Memórias das aventuras e desventuras de 140 militares que, em Novembro de 1971, armados de G3, foram largados num ermo algures no meio das remotas savanas das terras-do-fim-do-mundo nos confins de Angola
terça-feira, 29 de dezembro de 2009
TOQUE A INIMIGO...!
O Major levantava-se sempre muito cedo, por mais que eu lhe sugerisse que relaxasse enquanto estivesse por ali, longe das suas obrigações de 2º comandante do Batalhão. Que tinha tempo, quando regressasse ao Cuito-Cuanavale, de exercitar aquele hábito meio militarizado de madrugar. O corpo, no entanto, estava habituado àquela tarimba e ei-lo que, todos os dias pelas sete horas, já vagueava pelo aquartelamento de mãos atrás das costas, esperando que nos levantássemos para lhe fazermos companhia. Entretanto ia metendo o nariz aqui e ali.
Um dia, logo após o hastear da bandeira, cerimónia a que assistia todos os dias com inusitada devoção (uma espécie de missa da madrugada que elevava a fé na instituição) o nosso Major solicitou ao oficial de dia que mandasse tocar a alarme para verificar como reagia a tropa. Segundo as regras militares, ao som daquele toque, toda a Companhia se deveria dirigir aos abrigos o mais rápido possível, tomando posição de combate, postando-se em defesa do aquartelamento.
O oficial de dia, receando alguma falha, decidiu perguntar ao corneteiro se conhecia o toque, porque para ele aquilo era uma novidade.
Embaraçado o corneteiro lá consultou os seus colegas de função e lá se arranjou uma “opereta” de circunstância, que se depreendeu dever ser parecida com o que solicitara o Major. Estou em crer que, ainda que muito diferente, o nosso Major não teria ouvido suficientemente educado para exercer qualquer crítica sinfónica. Para ele qualquer coisas serviria, desde que com o efeito programado.
De permeio o corneteiro lá foi bufando pelo canto da boca a um ou outro companheiro que passava nas proximidades, que aquilo que se ia ouvir era um toque de alarme, pelo que todos se deveriam dirigir aos abrigos. Sintoma que não augurava grande crédito ao corneteiro quanto à peça melódica que iria ecoar pelos ares nas terras do fim do mundo.
Assim foi. O toque soou, com o pessoal a encaminhar-se pachorrentamente para os abrigos em amena cavaqueira e cigarrito ao canto da boca – alguns com a arma apoiada no ombro segura pelo cano – cumprindo aquela chatice de alguns terem que sair da cama mais cedo e outros a irem à caserna buscar a arma, quando já se encontravam nos trabalhos que lhes estavam destinados naquele dia. Parece que quinze minutos depois de ter soado o toque de alarme ainda havia soldados a dirigirem-se para os abrigos, quando o nosso Major, de relógio em riste, esperava que o tempo não ultrapassasse um ou dois minutos para considerar aceitável a resposta dada ao sinal de alarme.
O nosso Major ficou destroçado e incrédulo, enquanto o Alferes se mostrava incapaz de encontrar alguma justificação plausível que satisfizesse a frustração de nosso Major, perante tanta “permissividade” da tropa.
Habituado ao toque costumado do hastear da bandeira, autêntico despertador natural do mato, acordei um pouco confuso com aquela nova melodia. Levantei-me de um salto, como quem não quer perder nada da festa que parecia anunciar-se com aquele rebate matinal.
Já me dirigia para a messe quando, autenticamente “emboscado”, o Major me esperava a meio do caminho das tabuinhas, agitando frenético e nervoso os dedos das mãos atrás das costas. Eu já lhe conhecia o gesto e a partir daí comecei de imediato a desmontar a ideia de festa que me vinha animando a alvorada.
Sem mais delongas, ainda eu não tinha desfeito a continência, já ele desfiava logo ali a enorme ladainha do seu descontentamento e estupefacção pela resposta totalmente inadequada que a minha tropa tinha dado ao toque de alarme. Percebi de imediato o significado daquela estranha melodia que me tinha acordado prazenteira logo pela manhã.
Desliguei um pouco daquilo que ouvia, enquanto o Major continuava a despejar-me motivos de sobra para as minhas futuras preocupações, que deveriam concentrar-se naquele desastre de segurança para todos. Incluindo o Major, claro. Por fim encontrei algo para dizer.
- O meu Major não se importa de esperar umas horas?
- Umas horas? Mas para quê? Respondia-me sem vislumbrar o meu ponto de vista.
- Isto não pode ser. Um dia o inimigo entra-vos pelo quartel dentro e vai ter convosco à cama.
Percebi que era uma visita que o Major não desejava, pelo menos enquanto se mantivesse por ali. Julgo que terá sido o momento em que, por fim, sentiu a insegurança que todos nós vínhamos sentindo havia largos meses, por via do isolamento em que nos encontrávamos.
Contudo, após mais uma ou duas censuras lá anuiu e acalmou. Durante todo o dia não se falou mais no assunto mas sentia-se que o Major tinha ficado incomodado.
Escureceu.
Logo a seguir ao jantar, solicitei a um dos Alferes que levasse o nosso Major para junto das casernas onde os militares se acomodavam para dormir. Intrigado o Major deixou-se conduzir, sempre naquele seu ar de latifundiário com boa vida, mãos atrás das costas e passos lentos despreocupados.
