O nosso comandante de batalhão era homem pequeno. Velhaco,
não será o termo mais adequado para o definir, mas era homem acerca de quem
nunca se ouviram dizer coisas boas. Mais temido que respeitado, exagerava na
prepotência talvez como forma de garantir obediência. Um ser pouco amistoso,
insensível e azedo de quem era conveniente guardar distância se se queria evitar
dissabores. Lá diz o povo que só pica a abelha a quem trata com ela e, digo eu,
esta nem mel dava que compensasse o risco.
E foi logo no primeiro dos três natais passados em Angola,
quando ainda nem dois meses haviam decorrido desde que nos despejaram no ermo
inóspito da savana arenosa da Neriquinha que o nosso ilustríssimo comandante,
dando um ar da sua graça, começou por se revelar. Tendo eu passado esse Natal
no destacamento do Rivungo, por sinal o único de que me recordo, só conheço o episódio
de ouvir contar e, por isso, será desculpável qualquer imprecisão.
Naquele ano, o general comandante da zona militar leste, e
por isso, o maior entre os maiores de tudo o que era tropa por ali, decidiu
passar o dia de Natal junto de uma das companhias que estivesse colocada num
dos locais menos aprazíveis da zona. Terá entendido ser essa uma forma de se
solidarizar com os homens que aguentavam com o ostracizante isolamento a que
estavam votadas algumas das unidades militares sob o seu comando.
A Neriquinha foi a escolhida o que, bem vistas as coisas, constituía
o reconhecimento oficial de que tínhamos sido de facto desterrados para os cus de judas, verdadeiro fim de mundo perdido
nas imensas planícies areentas de uma região já de si apelidada de Terras-do-Fim-do-Mundo.
Assim, era certo que o senhor general sairia do conforto do
seu gabinete, lá na cidade, para passar uma parte do dia na nossa companhia,
respirar os odores da mata e, provavelmente, almoçar no cubículo que fazia a
vez de messe dos oficiais, comendo do rancho feito no panelão geral, que ali
não havia cozinhas separadas, mas que, naquele dia festivo, se dizia melhorado,
epíteto que conferia grandeza e pomposidade à estravagância da mirrada posta de
bacalhau excepcionalmente introduzida na ementa pobre e rotineira do pouco
diversificado menu a que já nos habituáramos.
A notícia correu célere, que o homem não recomendou sigilo, até
porque era necessário preparar a recepção que as regras militares impunham.
Receber a visita de um general era coisa pouco frequente e ter o privilégio da
sua companhia para o almoço, uma verdadeira excentricidade, para mais num ermo
daqueles. Por mim, garanto que, enquanto fui tropa, nunca estive próximo de
nenhum, pelo menos a uma distância suficiente para poder reter as suas feições.
Como impunham as regras, o nosso comandante de batalhão foi
devidamente informado. E não demorou muito até que, de lá do seu curul no Cuito
Cuanavale, enviasse as ordens estritas que instruíam o capitão sobre o que
teria de ser feito para receber o maioral. Eram ordens desconcertantes e
inesperadas, porém peremptórias e inquestionáveis, a não deixar espaço a
quaisquer objecções ou alternativas. O nosso general teria de ser recebido com
toda a pompa e circunstância, com palanque e desfile como se se estivesse a
comemorar o 10 de Junho na Praça do Império.
Para além da construção do palanque, para onde era suposto o
general subir, a ordem escrita determinava que se requisitasse ao serviço de
material, em Luanda, o fornecimento de luvas brancas e atacadores da mesma cor.
Tudo como deve ser para sobressair nas botas pretas que teriam de estar convenientemente
engraxadas. O atavio teria de ser isento de máculas e as laçadas dos atacadores,
apertadas com aquelas complicadas voltinhas de cerimónia a enfeitar os canos
das botas da guarda de honra, que teria de se apresentar aprumada e marchar com
garbo. Só não exigiu charanga, que isso já era demais, mas creio que o
corneteiro não foi dispensado. O desfile da guarda de honra evoluiria ao som da
corneta.
