quarta-feira, 1 de agosto de 2012

O Pinheiro recebeu uma carta

Já por mais do que uma vez fiz aqui referência à importância da chegada do correio às terras da Neriquinha. Aqueles dois dias por semana, aqueles em que o pequeno aviãozinho da TASA aterrava no meio de uma nuvem de pó vermelho para nos deixar uma mão cheia de aerogramas carregadinhos de notícias de casa, traziam mais alento ao pessoal do que uma boa refeição de bife com batatas fritas. Era uma espécie de religião, um desejo incontido, um vício irresistível, autêntica dependência saudável, fazendo com que os outros dias fossem meras etapas de um caminho que desaguava em cada terça-feira e se repetia à quinta, seguindo-se um longo interregno com um fim-de-semana pelo meio já que, ali, sábados e domingos não eram diferentes de qualquer outro dia da semana. Desde que não fosse dia de correio eram todos iguais.
De facto, verdadeiramente especial, o nosso dia santo, era mesmo o dia em que se recebiam notícias. E era ver o sossego que se seguia à distribuição da correspondência, recolhendo-se cada um ao seu canto, lendo e relendo avidamente as palavras que, não podendo ser ditas, vinham escritas em cada aerograma azulinho. Era a carta dos pais, dos irmãos, dos tios e primos. Todos escreviam. A da namorada era sempre a primeira a ser lida, cada um à procura do cantinho onde fora deixado o beijo, desvanecido pela distância, já sem gosto mas mentalmente ressuscitado por uma réstia de perfume.
Era bem visível nos semblantes a tristeza daqueles que, por uma razão ou por outra, não recebiam nada. Por vezes, o pai e a mãe, porque analfabetos, tinham de recorrer a um vizinho, ou conhecido e isso condicionava a frequência da escrita. Mas, de vez em quando, nem que fosse uma vez por mês, todos recebiam notícias de lá de longe; com maior ou menor assiduidade lá vinha uma cartita, nem que fosse da madrinha de guerra.
Sim, o correio era fundamental, tão importante como as coisas verdadeiramente importantes. E isso era o que acontecia com todos, desde o oficial ao soldado, a começar no mais erudito e acabando no analfabeto. Sim, porque na 3441 havia uns quantos analfabetos. E, recorrendo ou não ao companheiro do lado, todos se dedicavam à leitura, devorando sofregamente cartas que narravam acontecimentos e transmitiam sentimentos, simples discorrências para encher a folha de papel, pura descrição de assuntos a que só a distância conferia significado.
Mas havia um que não encaixava em tudo isto. Um soldado que, tanto quanto me lembro, nunca recebera uma carta. Não sei a razão. Diziam que apenas tinha uma irmã que, vá-se lá saber porquê, não queria saber dele.
O Pinheiro era um homem estranho. Um chato. E isso via-se no dia-a-dia. Parecia não ter jeito para fazer amigos e, talvez por isso, costumava andar só. Não porque quisesse, mas porque os outros o enxotavam. Quando se nos dirigia, exibia um sorriso sarcástico, parecendo querer provocar irritação. Se calhar era apenas um esgar que não controlava. Um fácies aparvalhado. E ainda por cima era refilão, defeito que procurava disfarçar com bajulice, servilismo encapotado num trejeito untuoso. É isso, o Pinheiro era uma espécie de lambe-botas controverso que não convencia ninguém. Querendo parecer submisso era na verdade um insubmisso, mas no pior sentido do termo, com tendência para o sacana, embora, paradoxalmente, nunca se metesse na vida de ninguém nem criasse problemas.
O seu aspecto físico também não ajudava. As calças puxadas bem para cima, seguras pelo cinto que parecia apertado de mais, afundando a concavidade da barriga e salientando a ligeira aparência recurvada, ajudavam a compor um todo pouco harmonioso. De aspecto frágil, face esguia, bochechas chupadas e marcadas pelas cicatrizes do que teria sido uma acne profunda de que ainda sobravam algumas intumescências pustulentas enfeitadas de pelos mal semeados de uma barba desalinhada e pouco cuidada. Enfim, alguém que não atraía simpatias.