No silêncio da noite fiz explodir uma granada ofensiva nas proximidades das casernas. O estrondo naquele silêncio nocturno soou demolidor.
Foi um pandemónio. O Major quase foi atropelado e teve que se proteger. Em menos de um minuto as casernas ficaram vazias e todos os soldados ocuparam os seus postos de combate. Peguei no Major e convidei-o a percorrer comigo todos os abrigos. Parte dos soldados, ou estavam em cuecas e descalços, ou em tronco nu, mas de cartucheiras à cintura e a espingarda na mão. O Major não balbuciou uma palavra, nem voltou mais a falar no assunto. Apenas me respondeu quando, perante aquele quadro, lhe disse:
- Meu Major; é que não estou propriamente à espera que o inimigo me apareça e eu tenha tempo de mandar o corneteiro tocar a alertar porque nos vão atacar...!
- Pois. Mas sempre era bom que conhecessem o toque...
- ... ?!!
In “Capitães do Vento”, Roma-editora.
sábado, 19 de dezembro de 2009
O NATAL
Por mais que tente, não sou capaz de recordar o que quer seja dos dois últimos natais passados em África.
Parece que as células, os neurónios ou o que quer que seja que tem por função a preservação das memórias, não terão cumprido a sua missão. Nem uma imagem, um simples lampejo, uma fotografia… nada.
Já me perguntei várias vezes o que terá acontecido no natal de 1972 - o passado na Neriquinha - para não ter ficado nada registado.
Terá sido do calor que em Dezembro calcina África?
Terá sido assim tão traumático?
Parece amnésia. É que nem tenho uma só fotografia. Mas deve ter sido com a malta e com boa disposição.
Só me recordo do primeiro Natal, o passado no Rivungo, um mês e pouco após ter ali chegado.
Do último também não retenho nenhuma lembrança. Nessa altura penso que ainda estávamos nas Mabubas.
Ou não?
Tenho a certeza que regressei a Lisboa no dia 6 de Janeiro de 1974.
Provavelmente já tínhamos sido rendidos e estávamos em Luanda à espera do transporte que nos trouxe de regresso a casa.
Provavelmente essa é a explicação. Luanda … nada de oficial para fazer, galdeirice, brincadeira, noitadas…
Sim. Disso lembro-me.
Está explicado. O natal de 1973, em Luanda, passou sem darmos conta.
Espera!
Foi nessa altura, quando já pouco havia para fazer, que um acidente estúpido nos levou o Morgado.
Estava na praia, na brincadeira. Um mergulho mal calculado e partiu o pescoço.
Não quis acreditar.
Ao fim de tudo por que passáramos?
Quando já só faltavam uns escassos dias, havia de acontecer outra desgraça!
Cada um à sua maneira já tinha travado a luta com os sentimentos, mandado as saudades às urtigas e tentado sublimar a perda irreparável do Gonçalves.
O destino, ou o que quer que seja a força que nos domina, havia de nos pregar mais uma partida. A última.
Esta minha cabeça tem destas coisas. Mais uma vez concluo não perceber como funciona a memória.
Não me lembro de um só pormenor dos dois últimos Natais em África. Mas dos dois camaradas que não regressaram, lembro-me muito bem.
Fica aqui a homenagem.
Com tristeza mitigada pelo tempo, mas com saudade reforçada.
Um bom natal para os vivos.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
ARTESANATO
Com a ajuda do fogo atiçado pelo soprar do par de foles artesanais, levavam ao rubro pedaços de molas das suspensões das viaturas, moldando o aço até o transformarem em utensílios.
Os machados, ali chamados de javites, eram produzidos em diversos tamanhos. Com eles esculpiam a madeira ou cortavam lenha, sem necessidade de recorrer às modernas ferramentas então existentes.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2009
Sons e imagens do blogue no "LANCEIRO"
Seleccionado e editado pelo meu bom amigo José Manuel Santos Costa, Director e Editor da revista "Lanceiro"
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
SPM 5816
- Lá vem eeeeele …
O alarme ecoava pelos quatro cantos do aquartelamento, precipitando uma correria desabrida em direcção à pista. A calma reinante era abruptamente violentada por um turbilhão de homens, atropelando-se à saída da caserna, do quartinho das transmissões, do depósito de géneros, oficina auto, cantina e de onde quer que soldados sargentos ou oficiais se encontrassem. Até da enfermaria.
As tarefas em curso paravam, o jogo de cartas cessava e a brincadeira, se a houvesse, morria. Os preguiçosos ganhavam vida e os dorminhocos acordavam. Fosse o que fosse que se estivesse a fazer, era interrompido. De momento apenas interessava o pequeno Cessna que acabava de aterrar no meio de uma nuvem de pó. E não era para menos: trazia-nos o bem mais precioso - notícias de casa.
Todas as terças e quintas, era sabido que o pequeno avião aterraria ali, deixando correio e outras pequenas coisas, levando no regresso aerogramas cheios de palavras que transportavam saudades e sabe-se lá mais o quê à mistura com as histórias que cada um contava aos entes queridos que, lá bem longe, aguardavam com ansiedade as notícias, que se desejava não fossem más.
Nunca fui muito assíduo a escrever à família que, nas minhas ausências, sempre se queixou da escassez de notícias. Ali, embora não houvesse grande coisa para contar, garatujava sempre meia dúzia de frases que enviava ao maior número de pessoas conhecidas: pais, irmãos, tios, primos, amigos, namorada, etc. O que importava era que, por cada aerograma amarelo que enviava receberia um azul como resposta. Tanto mais que estava isento de taxa e o papel era gratuito.
