me desse conta, fui ultrapassando a fasquia do orçamento.
Não me recordo das chatices que o Morais teve de enfrentar para voltar a meter as coisas sobre carris. É provável que a ameaça de levantamento de rancho, a propósito de uma das ementas mais detestadas (dobradinha com feijão) tenha sido um acontecimento que se se terá desenrolado quando fui mandado para uma segunda comissão no destacamento do Rivungo.
Sorte a minha, que só soube dos pormenores muito tempo depois de tudo ter acontecido.
O texto que se segue é da autoria do Morais, o nosso vagomestre de então.
....  
Enquanto decorreram os dezoito meses de destacamento na N’riquinha, consegui gozar dois períodos de férias, de trinta e cinco dias, no “Puto”. Com as deslocações, via Luso (Luena), Nova Lisboa (Huambo) e Luanda, as ausências atingiam cerca de cinquenta dias, períodos que fui substituído, como responsável pelo serviço de alimentação, pelo Egídio Cardoso.
A contabilidade do serviço exigia um inventário ao armazém cada final de mês, com o qual verificávamos se o consumo de géneros alimentares estava dentro do orçamento de receita para o mês em causa.
Os primeiros meses de estada na N’riquinha, embora coincidissem com a estação das chuvas, foram relativamente generosos em caça e, por via disso, além de nos alimentarmos melhor, pudemos gastar menos em alimentação. O serviço foi passado ao “vaguinho” Cardoso, com um excedente de tesouraria correspondente a cerca de dez dias de alimentação.
Quando cheguei do primeiro período de férias, aguardámos a chegada do fim do mês para a passagem do testemunho. O “vaguinho” em exercício tinha desenvolvido um trabalho notável no serviço, e era alvo de grandes elogios, pelo empenhamento e grande imaginação posta na elaboração das ementas, ao ponto de alguém, bem situado junto do comando, ter pressionado, sem sucesso (o primeiro sargento Pinto foi contra), a sua passagem a efectivo. Feito o inventário e uma estimativa à gestão cessante, constatou-se que havia um défice no serviço de cerca de vinte dias de alimentação. Ou seja, durante três meses viveu-se acima das possibilidades. Posto o problema ao conselho administrativo (comandante da companhia e primeiro sargento), e porque o défice teria que ser compensado no futuro, sob pena de responsabilização e pagamento dos montantes em falta, foi decidido “apertar o cinto”.
A situação chegou rapidamente ao conhecimento de toda a companhia, e comecei a ouvir ameaças veladas de que, se tal acontecesse, ia haver “levantamento de rancho”. O contingente lisboeta liderava a “revolta”.
Por todas as razões e também por solidariedade com o “vaguinho” Cardoso, houve que prosseguir no caminho traçado, evitando as ementas que fossem mais dispendiosas, até porque o entusiasmo pela caça tinha esfriado. De facto, os habituais voluntários não estavam tão disponíveis para continuar, e a época das queimadas ainda não se iniciara. A primeira caçada que liderei, neste período, teve como resultado uma cabra do mato (bambi) e um nunce, insuficientes para dar uma refeição a toda a companhia.
O pretexto para um incidente apareceu quando se serviu, ao almoço, uma dobradinha com feijão. Como era norma, a comida era igual para todos, oficiais, sargentos e praças, e confeccionada nas mesmas panelas. Servidas as terrinas para os doentes na enfermaria e para as messes, passava-se a atender os praças. Quando estava a terminar a minha refeição fui chamado ao refeitório para ouvir a reclamação de que a comida estava imprópria para consumo porque o feijão tinha bicho, e mostraram pratos onde se viam dois ou três feijões com um ponto negro. Entretanto chegou o comandante da companhia que mandou formar na parada e tentou convencer o pessoal a retomar a refeição, porque todos os oficiais e sargentos tinham consumido a mesma feijoada, sem notarem nada de anómalo: Não havia levantamento de rancho!! E avisou que a cantina estaria encerrada e só abriria depois do jantar. O pessoal persistiu na decisão.
