quinta-feira, 1 de outubro de 2015

As armadilhas da chana

Na savana imensa que caracteriza as terras-do-fim-do mundo, uma chana é a designação que aquele povo dá a qualquer espaço plano, silente e sem árvores ou arbustos que o sombreiem. Descampado será porventura o termo que por cá se usa para designar algo semelhante mas, desiluda-se quem pense que é a mesma coisa. Chana só existe naquelas paragens e não me parece que possa ser comparada com o que quer que se lhe assemelhe. Planície não é certamente.
Uma chana, normalmente abraça qualquer curso de água e essas fazem lembrar pântanos, mas sem areias movediças, que é coisa que nunca ouvi dizer que existisse por ali. Mas também as há onde não corre água; estendem-se em zonas mais baixas para onde, na diluviana época das chuvas, a água escorre pelo terreno arenoso e se aquieta submissa até que o sol as leve. São as chanas secas, como era a da Neriquinha. Por ser seca e nunca ali ter medrado uma árvore, acabou por se transformar naturalmente na pista poeirenta onde, duas vezes por semana, aterrava o pequeno Cessna do Barros que nos trazia o tão desejado correio. Aliás, uma chana era sempre um recurso para qualquer piloto que cruzasse aqueles céus: mais aquém ou mais além havia sempre uma aberta onde era possível aterrar um pequeno avião sem dificuldades de maior, como daquela vez em que faltou o combustível a uma pequena avioneta. O mais difícil foi chegar lá com um jerrican de gasolina mas, depois de abastecido, levantou voo com facilidade e rumou ao seu destino.
Tinham ainda outra vantagem. No tempo do cacimbo, quando, com a ausência de chuva, tudo secava, mesmo as que não tinham um curso de água por perto, retinham normalmente humidade que garantia a verdura perene das ervas e, em casos de necessidade, era sempre um local onde se poderia encontrar água para matar a sede. Bastava escavar um pequeno buraco com um palmo de profundidade e esperar que a água nascesse. Os bichos sabiam disso, nós sabíamos disso e até as hienas estavam informadas. Por tudo o que ficou dito, era o sítio mais óbvio para se encontrar caça.
Mas, para além de esconderem lamaçais, constituíam ainda espaços incaracterísticos; mais recorte menos recorte, mais curva menos curva, mais larga ou mais estreita, todas se pareciam umas com as outras. E, quando a sua extensão se alongava a perder de vista, era quase impossível a quem estivesse no meio delas, perceber o exacto ponto onde se encontrava. Sendo todas absolutamente planas, o mais abaixo não diferia do mais acima e não havia mapa que nos ajudasse. Só mesmo um guia local nos podia levar a algum lado.
Vistas do céu, o seu aspecto era diferente. A mim, nas vezes em que andei lá por cima, sempre me pareceram como peladas no meio daquela imensidão de verde, numa sucessão caótica de espaços que apenas insinuavam cursos de água escondidos pela vegetação, hesitantes, sem direcção definida e descobrindo-se onde menos se esperava em fartas lagoas que reflectiam resplendorosas o azul intenso do céu.
Para o Barros, piloto da empresa de táxis aéreos do sul de Angola (TASA) que voava diariamente por sobre aquela imensa savana, todo aquele intrincado de chanas e linhas de água era como se fosse um mapa desenhado pela natureza. Conhecia cada palmo da savana e dizia-se que nunca usava as cartas e instrumentos de navegação para se orientar. Normalmente o percurso que fazia era sempre o mesmo: nuns dias descia ao longo do rio Cuito, noutras, quando nos trazia o correio, seguia, a partir de Serpa Pinto em direcção ao Cuito Cuanavale, tomava a direcção do Rio Lomba até ao Dima, seguia por Mavinga e enfiava direito à Neriquinha onde, ansiosos, o esperávamos duas vezes por semana. Depois, sobrevoava as chanas que se estendiam a oeste do Rio Cuando em direcção ao Rivungo. O percurso seguinte, de regresso a Serpa Pinto, já não nos interessava. Assim, se alguma vez o soube, o tempo lá se encarregou de o arrumar nos escaninhos mais profundos da memória, lugar de onde nunca mais saiu.
Mas isso era o Barros, qualquer outro piloto que por ali se aventurasse não podia dispensar a ajuda das cartas e do mais que, para o efeito, equipa os aviões. Certa vez, um piloto, novato e desconhecedor daquelas paragens, incumbido de levar até Serpa Pinto um engenheiro agrónomo que para ali se deslocara para tratar de assuntos da sua especialidade, levantou da pista do Rivungo com pouco combustível planeando reabastecer na Neriquinha, orientando o voo pela carta que reproduzia fielmente os rios, afluentes e riachos que se avistavam de lá de cima.
Havia, contudo, um problema; todas as cartas da região assinalavam aquela nossa precária e provisória residência como estando localizada nas margens do Rio Cuando, aí uns vinte quilómetros para leste, local então designado por Neriquinha-Velha onde apenas havia umas lavras, alguma população dispersa e quatro paredes quase desfeitas, verdadeiro esqueleto de uma casa que por ali existira. Ou seja, as cartas não conheciam a localização da nossa Neriquinha e, pelos vistos, aquele piloto também não.
Como é bom de ver, dirigira o avião para um local onde não poderia aterrar e, ao aperceber-se disso, terá pensado que se desviou do rumo. Deu uma volta, e mais outra sem nunca divisar a tão famigerada pista e na ânsia de a encontrar, desorientou-se e foi-se desviando cada vez mais do seu objectivo até não conseguir mais encaixar no mapa os recortes do terreno lá em baixo. Desatinou e deambulou pelos céus da savana até que se lhe esgotou o combustível sem que tivesse divisado o seu objectivo.
Nem discernimento teve para procurar uma chana seca. Acabou por amarar no meio do capim alagado, ali logo ao lado de um acampamento inimigo que tínhamos destruído um par de meses antes, muito longe do seu destino inicial.
Tirando umas escoriações, todos saíram ilesos da queda, mas deambularam por aquelas matas durante três dias antes que fossem encontrados por um PV2 da força aérea quando, depois de ter passado a pente fino toda a região estava prestes a desistir. É caso para dizer que não morreram da queda mas iam morrendo de fome.
A carcaça do avião, essa, foi recuperada, mais tarde, numa espantosa aventura chefiada pelo furriel Leitão. Mas isso já eu contei aqui.