A importância de receber correio era inquestionável. Constituía o nosso único elo de ligação com tudo o que deixáramos para trás. Matar saudades e saber das novidades que de outra forma não podiam chegar, era quase tão importante como respirar.
- Hoje é dia de São Correio.
Dizia-se logo pela manhã.
Sim, porque dia de correio era como se fosse dia santo e não creio que seja aqui possível expressar por palavras, a forma como condicionava os comportamentos, varria as tristezas, trazia alegrias, alterava os humores, transportava cheiros, ainda que imaginados e satisfazia desejos sonhados. Mesmo aos analfabetos, que os havia.
Na véspera, todos procuravam o recato, escolhendo o melhor lugar para alinhavar umas quantas palavras. Uns sentados sobre a cama, improvisavam mesas colocando sobre os joelhos malas, revistas ou o que quer que oferecesse apoio à escrita. Outros escolhiam o refeitório e quem não sabia escrever confiava a tarefa ao camarada mais à mão. Na camarata dos furriéis, as mesas-de-cabeceira entre os joelhos serviam na perfeição. Os oficiais também não escapavam e até o Dr. Lacerda, o alferes médico, colocando uma tábua sobre os braços da cadeira, improvisava uma mesa, encontrando uma pose própria para o recolhimento necessário.
Todos buscavam a concentração começando provavelmente por:
- Queridos pais.
A que se seguiria:
- Espero que estejam todos de boa saúde… que eu vou bem com a graça de Deus
Depois, uma pausa acompanhada de coçar na cabeça pensativo à procura do que dizer.
O Ramires escrevia longos tratados, parecendo sempre inspirado, ao contrário de mim que mal conseguia preencher a parte central do aerograma. As notícias eram poucas e francamente, nunca consegui entender o que raio tinha o Ramires que contar para tanto escrever. A seguir à missiva para os pais seguia-se outra para a namorada. Sabíamos isso porque ligava o pequeno leitor de cassetes e escrevia ao som dos êxitos do Juan Manuel Serrat, saídos de uma gravação caseira que trouxera de Lisboa. Ouvi tantas vezes a sequência que já me parecia tudo uma e a mesma canção alongada pela colagem de umas a seguir às outras, facto ajudado pela semelhança melódica de todas elas.
Os aerogramas eram depois dobrados com preceito e depositados na caixinha junto à secretaria. O cabo escriturário encarregar-se-ia do resto.
Nos dias de correio, a expectativa gerava uma romaria que ia entupindo o posto de transmissões em busca de notícias sobre a hora de chegada do pequeno avião. Era dali que vinha a informação sobre o seu trajecto. Logo que aterrava em Mavinga, os de lá informavam via rádio o que não impedia que os mais ansiosos se transformassem em sentinelas varrendo o céu com olhares expectantes.
O percurso desde Serpa Pinto era sempre o mesmo e os horários variavam pouco. Perto da hora do costume, fixavam o olhar no horizonte, no lado norte da pista, na direcção de Mavinga. Mal divisavam o pequeno ponto escuro no azul do céu, gritavam numa autêntica explosão de euforia que ecoava por todo o aquartelamento.
- Lá vem eeeeeele…
Depois precipitava-se uma correria para a pista enquanto o avião evoluía pousando com a mestria que denunciava a experiência que os milhares de horas de voo conferiam ao homem que o pilotava.
O Barros, para além de piloto experiente, era uma pessoa muito estimada, não obstante apenas se demorar poucos minutos em cada sítio. Era muito popular, mas apenas por ser aquele que nos trazia o tão desejado correio. Creio que ainda hoje, volvidos tantos anos, quase todos se lembram do seu nome e dos óculos de aros grossos que usava. Era também sócio da TASA (Transportes Aéreos do Sul de Angola) empresa proprietária da frota de pequenos aviões que tinha o exclusivo do transporte de correio e tudo o que viajasse por via aérea naquele pedaço de fim de mundo. E o negócio corria bem. O pequeno puxa-empurra com um motor à frente (o que puxava) e outro atrás (o que empurrava) foi substituído por um maior e mais moderno.
Fazia normalmente o mesmo percurso. E isso permitia calcular a hora de chegada. Já conhecíamos a sequência e o tempo entre cada localidade. A seguir a Mavinga era a Neriquinha, seguindo daqui para o Rivungo. As ligações rádio faziam o resto, transmitindo as informações que controlavam o voo e precisavam as horas da chegada.
Mal se imobilizava na pista era imediatamente cercado por homens ansiosos, procurando adivinhar, pelo volume do saco, a quantidade de cartas que trazia.
O saco de lona acinzentada, entregue ao escriturário, era escoltado no seu percurso até à secretaria como se de uma preciosa relíquia se tratasse. Todos lhe queriam tocar sendo sempre levado por quatro ou cinco, cada um pegando por uma ponta.
Depois, apinhavam-se junto à janela seguindo com olhos ávidos o trabalho do cabo escriturário no processo de separação dos vários sobrescritos. Os brancos para um lado e os azuis para o outro.
