Eram peculiares as mulheres da Neriquinha. E a sua relação com a tropa tinha os seus quês. À sua maneira, seguindo os seus próprios princípios e com os cuidados que as suas superstições e temores impunham, habituaram-se a conviver com tropas que mudavam a cada rendição. Quando começavam a conhecer melhor uns, eis que se iam embora e lá vinham outros, novinhos em folha. E tudo isto numa questão de meses. Normalmente um ano ou pouco mais. Connosco, a relação foi mais duradoura, quase dezanove meses. Penso que até então nenhuma companhia estivera ali tanto tempo como a 3441. E isso permitiu uma aproximação maior, pelo menos aprenderam a conhecer melhor muitos de nós.
- Furriel matchiririka. Atreviam-se a certa altura, quando consideravam que o furriel em questão era bonito ou simpático ou, mais provavelmente, generoso. Como não podia deixar de ser, o inverso também tinha que se lhe dissesse. Mutatis mutandis, também da nossa parte houve necessidade de adaptação. Com as devidas cautelas, procurando não ferir susceptibilidades ou infringir regras tribais, fomos aprendendo a lidar com aquelas gentes. E com as mulheres os cuidados redobravam. Ao fim de muitos meses de convivência e à medida que em nós a imagem de mulher branca se ia desvanecendo, aquelas fêmeas andrajosas, inicialmente repelentes, fisicamente nada atraentes e nitidamente desprovidas de tudo o que até então se consideravam padrões mínimos de beleza feminina, passaram, num lento processo de habituação, a serem olhadas de outro modo, com cobiça, digamos, com olhos de comer.
Tinham hábitos estranhos; diria mesmo, desconcertantes. Mas até a esses nos fomos moldando. Por exemplo, Já se achava natural que a adolescente, quando atingia a idade dos doze ou treze anos – não me lembro bem – fosse submetida a um ritual absolutamente estranho de transformar crianças em mulheres adolescentes. Em ambiente festivo, abrilhantado com danças tribais e cânticos guturais ao som rítmico, monocórdico e repetitivo do batuque, uma estranha cerimónia tinha o seu clímax numa espécie de intimidade a que só assistiam as mulheres mais velhas. Eram estas que conduziam toda aquela espécie de via-sacra da mulher adolescente. Utilizando um qualquer processo cujos pormenores nunca cheguei a conhecer, as anciãs desvirginavam a donzela que assim, sem qualquer prazer e certamente aterrorizada, ficava, segundo a tradição, pronta a acasalar - perdia o cabaço como por ali se dizia. E como se isso não bastasse, a criança que assim, de repente, era transformada em mulher, passava obrigatoriamente a usar os paramentos que atestavam a sua novel condição: colares de missangas multicolores artisticamente entrançados no seu tronco nu e um estranho mas ao mesmo tempo artístico penteado meticulosamente preparado com bosta de vaca fresca. Andava assim por largo tempo, ganhando a bosta uma tonalidade escura e luzidia que, por mais estranho que pareça, era agradável à vista, mas apenas quando olhada de longe.
Durante esse tempo a mulher era intocável; a tradição e os costumes assim o impunham. Contudo, ainda que assim não fosse, o método utilizado pelas anciãs certamente tornaria dolorosa qualquer investida. E se isso não bastasse, o cenário repugnante e o fedor a bosta, associado à óbvia falta de higiene, para além de atrair bandos de moscas, seria seguramente razão mais do que suficiente para refrear quaisquer ímpetos, mesmo que vindos dos homens daquela população, certamente mais habituados a perfumes tão exóticos.
Vistas as coisas, todas aquelas mulheres, despidas de beleza e parcas em atractivos, foram sendo catalogadas: as mais jeitosas, já que chamar-lhes bonitas era exagero; as mais oferecidas ou, se se quiser, mais disponíveis; as que consensualmente eram consideradas intocáveis, ou por serem demasiadamente feias ou porque eram propriedade de algum GE. Finalmente as duas Reginas cujo estatuto de intocáveis não passava disso - estatuto apenas.
Uma delas, a Regina Preta, era assim chamada por razões que não conheço, já que, no que respeita à cor da pele, era tão preta como as demais, a outra, era a Regina Branca, mas isso era só de nome já que de branco não tinha nada. Era tão preta como a outra e nada as distinguia a não ser o aspecto físico. A Regina Branca, aparentando ser mais nova, era mais jeitosa. Ou, se se preferir, menos desengonçada; não tinha aquele ar pesado de marafona da Regina Preta. E isso contribuía para que fosse mais cobiçada.
A Regina Preta gozava do previlégio de ser exclusiva do furriel das transmissões que não se coibia de cuidar do seu exclusivo. A Regina Branca, obviamente mais jeitosa, não se livrava da fama de ser a favorita do Capitão.
Fosse como fosse, era óbvio o relacionamente entre as mulheres do Kimbo e tropas carentes de afetos. Se se tiver em conta que a natalidade era coisa vulgar por aqueles lados - os muitos putos que cirandavam pelo kimbo eram disso prova evidente - não é estranhar que alguns seriam naturalmente descendentes dos tropas que por ali foram passando durante o tempo que durou a guerra. Um deles era demasiado óbvio. O loirito do Kimbo da Neriquinha era o puto mais fotografado entre os demais. O seu cabelo liso, incontestavelmente louro, constituía um sinal evidente de que, entre os elementos das companhias que nos antecederam, teria havido pelo menos um militar de cabelo louro que, provavelmente sem que viesse a saber disso, ali deixou descendência.
A história é farta em exemplos que confirmam que, afinal, isso era uma realidade comum a todas as guerras. As nossas guerras, as guerras da Neriquinha, não são excepção. A fotografia do Morais deixa para a posteridade a prova de que a Regininha Preta é filha da 3441.