Na Nequirinha, permanentemente afogueada de poeira, atascada
em areia e envolta numa poalha avermelhada sempre que soprava um qualquer
ventinho ou aterrava um avião, a manutenção de botas engraxadas era uma total
impossibilidade. Aliás, as botas de lona, consideradas adequadas para caminhar
naquele mar de areia, usavam-se quase sempre sem atacadores; refrescava os pés
e era mais fácil sacudir a areia que teimava em entrar e agarrar-se às meias
empapadas em suor.
Estava-se mesmo a ver que,
bom senso era coisa que não fazia parte dos atributos e preocupações do nosso digníssimo
comandante. Ou então, porque ainda não se dignara visitar as unidades que
comandava, desconhecia que, naquele lugar, botas engraxadas, para mais
ornamentadas de branco, era algo absolutamente incompatível com o meio
envolvente. Engraxar botas naquele sítio, era inútil; bastava sair da caserna
para que as botas, enterrando-se na areia, se cobrissem imediatamente de poeira,
ofuscando o fugaz brilho da graxa.
Mas disso, aquele emproado e prepotente homenzinho não
queria saber. Provavelmente, perante a eventual veleidade de uma proposta
alternativa, terá dito:
- Faça-se como se ordena.
A requisição das luvas e dos atacadores lá seguiu e deu-se
início à construção do palanque, com os materiais que foi possível encontrar,
tudo à custa do engenho e arte do pessoal que, com o esmero possível e muita
imaginação, fintando as dificuldades decorrentes da falta de materiais, lá
construiu uma improvisada, tosca e desarmónica tribuna, que outra coisa não
podia nascer da imbecilidade de uma ordem idiota.
E foi assim que, naquele dia de Natal, à hora aprazada, se
viu aterrar, resfolegante, no meio de um frenesim de poeira ocre e folhas esvoaçantes,
o avião da força aérea que transportou desde o seu quartel-general o ilustre
visitante. O avião aquietou-se, diminuiu a chinfrineira, silenciaram-se os
motores, abriu-se a portinhola da aeronave à qual assomou um elemento da
tripulação e pouco tempo depois lá desceu o general que caminhou decidido em
direcção à tropa perfilada, afastando-se do avião ainda envolto num resto de
poeira que não tivera tempo de assentar.
Olhou em volta, curioso, como se se certificasse do ermo em
que aterrara, reparou na tosca tribuna, virou-se para o capitão e, com um ligeiro
movimento de cabeça em direcção à improvisada estrutura, perguntou a meia voz:
- O que é aquilo?
- Ordens do nosso comandante, meu general, retorquiu de
imediato o capitão alijando responsabilidades.
Não disse nada, mirou a estrutura de alto abaixo e, de forma
quase imperceptível, abanou a cabeça deixando transparecer um certo
agastamento. Decididamente, até o general parecia achar despropositada a
encenação da pompa em que o nosso comandante quis transformar a sua passagem
por aquele buraco. Mandou desfilar a guarda de honra e, sem mais delongas,
encaminhou-se para o interior do aquartelamento seguido dos oficiais, sem que
tivesse dado uso ao inútil e ridículo esqueleto que por ali ficou por mais uns
dias.
Quanto às luvas brancas, mais os atacadores, nunca chegaram
à Neriquinha. Parece que a requisição se perdeu nos corredores das arrecadações
de material, possibilidade que me parece pouco verosímil. Cá para mim, devem
ter pensado que se tratava de uma brincadeira e não ligaram à coisa. Ou então,
terão considerado que o nosso capitão não estaria bom da cabeça. Coitado, com
tão puco tempo de mata e já afectado pelo cacimbo.
No final, tais adornos deixaram de importar; o general regressara à cidade, a nossa vida voltou à rotina do costume e, muito provavelmente, o nosso comandante de batalhão nunca mais pensou no assunto.