O maço de cartas era depois entregue para distribuição ao sargento-de-dia que, seguido por um bando de gente ansiosa, saía da secretaria e dirigia-se até a sombra de uma árvore existente a meio caminho entre a messe e o refeitório, frente ao topo da parede pré-fabricada da caserna. Aí, rodeado por todos, ia anunciando os nomes inscritos em cada carta.
- Eu, eu.
Respondia alguém como se tivesse ganho a lotaria, ao mesmo tempo que uma mão se elevava para recolher o prémio.
- Sousa.
Continuava o pregão.
- Hoje não lerpas! Exclamava Alguém.
Outros recebiam duas ou três. Era dos pais, da namorada, ou da madrinha de guerra. Por vezes da mulher, que alguns já eram casados … e com filhos. O Tabanez já tinha uma filha quando embarcou.
Nestes casos, as saudades eram maiores. Quando, em vez do aerograma vinha mesmo uma carta, até os olhos brilhavam. Provavelmente trazia uma fotografia do rebento. É que, o aerograma era gratuito mas não podia lá ser colocada coisa nenhuma, nem se podia acrescentar espaço. Tudo que tivesse de ser dito, tinha de caber na limitada zona de escrita.
- Cardoso! Anunciou o improvisado carteiro.
Reagi estendendo a mão para receber o aerograma azul, identificando de imediato o desenho arredondado que caracterizava a caligrafia da namoradita que deixara em Lisboa.
Egídio Cardoso,
Furriel miliciano
SPM 5816.
O Ramires era sempre contemplado com uma carrada delas. Só da namorada era p’rá aí uma meia dúzia. Mais duas da mãe, uma do pai e mais umas quantas de amigos. A trabalheira de tanto escrever tinha a sua compensação. Batia sempre o recorde no correio recebido. Mais de metade era para ele. Só a namorada escrevia um aerograma por dia. Com os atrasos e os fins-de-semana, acabavam por se juntar uns quantos. Abria-os todos, ponha-os por ordem e só depois se concentrava na demorada leitura.
Entretanto, cá fora, continuava a distribuição. A diminuição do maço de cartas fazia aumentar a angústia dos que ainda não tinham sido contemplados e, com a entrega da última carta, instalava-se a tristeza no rosto de quem nada recebera.
- Toma, lê a da minha madrinha de guerra!
Dizia um mais brincalhão que não fazia segredo das futilidades contidas na carta de uma correspondente arranjada em anúncios de revista.
Lê, faz de conta que é para ti.
Insistia, passando a carta já lida para as mãos do desafortunado.
Os felizardos espalhavam-se escolhendo cada um o melhor cantinho para a sôfrega leitura.
Provavelmente só os que não recebiam correio se apercebiam do roncar dos motores do Cessna correndo pela pista e ganhando rapidamente altura até desaparecer por sobre as copas das árvores. O Barros tinha um percurso a cumprir e não costumava demorar mais do que uns escassos minutos em cada pouso. O Rivungo era o próximo destino, para onde o pessoal das transmissões já comunicara, via rádio, a boa nova.
À noite, depois de saboreadas as notícias, muitos já pensavam no próximo Dia Santo, o dia em que de novo o pequeno Cessna, sempre pilotado pelo Barros, aterraria de novo na pista da Neriquinha com mais uma mão cheia de alegria.
domingo, 29 de novembro de 2009
Medicina natural
Um dia, estupidamente, ao pretender retirar a tampa, para compensar a água a que tinha sido expelida do radiador de uma BERLIET - com o motor sobreaquecido pela carga de dezenas de populares e de um hipopótamo morto nas lavras da N'riquinha Velha - esta saltou e levei um banho de água a ferver.
De imediato, um negro, elemento do Grupo de GE´s adstritos á Companhia e que acompanhava o seu Comandante, Fulai Monjuto, sem nada lhe ter pedido e sem procurar obter a minha autorização, sequer, veio junto de mim com o copo de alumínio que acompanhava o cantil, cheio de água e sal, muito sal, e aspergiu-a, várias vezes, na zona queimada. As dores não atenuaram, mas, segundo o Dr. Lacerda, o que ele fez foi desinfectar as queimadelas com uma espécie de soro de nitrato de sódio, o que evitou uma possível infecção e muitas complicações na demorada cura.
Um dia, estando com uma brutal dor de dentes, o Vicente (um miúdo que ajudava na oficina de mecânica) disse-me que uma velha no kimbo tinha cura para isso. Lá me foi indicar quem era e, depois de amassar umas pequenas sementes - parecidas com as de massango, um cereal tipo milho paínço- com os dentes, fez uma bola e, com um pauzito apanhado do chão, empurrou aquela massa escura pelo buraco do dente. Dois minutos depois as dores passaram e o dente acabou por desfazer-se ao longo dos anos sem que tivesse mais qualquer dor.
De outra vez, um ajudante, que o padeiro arranjara (de forma a tornar o seu trabalho menos duro e pago com alguns pães, diariamente) partiu um braço numa sortida à mata para recolher a lenha para o forno.
O Dr. Lacerda, lá lhe colocou umas talas e um pouco de gesso, o que o encheu de vaidade pela atenção que angariou no kimbo. No entanto, pouco tempo depois, encontrei-o junto à oficina a cortar lenha com um machado, como se nada lhe tivesse acontecido: ao fim de alguns dias com o gesso no braço, chegara à conclusão que era tempo a mais e, o feiticeiro/sábio/boticário/médico da aldeia, colocara-lhe no braço umas folhas que derramavam uma substância pastosa depois de aquecidas e que, rapidamente, lhe "colaram" os ossos.
sexta-feira, 27 de novembro de 2009
Operação Dango...