A verdade é que ninguém se lembra de alguma vez ter visto o Pinheiro receber uma carta. Nem da família, nem de qualquer amigo ou conhecido. E, pelos vistos, nem se dera ao trabalho de arranjar uma madrinha de guerra que preenchesse aquele espaço em branco na sua vida e isso podia explicar a sua pouca popularidade entre a malta. Não era apenas a falta de jeito para arranjar amigos; parece que também não seria lá muito popular no seio da família, de quem, aliás, nunca falava. Talvez por isso se pensasse que não tinha pais, havendo algumas referências à irmã, mas que ninguém sabia se era mais nova, casada ou solteira. O Pinheiro falara dela uma ou duas vezes, mas sem adiantar grande coisa. Contudo, isso foi suficiente para suscitar curiosidade:
- Olha lá! A tua irmã não sabe escrever? Perguntou um curioso.
- Ou és tu que não sabes ler? Atalhou outro de forma provocatória.
A tudo isso o Pinheiro respondia com evasivas, como se o assunto incomodasse.
- Não têm nada a ver com isso! Despachava com azedume.
É neste ambiente que surge uma ideia maquiavélica. Não sei de quem, mas começou a germinar em duas ou três cabeças vingativas um plano para fazer uma partida ao Pinheiro: iria receber uma carta. Uma carta remetida pela irmã. Contudo o seu conteúdo haveria de o tirar do sério. Na verdade teria de ficar furioso.
Três ou quatro muniram-se de uma aerograma em branco, sentaram-se na cantina à volta de uma mesa e começaram a escrevinhar:
Meu irmão. Espero que te encontres de boa saúde que eu cá vou indo com a graça de Deus.
Bem, os pormenores não interessam, nem os sei reproduzir. Na verdade nunca li a malfadada carta, mas sei que, no que lá foi escrito, a irmã, para além de o culpar de uma séria de maldades, só não o chamava de santo. Até palavrões meteram no meio de um conjunto de epítetos pouco abonatórios.
Dobraram o aerograma, escreveram o endereço sem grandes pormenores omitindo, por exemplo, o número da companhia já que se pressupunha ser pouco provável que a irmã o soubesse e no dia do correio, com a conivência do cabo escriturário, meteram-no no meio da correspondência.
Como seria de esperar, o Pinheiro não se juntou à pequena multidão que rodeava o sargento-de-dia, à sombra da árvore que, por força do hábito, se tornou o local de distribuição do correio. Contudo, alguém cuidou de o avisar que havia carta para ele.
-Carta? Para mim? Questionou meio incrédulo.
Mas era verdade, ali estava um aerograma amarelinho, com o seu nome no endereço. Mirou, virou o pequeno rectângulo de um lado, revirou do outro. Procurou o remetente mas estava em branco. De quem seria?
Não estando habituado a receber correspondência, nem ligou à cor da missiva. Normalmente, as cartas vindas do puto eram azuis. Os amarelos tinham sentido contrário. A não ser que fossem escritos por outro militar num outro local qualquer da guerra.
Remirou de novo, coçou a cabeça e sem pressa, maquinalmente, desdobrou o aerograma.
Os autores da brincadeira, mais uns quantos que se lhes juntaram, miravam de longe, agremiados, a ver no que aquilo iria dar
O Pinheiro começou a ler, silenciosamente, mantendo um ar carregado, saturado de pontos de interrogação como se questionasse:
-Da minha irmã?
Mesmo ao longe, notaram a alteração gradual do seu fácies. À medida que avançava na leitura, foi ruborescendo, o cenho carregando, os lábios crispando a denunciar a fúria crescente. O seu olhar parecia lançar chispas. Acabou de ler, amarfanhou furiosamente o papel e vociferou colérico:
- Puta de merda! Quem pensa ela que é?
Seguiu-se uma torrente de asneiras, tantas quantas conseguiu sacar do seu reportório de caserna, atirando-as em catadupa para cima da desgraçada, à medida que, gesticulando furiosamente, acelerava o passo em direcção à caserna. Durante um bom bocado ninguém mais o ouviu.
Comprometidos, os autores da patifaria, riam à socapa. Creio que nenhum se atreveu a confessar a autoria do escrito, mesmo sabendo que, se o fizesse, ilibaria a desgraçada das culpas que não tinha. Assim, o Pinheiro continuou convencido de que a carta era mesma da sua infeliz irmã, demonstrando acreditar ser ela capaz disso ou de coisa pior. Razões haveria para que nunca lhe tivesse escrito.
Só não sei se alguma vez se dignou responder à ofensa.