O comandante da companhia, para evitar que o incidente se repetisse mandou que o saco de sessenta quilos de feijão, recentemente encetado fosse servido aos hóspedes da pocilga, situada nas traseiras do aquartelamento. Posso garantir que desobedeci a tal ordem, e o feijão, tão proteicamente enriquecido, foi por nós consumido nas sopas, depois de processado no “passe-vite”… a vingança foi servida quente.
“vaguinho “ Morais

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

A Prisão

O rigoroso RDM, kafkiano regulamento da disciplina militar de que se dizia ser incumprível, alimentava boa parte do anedotário de caserna dos tempos idos da tropa. Estava capaz de apostar que se contariam pelos dedos de uma mão – vá lá, de duas mãos – aqueles que, naquele tempo, se deram ao trabalho de ler tão exigente normativo, o que, entenda-se, seria de todo desnecessário e isso porque, para não cair nas suas malhas, bastaria atender a duas regras principais: “cuidado com o que dizes” e “vê lá o que fazes”, o que significa que, até a dormir, era razoável a probabilidade de se infringir um qualquer dos seus inúmeros artigos, ainda que inconscientemente e sem se saber como, espécie de círculo vicioso da justiça militar que tanto poderia considerar alguém culpado por ter cão, como por o não ter. A crítica ao seu excesso de rigor era, naquele tempo, expressivamente ilustrada com a afirmação galhofeira de que, o seu autor, uma vez completado o seu trabalho de legislador, se suicidara ao dar-se conta de que não seria capaz de cumprir os ditames plasmados em tão intransigente e espartano diploma.
A aplicação do direito sancionatório correspondente competia aos comandantes das unidades que não tinham dificuldade em enquadrar cada infracção no respectivo articulado. As penas menos severas transferiam o recruta para o serviço de faxina às cozinhas, seguindo-se, por ordem de gravidade, a limpeza dos sanitários, a proibição de sair do aquartelamento até ao recolher, a perda de direito a gozar o fim-de-semana e por aí adiante até às penas de prisão. É verdade, as infracções mais graves, ainda que não constituíssem crime, eram cumpridas na prisão.
Mas vamos ao que interessa. Na Neriquinha, não havia cadeia. E não havia, porque não era preciso. A singela e frágil cerca de arame farpado, que delimitava aquele quadrado de pó areento perdido no meio da savana, já era o bastante para que nos sentíssemos enclausurados, não obstante a ausência de muros permitir acesso livre e directo à vastidão do espaço envolvente. E nunca se pensara nisso, até porque, pelos vistos, nenhuma das unidades que ali nos antecederam teve necessidade de tal coisa.
Mas, a companhia de caçadores 3441 pertencia a um batalhão – o 3857 – cujo comandante, a que todos deviam vassalagem, não entendia assim e, por isso, a ordem expressa, vinda directamente do seu gabinete, lá no Cuito Cuanavale, determinou: – construa-se uma cadeia.
A ordem, exigente e imperativa, não admitia desculpas e qualquer desobediência seria insensatez; na tropa era assim e com aquele comandante, mais ainda. E, assim sendo, não havia sequer que discutir:  – pois construa-se o tal de cárcere, determinou o capitão.
Passado todo este tempo, não tenho memória do aspecto físico de tais instalações, mas alvitra-se a hipótese de o local escolhido ter sido, logo ali, paredes meias com a oficina auto, confinando com as traseiras da enfermaria e não longe do refeitório, junto ao gerador pequeno, espécie de reserva energética que permitia a existência de luz pelo tempo que levava a resolver os amuos do gerador principal. O facto é que, e isso é uma certeza, se deitou mãos à obra, desencantaram-se os materiais necessários e, em pouco tempo, lá nasceu, isso sim, um casinhoto precário, sem condições e de pequenas dimensões; enfim, um cubículo. Talvez porque se entendia que nunca teria serventia, não se lhe meteram grades e creio que a porta, se é que alguém disso se lembrou, nem fechava. Pelo menos não tinha chave. E para quê, se ali não havia para onde fugir. 