A operação tinha um outro nome de código. Mas vamos chamar-lhe por agora “Operação Dango” para melhor a localizar.
Alguns trechos do livro “Capitães do Vento” relativos a essa operação.
Ficamos à espera que o Gabriel Costa nos conte a versão do outro lado da recolha do pessoal envolvido na mesma.
…/… Às duas da madrugada partimos distribuídos por sete viaturas Berliet, mais de metade fornecidas por Mavinga. As da Companhia, uma andava sem problemas, a outra tossia cada vez que o pneu se enterrava mais na areia da picada. A terceira estava de baixa. O percurso até ao objectivo era longo e desconhecido. Demasiado longo como viríamos a verificar depois. A parte que seria feita a pé presumia-se que duraria um dia inteiro de marcha rápida até às proximidades do objectivo. As viaturas tinham que ser deixadas suficientemente longe, a fim de não denunciarem a nossa presença. Partimos cedo na intenção de caminhar logo ao alvorecer, fugindo durante umas boas duas a três horas à inclemência de um sol abrasador que se esperava.
…/… Desembarcamos das viaturas cerca das seis horas. Orientei a minha carta com o auxílio da bússola e tracei o rumo a partir de um azimute previamente calculado.
…/… Depois da minha experiência no norte de Angola, eu ali andava quase de olhos vendados. Em todo o tempo de N’riquinha jamais falhámos um rumo. Na prática, durante os percursos consultava a bússola a espaços apenas para confirmar o que intuitivamente me parecia correcto. Os GE’s confirmam, por conhecimento de séculos de vivência naquela região, que aquela é a direcção certa. Se não o confirmassem eu não teria dúvidas em rever os meus cálculos.
…/… Às 14 horas começa a faltar água, após uma breve pausa para almoçar. O calor era abrasador. Não soprava qualquer brisa. A fraca arborização da savana não permitia trajectos mais frescos. A urgência em aproximarmo-nos do objectivo não sugeria grandes contornos. A velocidade a que nos deslocávamos deixava-nos exaustos e alguns começavam a ficar para trás, obrigando a paragens para recuperação dos menos preparados.
…/… Ás dez horas da noite caminhávamos devagar, apalpando o terreno plano da chana. A noite estava escura. A lua ainda não tinha aparecido. Distinguíamos os nossos vultos mas não os contornos definidos dos nossos corpos. Aquela espécie de monstro alongava-se por mais de trezentos metros de comprido.
De repente, um grito abafado de uma das mulheres que seguia na frente. Largou a trouxa que trazia à cabeça e fugiu em direcção à mata que bordejava a chana do rio. Os três GE’s que iam à minha frente saltaram cada um para seu lado. Ao mesmo tempo senti algo volumoso bater-me nas pernas e, sem compreender o que se passava, saí instintivamente do trilho em que vínhamos.
- Pisámos uma jibóia, meu captão. Schii; era grande mesmo! - Esclareceu um dos GE’s.
…/… Por fim, por volta das nove horas, ordem para parar. Estávamos no local. Tratava-se de uma confluência de um afluente de rio que entroncava naquele ao longo do qual vínhamos desde o dia anterior. As chanas eram muito largas. Os rios corriam estreitos no meio do descampado de capim seco que as formavam.
Segundo as mulheres eram dois acampamentos. Um na margem direita e outro na esquerda daquele afluente. Distavam um do outro cerca de um quilómetro. Conforme vinha planeado, o grupo de Mavinga atacaria o da margem esquerda e nós o da direita. Fora estipulado o local de encontro após o ataque. Os de Mavinga atravessariam o rio mais acima e viriam ter connosco.
…/… O Fulai ia falando com as mulheres que manteve sempre junto de si. Perguntei o que é que elas diziam.
- Elas dizer que guerrilhêro e popração já fugiu tudo! Muitos tropa! Muitos barulho!
…/… E assim foi. Para lá de uma ou outra escaramuça com uma rajada a sobrevoar-nos, dilagramas e umas trocas de tiros de morteiro, a grande operação acabou num fiasco, mesmo com aviões a mergulhar por cima de nós e a lançar foguetes sobre alvos vazios.
Eram ainda as tácticas da 2ª Guerra Mundial em uso no ano de 1972.
Aparentemente, pouco tínhamos aprendido desde 1961. Quer os generais queiram, quer não...
A recolha.
…/… As viaturas tinham já partido de madrugada de N´riquinha para nos recolher. Mas a odisseia daquela operação não estava ainda terminada. Pelas nossas contas o encontro devia dar-se por volta do meio-dia. Às treze nem viaturas nem qualquer ruído longínquo que pudesse significar a sua presença. A impaciência começou a instalar-se. Os GE’s de Mavinga ameaçavam ir a pé até a casa. Uns 120 quilómetros que se dispunham a fazer apenas porque estavam a ficar aborrecidos com aquela estória das viaturas não aparecerem.
…/… Funcionávamos ali como uma espécie de náufragos perdidos em mar revolto à espera de uma ponta de sorte que nos levasse aos salva-vidas que nos procuravam. A DO voltou a levantar de N’riquinha a fim de fazer uma avaliação do desencontro. Do ar era fácil localizar a nossa posição e a das viaturas. Só que a DO não tinha contacto rádio com estas: só connosco.
