segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O assassino do Bacalhau foi descoberto

Todos temos ainda a ingrata memória do assassinato do Virgílio Cabral, conhecido entre os seus companheiros da guerra como o “Bacalhau”, barbaramente assassinado a golpes de faca que deixavam transparecer uma raiva selvagem, o bastante para ser notícia de primeira página de jornais.
Passado todo este tempo, cumpre dar a notícia que, após aturadas investigações, a Polícia Judiciária descobriu o assassino. Afinal, era alguém que o infeliz do Virgílio costumava levar lá para casa. Parece que o móbil principal do crime teria sido o furto de umas economias, imprudentemente guardadas numa gaveta qualquer.
O autor de tão selvática atitude encontra-se preso no Brasil, país de onde é oriundo e para onde fugira após a bárbara matança.
O Virgílio pode agora descansar em paz; afinal, algo a que todos têm direito

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Missão no Chipundo

Recordo o Chipundo como uma espécie de derradeira fronteira. Localizado lá bem para baixo, a sul do Rivungo, no limite inferior, espécie de extrema da área operacional atribuída à companhia, era, bem se pode dizer, um verdadeiro fim-de-mundo plantado no próprio fim do mundo, usufruindo da mansuetude refrescante do Rio Cuando que, no seu indolente serpentear em direcção a sul, ali tocava a margem que definia o perímetro do aldeamento. O Chipundo era um aglomerado de palhotas de capim, de maior dimensão que um simples kimbo e, por isso, tinha um administrador de posto e um pequeno efectivo da PSP, ambos dependentes das chefias administrativas e policiais estacionadas no Rivungo.
Ao longo das duas comissões, se assim se pode chamar às duas vezes que coube ao meu grupo de combate guarnecer o nosso destacamento na pequena povoação do Rivungo – seis meses ao todo – fui mandado ir ao Chipundo, umas quantas vezes. Uma delas, para recolher e levar dali o Land Rover da PSP, estropiado na sequência do acidente que matou o subchefe, retalhado pelos estilhaços da granada que, por incúria sua, explodiu dentro da cabine da viatura e a outra, a que inspirou esta crónica, incumbido de uma missão de patrulhamento e segurança – para marcar presença – daquelas a que se dava o nome de “acção”, designativo de uma operação militar de pouca importância.
A picada que levava ao Chipundo atravessando sempre a mesma savana, plana e agreste, sempre me deu a sensação de ser a descer, não obstante nada naquele percurso subisse ou descesse. E, no regresso, pelas mesmas razões, parecia-me sempre a subir. Mas era apenas impressão minha, uma espécie de armadilha do subconsciente, talvez condicionado pelo facto de, aquele caminho levar ao sul e às terras do Luiana, lá, junto à Faixa do Caprivi, vizinha do grande delta do Okavango, bem longe da área que nos cabia, já de si demasiado extensa.
O facto é que a picada, essa, serpenteava caprichosa, como aliás qualquer caminho que por ali existisse, umas vezes areenta e cansativa onde as viaturas se enterravam lavrando areia seca e fofa, noutras lisa, bordejando as chanas secas para, mais à frente, atravessando charcos e arroios, se transformar em lamaçais insuspeitos. Não sei porquê, mas foi o único sítio onde me deparei com ameaçadoras manadas de búfalos pastando, indolentes, e bandos de pequenos e pacíficos macacos, às centenas, saltitando de árvore em árvore.
Como de costume, saímos cedo, arrumados no pequeno unimog do destacamento, com a capacidade exacta para transportar o grupo designado para a missão: eu, um cabo, quatro soldados, o condutor um transmissões e um enfermeiro, alcançando-se o Chipungo em pouco menos de quatro horas, onde o pessoal da PSP já nos aguardava expectante frente ao pequeno posto localizado do lado direito do aglomerado de cubatas, não muito longe da orla da mata.
Ficámos por ali um bocado. Um dos objectivos era exactamente o de marcar presença, coisa que não exigia grande esforço. Naquele lugar, tão remoto, a chegada da tropa era sempre um acontecimento e creio que os ouvidos apurados da população já há algum tempo haviam identificado a nossa aproximação denunciada pelo barulho do motor do unimog que não se confunde com qualquer outro. Preguiçámos por ali, almoçámos, aproveitámos o ensejo para contar as poucas novidades, usufruiu-se da permanente boa disposição do subchefe e recuperámos da viagem que não fora, e nunca era, propriamente um passeio.
Mas era necessário dar continuidade à missão. Rumámos a sul, seguindo a picada que, iniciando-se na orla da mata, serpentava pelo capim e rolámos durante algum tempo, o suficiente para se perder de vista as cumieiras de colmo das palhotas do kimbo. Saímos da picada e penetrámos na mata até se encontrar um local com sombra logo ali à beira de um riacho que me limitei a supor ser um daqueles braços de rio abandonados pelo caudal principal do Cuando. A nossa missão não tinha propriamente um objectivo determinado por um qualquer ponto a atingir. Limitava-se a estar presente, andar por ali, mostrar que a tropa não se confinava ao sossego do aquartelamento e, para ser honesto, estarmos ali, ou mais abaixo não tinha diferença e não comprometia o cumprimento da missão.
Instalámo-nos, cada um escolheu a melhor sombra, escrutinámos cuidadosamente todo o espaço à volta para evitar surpresas desagradáveis, cuidou-se da segurança definindo as escalas de sentinela, estendeu-se por sobre as árvores a antena do rádio, na altura, um moderno Racal TR28, estabeleceu-se contacto com a base informando da nossa posição e por ali molengámos até que a noite caiu.
Aquela noite foi um inferno. Caiu uma chuvada e com ela o desconforto de um friozinho austral pouco agradável, embora eu estivesse preparado para isso; vesti uma camisola de lã junto ao corpo, por cima enfiei a camisa do camuflado e, por cima desta, o dólman que, reforçado por uma camada de entre-tela, garantia uma protecção extra contra o frio e uma barreira contra as ferroadas das melgas. Enterrei o quico na cabeça, enrolei-me no poncho e procurei dormir. Consegui, mas por pouco tempo, o suficiente para as melgas me descobrirem. Rondaram zumbindo a noite toda à procura de sangue fresco, esbofeteei-me mais vezes do que desejava, enrodilhei-me o melhor que pude na protecção impermeável do poncho mas nada as demoveu. Quando o dia clareou e o frio da noite se foi, todos exibiam o rescaldo da luta travada contra o mosquitame. As bolsas de sangue das melgas esborrachadas à bofetada, tinham deixado, na cara de cada um, a sua marca sob a forma de riscos a fazerem lembrar pinturas índias. A princípio, cheguei a admitir que escolheramos mal o lugar para pernoitar mas, bem vistas coisas, melgas haveria sempre, mais perto ou mais longe da água e, pelo menos da sombra, não nos podíamos queixar.
Considerei que a missão estava cumprida e regressámos ao Chipundo. Ainda tínhamos muitas horas pela frente até chegarmos ao aconchego dos lençóis à nossa espera no Rivungo. E dava jeito lá chegar a tempo do jantar. Fizeram-se as despedidas e o condutor pôs o unimog em marcha em direcção à picada que nos trouxera até ali. Olhei de relance e julguei perceber um aceno de despedida do subchefe da PSP.
Seria a última vez que o veria vivo; aquela granada, estupidamente negligenciada, haveria de o matar antes que voltássemos a nos encontrar.