Contrariamente ao que seria de esperar, o presídio foi estreado, e coube ao Pinheiro o privilégio da inauguração, sem pompa nem discursos mas, ainda assim, um acontecimento inaugural. O Pinheiro era um chato, um refilão preguiçoso que, com alguma frequência, esticava por demais a corda. Até que um dia, exagerou, ultrapassou o desculpável e foi além da capacidade de tolerância do capitão. A pena aplicada, ainda que com algumas atenuantes, ficou-se pelos cinco dias de prisão.
Tanto quanto julgo saber, não os cumpriu todos. Provavelmente houve a percepção de que, para o preguiçoso do Pinheiro, estar detido, para mais naquela estranha cadeia, produzia efeito contrário ao que é suposto ser um castigo. É que, o estar preso, implicou não ser escalado para os sempre detestados quartos de sentinela e outros serviços do dia-a-dia. E o pior é que passava pouco tempo enclausurado, não fazia nada, comia no refeitório como todos os outros, passava o dia chateando o pessoal da ferrugem e, de caminho, infernizava a vida dos cozinheiros e exigia atenção especial aos enfermeiros. Para completar o quadro, transferia-se, à noite, para a sua cama na caserna e ainda gozava com o pessoal que com ele se cruzava, não perdendo a oportunidade de, disfarçadamente, provocar o segundo-sargento que, achando tudo aquilo um abuso, resmoneava visivelmente agastado, um “num tá bem!” reprovador. Tirando isso, dormia o resto do tempo e preguiçava nos intervalos de cada soneca, feliz da vida e apostado em cumprir, com zelo sacana, o castigo que lhe foi imposto, comportando-se de forma a convencer disso o capitão, até porque, o segundo-sargento nunca se atreveu a denunciar uma situação que, no seu entender, “num tava bem”.
A boa vida do Pinheiro durou apenas aqueles escassos dois dias de prisão efectiva, intervalada de saídas precárias auto autorizadas. Apercebendo-se da ineficácia do castigo, o capitão comutou-lhe a pena, deu-lhe ordem de soltura e determinou que os restantes três dias fossem convertidos em liberdade condicional, para grande desgosto do preso que via assim as suas imerecidas férias abruptamente interrompidas, com a agravante de se ver escalado para um quarto de sentinela naquela mesma noite.
Creio que o cárcere apenas teve mais um inquilino ainda que apenas por umas horas. E como não podia deixar de ser, coube ao Candeeiro esse privilégio. O soldado Raimundo, por todos conhecido como Candeeiro, pescador algarvio vindo dos lados de Vila Real de Santo António, era um homem quezilento, especialmente quando estava com umas cervejas a mais, situação algo frequente. Nessas alturas, tinha por hábito desatar num berreiro, ameaçando todos aqueles de quem não gostava, elegendo sempre o alferes Torres como primeiro alvo a abater. Felizmente, levado a bem, era fácil apaziguar-lhe as fúrias, mesmo quando bem bebido. O problema era que, como se sabe, o excesso de bebida tolda o raciocínio e o bom senso a certas pessoas e, no caso do Candeeiro, nunca se sabia se as fúrias eram apenas desabafos alcoólicos ou algo mais. E, assim sendo, mais valia prevenir, obviando a que, de um momento para o outro, fizesse um qualquer disparate.
Certo dia, excedeu-se mais do que costumava e, antes que os desacatos descambassem em grossa asneira, foi encarcerado. O berreiro ainda continuou por algum tempo, mas acabou por calar-se. Talvez vencido pelo cansaço e totalmente dominado pela bebedeira, adormeceu e, rangendo os dentes, por ali ficou o tempo necessário para cozer e processar o álcool ingerido, saindo em liberdade quando, já esquecido da guerra que apregoara, acordou.
É caso para se dizer que a cadeia, ali, não fazia falta. Mas, uma vez construída, teve uso, ainda que apenas por duas vezes: uma para estreia e outra para curar uma bebedeira.