O Major de operações a bordo do avião viveu uma situação de impotência que o fez desesperar. Como fazer compreender aos das viaturas que estavam a andar mal em relação à nossa localização sem contacto rádio? O avião fazia cabriolas, depois passava muito baixo sobre as viaturas agitando as asas e apontando com o sentido do próprio voo a direcção correcta que as levaria até nós. Mas no chão quem podia compreender isto? Para eles o avião estava a saudá-los e a congratular-se com qualquer coisa que não compreendiam.
Num rasgo de improviso e imaginação lusitana, o nosso Major regressou à N’riquinha e, munindo-se de embalagens de granadas de morteiro 60 meio cheias de areia, voltou lá. Do ar enviou então as embalagens com um pequeno bilhete que dizia: “Sigam a direcção do avião!” Como ainda estavam bem longe de nós, na marcha que serpenteava por entre as árvores alteravam com frequência o rumo certo. A DO voltava a insistir nos voos rasantes redefinindo o rumo certo. O Solnado não teria imaginado melhor uma guerra como aquela. Era um pouco assim a guerra em África, em Janeiro de 1972.
Por volta das quinze horas o encontro deu-se por fim. O pessoal das viaturas vinha com oito horas de marcha e esperava-os outras tantas no regresso, que poderia ser menos moroso uma vez que bastava agora seguir os sulcos dos rodados deixados na vinda, sem preocupações de orientação. Mas a carga era de mais de vinte militares por viatura, mais o armamento e bagagem.
…/… Acomodei-me o melhor que pude procurando o espaço necessário para estender as pernas. Perto de mim encontrava-se um Furriel que tinha vindo na coluna. Procurei indagar como tinha corrido a viagem e as dificuldades que tinham encontrado. Era sempre bom ficar com uma ideia dos problemas para que, se possível, mais tarde não voltassem a repetir-se. Essa era, pelo menos, a minha perspectiva.
Não tinha sido muito difícil fazer a maior parte do percurso porque era tudo plano. Além disso tinha sido recrutado um nativo no aldeamento que dizia ter vivido naquela região anos atrás. Colocado no rebenta minas (parte da viatura sobre o rodado dianteiro) tinha vindo todo o caminho indicando com o braço o rumo a seguir até às nascentes do rio. Cerca de seis horas nesta função, porque a primeira parte do percurso era uma picada já conhecida. Concluíram que, na realidade, não ocorreram desvios no rumo que o nativo veio indicando. A memória daquela vasta região, quase sem pontos de referência, estava-lhe intacta na memória. Apenas ocorrera um curto episódio. O nativo solicitou ao chefe da coluna, se seria possível passar numa determinada árvore e parar por momentos para ele ir buscar uns haveres, que enterrara anos atrás. O Furriel nem queria acreditar. No meio de milhares de árvores, aparentemente todas semelhantes e dispersas numa paisagem monótona como era aquela que se estendia por dezenas de quilómetros, como é que seria possível localizar e identificar uma delas? Pois não se enganou uma só vez. À primeira identificou a árvore e só não recuperou todos os pertences (uns recipientes para água, segundo dizia) porque entretanto a maior parte deles já tinham sido roubados, o que não deixou de ser muito estranho numa zona árida e isolada como aquela. Uma questão a ser dirimida mais tarde com a guerrilha, supõe-se.
…/… Trazíamos apenas cerca de meia hora de viagem. O dia ia ficando cada vez mais escuro à medida que se aproximava o anoitecer. Perto de mim sentava-se o Furriel Leitão do 4º Grupo de Combate. Repentinamente, este colocou-se de joelhos e apontou para fora.
- Está ali qualquer coisa a mexer, diz.
Mandei parar a viatura. Sobressaltei-me. Uma emboscada? De facto, era só o que faltava para rematar aquela sequência de maus acontecimentos. Mandei apear alguns soldados como medida de segurança.
- Não é uma emboscada! Está ali uma coisa a mexer, mas não está escondida.
Mandei o Leitão ao local que distava uns quarenta metros. Voltou trazendo uma criança que aparentava uns seis, sete, anos de idade. Estava nua e tremia tanto que a minha primeira avaliação foi de que se tratava dum epiléptico em plena crise. A criança foi colocada entre as pernas de uma das mulheres capturadas, que a agasalhou com os panos com que se cobria. Continuava com movimentos desconexos e tremores intensos. A mulher aconchegava-o mais. Os seus olhos mortiços muito brancos fitavam-me como berlindes reluzentes desconformes num rosto magro de fome e pouca infância. Fitar-me-ia o caminho inteiro. Com tantas ordens que eu ia debitando apercebeu-se de imediato quem era ali o inimigo mor. Embora óbvio, mandei ao Fulai que perguntasse às mulheres se o conheciam. A criança tinha fugido aquando do assalto e vagueara sozinha perdida durante dois dias e uma noite, até que caíra exausta de fome e frio. A noite tinha sido toda ela de tempestade. Não teria por certo resistido a mais aquela noite, caso o Furriel a não tivesse vislumbrado naquele espaço de mata aberto onde caíra. Éramos a última viatura e ele foi o único que a viu.
Deste episódio houve uma dúvida que sempre me ficou. Quando se agitou era para que o víssemos ou procurava esconder-se? Só o terrível inimigo se fazia transportar em viaturas ruidosas. Só este varria os céus com “modernos” engenhos prateados sobreviventes da 2ª Guerra, roncando e vomitando foguetes de fogo que queimavam cubatas vazias.
Escondia-se, por certo.
Passaram seis viaturas com 120 pares de olhos. Muitos deles especialistas naquele tipo de vegetação e exímios em descortinar o inimigo acoitado. Ninguém o viu. Porquê só o Leitão? Provavelmente uma mão de Deus. Deus a quem na hora questionei com ironia de ateu insolente: mas porquê as crianças, senhor?
P. Cabrita
Dango, Agosto de 73 - Mabubassexta-feira, 20 de novembro de 2009
O Hipopótamo.
Estando eu por ali perto e tendo tomado conhecimento da conversa, quando dei por mim já estava prontíssimo com uma Berliet pronta a arrancar. Rapidamente fizemos o caminho, levando o Fulai, o Comandos como motorista, um ou dois soldados mais e alguns elementos familiares do Fulai, creio. O Furriel vago-mestre Morais, foi requisitado como fotógrafo e aí vamos nós.
Quando chegámos, o espectáculo era quase de circo. Dezenas de pessoas, em alegre algazarra, cantavam, dançavam e discutiam ao mesmo tempo, sendo, para mim, apenas certo que, tudo aquilo, se devia à expectativa de um bom fornecimento de carne e à eliminação do destruidor dos produtos, milho e massango, que ali cultivavam.
Ao longe, numa ilhota, um hipopótamo, incapaz de entrar na água por causa de um ferimento na barriga do tamanho de uma janela e feito, possivelmente, na luta com um parceiro mais ciumento e mais poderoso, andava de um lado para o outro, inquieto, dolorido e desfazendo tudo à sua passagem.
Tinhamos que lhe acabar com o sofrimento e arrastá-lo para a margem. Nas calmas, eu e o Fulai, o único que autorizei a atirar, lá abatemos o bicho que levou mais de 30 ou 40 tiros na cabeça, até cair. Arrastá-lo para a margem foi mais complicado. O cabo do guincho da Berliet dava á justa e foi necessária a ajuda de todos os presentes para facilitar a tarefa, pois o animal pesava uma barbaridade. Colocá-lo na caixa de carga, foi mais fácil: esquartejaram-no com javits (machado artesanal, afiadíssimo) e foi carregado às peças.
No regresso, com o peso do animal e de quanta gente por ali havia, o motor da Berliet não aguentou o excesso de carga e vai de aquecer no meio da picada de areia, debaixo de um sol abrasador. Parámos. Para fugir à barulheira dos cânticos de alegria de meia população da província, tantos eram, optara por vir sentado nos sacos de areia no guarda lamas. Preferia ouvir o barulho do motor do que aquela gritaria de contentamento. Assim, estando mais perto do radiador, cometi uma asneirola de principiante e
desapertei a tampa do radiador com a sola da bota, à falta de um bocado de desperdício ou de mais inteligência. Pôrra!
A porcaria da tampa desliza para o lado e apanhei um banho de água quente e vapor que me lambeu a pele das pernas e da barriga, obrigando-me a andar enfaixado mais de uma semana, até nascer a pele nova. Ainda hoje cá andam as marcas.
O hipo foi comido no Kimbo. A pele do mesmo foi cortada em tiras finas, secas ao sol e ficaram duras como madeira. Usaram-nas para fazer chibatas que serviam para imitar os pingalins. Os dentes, salvo erro, foram parar à mala do Furriel Fielas.
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
O célebre cilindro...
Afinal tinha cá o célebre cilindro. Espero que o nosso amigo Rosinha passe por aqui para identificar o artefacto.
Revisitei os meus slides.
Esta é uma primeira experiência para ver como fica de nitidez. Se resultar... tenho umas dezenas para ir salpicando o blogue de imagens com história. A nossa história. Espero que não se torne cansativo.
P. Cabrita
Berlliet's atoladas - Relembrar
Levámos cerca de 3 horas para tirar a viatura que estava assente nos semi-eixos, mesmo utilizando mais duas berlliet's e respectivos guinchos.
Só uma ideia meio louca e desesperada resolveu o problema. Trata-se de uma ideia bem guardada porque está por patentear... É apenas uma questão de oportunidade...
P. Cabrita
2ª Liga - Jornada única
Não sei se alguém se recorda disto. Mas se avaliarem alguns dos atletas talvez se recordem.
Primeiro reparar que se tratava de um jogo de alto nível. A presença do Soba assim o indica. Foi o convidado especial e teve a honra de dar o pontapé de saída.
O jogo foi arbitrado por juiz devidamente equipado (o nosso furriel Fielas devidamente fardado no seu garboso camuflado...) e não me lembro do resultado; acho que nem golos terão ocorrido, embora o campo tenha ficado bastante maltratado.
Para os que não se recordam, este jogo foi realizado numa comemoração qualquer. Talvez um ano de comissão, ou algo parecido.
A ideia foi juntar duas equipas de jogadores que nunca tivesse dado um pontapé de jeito numa bola de futebol. E então, estes foram os eleitos. Ainda me lembro de alguns lances que me ficaram na retina para todo o sempre...
Um jogo fantástico... e não é preciso acrescentar mais nada...
Notas:
1- A salientar o penteado primoroso (já com gel na altura) do nosso alferes Aranha; jogou a médio ala pela direita... mas percorreu o campo inteiro. Perguntado no final do encontro, referiu que teve necessidade de percorrer todo o campo porque em determinada altura suspeitou que ninguém lhe passava a bola ... Vai daí, decidiu ir em busca dela... sem resultados...
2- De registar também o chapéu do Araújo. Compreende-se. Eram 5 horas da tarde, fazia algum calor e o nosso Araújo (meu guarda-costas nas operações) tinha que ter alguns cuidados tendo em conta a alvura da sua pele nórdica...
3- O Braguinha que não encontrou outro lugar para se posicionar na foto senão ao lado de outro baixinho, o Araújo... Se não é o dobro da altura, anda lá perto. Bem; que lhe fazia uma boa sombra, fazia...!
PS
Já agora o porquê do Araújo me servir de guarda-costas nas operações. É que, com aquele tamanho, havia sempre a possibilidade de um qualquer tiro encalhar primeiro nele...
P. Cabrita
GE's
Alguns dos nossos GE's. Julgo que quase todos comandantes de secção.
Agora; três deles usam óculos. Alguém me explica onde era o oftalmologista no kimbo que nunca dei por ele...?
Ou será que se tratou de mais uma negociata do Lupale com uma importação fora do controlo das entidades administrativas...?
Alguém que explique isto. Julgo que quando chegámos à N'riquinha eles já usavam óculos. Logo, foram adquiridos antes de nós.
Mais um mistério...
Ainda o DANGO
Em determinada altura achei que ele os emprestava aos outros miúdos do kimbo que também os queriam experimentar. Ao fim e ao cabo, sapato na N'riquinha era uma novidade e ... um luxo.
Na outra foto, já mais crescidinho, com par de calças com pouco mais de 2 semanas de "trabalho" e camisa na mão para mostrar os efeitos da jornada...
Tenho alguma fé que ainda vamos encontrar o Dango um dia
terça-feira, 17 de novembro de 2009
A Cerimónia
Ao aproximar-me, para fotografar o que eu pensava ser uma festa indígena, já que o batuque, ao invés do normal, começara pela manhã, fui avisado pelo João Cassumbi e pelo Vicente - dois miúdos negros curiosos da mecânica automóvel e condutores para os pequenos serviços dentro da Companhia - que não me era permitido assistir à cerimónia. Portanto, armei-me com uma Vivitar de 200 mm e, com a minha velhinha Cannon F1, lá fui, de longe e circulando de palhota em palhota, fotografando a cena.
Basicamente, o embalo ritmado e hipnótico do batuque e os movimentos simples da dança repetidos milhares de vezes, colocaram a paciente em êxtase e, depois de morta uma galinha, foi aspergida com o sangue da ave e esfregada com sal grosso. As duas curandeiras de serviço, ora se sentavam no meio de um vasto grupo feminino que entoava uma canção de sons baixos e roucos, ora se levantavam e rodeando a doente, repetiam uma lengalenga monocórdica, abanando uns guizos, feitos com uma lata de salsichas cheia de pedrinhas, ao mesmo tempo que lhes percorriam com as mãos, o corpo de cima a baixo. Os mais novos assistiam calados, observadores e com um ar respeitoso.
A cerimónia durou horas e, no final, quase todos os intervenientes estavam possuídos pelo ritmo dos tambores.
Terminou quando, exausta, caiu sem sentidos no chão.
O Dango
O Furriel Leitão desceu da Berliet, que eu conduzia em substituição do condutor Gouveia, que adoecera à última hora. O pobre garotito chorava sem parar e, como não se vislumbrasse ninguém nas cercanias, para ali não ficar só, foi, então, entregue a um elemento feminino da população que connosco fazia a viagem de regresso (não me lembro como apareceu junto de nós nem donde viera).
Mamando no peito da sua conterrânea, calou-se e lá seguimos, sendo criado com carinho entre brancos e negros e passando a ser o ai-Jesus da Companhia.
Na hora do regresso à Metrópole, se a memória não me falha, foi entregue em Salazar numa organização religiosa que o acolheu, tendo o Capitão Pedro Cabrita tomado a seu cargo toda a trabalheira necessária para ali ser recebido o Dango. O nosso Dango!
domingo, 15 de novembro de 2009
O Kimbo da Neriquinha
Normalmente os Ganguelas não se preocupavam com a geometria, quando construíam os seus abrigos. Era onde calhava ou onde desse mais jeito. Apenas servia para se abrigarem à noite, já que toda a lide doméstica era feita no espaço circundante.
O Capitão entendeu que a situação precária de muitas das cubatas e a anarquia das ruas do Kimbo justificavam uma intervenção urbanística. Incumbiu-me de fazer o levantamento e identificar as que necessitavam de renovação, as que deveriam ser totalmente reconstruídas e alinhadas e ainda equacionar o eventual alargamento da aldeia.
Fiz qualquer coisa, mas a adesão da população não foi muito entusiástica. Para quê tanta trabalheira se o que existia era suficiente?
O calor era intenso e as poucas sombras convidavam ao descanso. Mas, uma coisa ou outra foi renovada. Por exemplo, um celeiro novo foi construído. Contudo, não me pareceu que isso tivesse resultado da iniciativa do Capitão.