Ainda que
passados muitos anos e a memória continue inexoravelmente a degradar-se, retenho
a ideia de que muitos dos profissionais da tropa daquele tempo nunca chegaram a perceber de facto que a guerra nas colónias não encaixava em regras
susceptíveis de poderem conferir significado a definições padronizáveis. Retenho
de memória que os conceitos teóricos, plasmados nas sebentas da escola da
guerra, dactilografadas e sistematicamente duplicadas a setencil, se referiam amiúde ao facto de aquela ser uma guerra de
guerrilha, mantida por hordas de guerrilheiros não treinados e avessos a
convenções.
Ainda assim,
na cabeça de alguns velhos do restelo que ocupavam as cúpulas da hierarquia
militar de então, continuavam vivas velhas tácticas e estratégias com barbas e
bolor, manuscritas em acervos enegrecidos pelo tempo e guardados nos sótãos
bafientos da memória de gente que parou no tempo e se mostrou incapaz de
perceber que a guerra travada nas matas africanas não tinha nada a ver com as
grandes batalhas da idade média e não seguia qualquer dos modelos clássicos que
enchem as páginas dos compêndios militares por onde haviam estudado.
Alguns
deles, se calhar, continuavam a confiar na eficácia das velhas tácticas quiçá
acreditando ser possível aplicar nas matas africanas o estratagema do quadrado, derradeiro esquema defensivo
utilizado pelo General Custer na batalha de Litle Big Horn contra uma nação
inteira de índios Sioux ou até o medieval ouriço
que se sabe ter sido utlizado pela infantaria de Nuno Ávares Pereira contra a
cavalaria da coroa Espanhola na célebre Batalha dos Atoleiros nos conturbados
anos do fim da primeira metade do século XVII.
Pode parecer
inverosímil mas, das duas, uma; ou o nosso comandante não sabia mesmo o que era
a táctica do ouriço ou ainda não
percebera que a guerra que na altura se travava era outra. A verdade é que, perante
o catastrófico resultado da operação levada a cabo lá para os lados da
Quirongosa onde treze GE´s, entre eles o nosso Fulay, encurralados pelos
guerrilheiros do grupo do Kuenho, perderam a vida sem que sequer pudessem ter esboçado
um gesto de defesa, o distinto oficial tenha proferido a suprema crítica:
- Porque não fizeram o ouriço?
Bem, mas o
episódio que aqui me trás tem, mais uma vez como protagonista, o nosso incrível Major Tamegão quando, certa vez, o grupo estacionado no Rivungo foi incumbido de
patrulhar as margens do rio Cuando até às imediações das Ilhas Menguelas,
algures situados no meio do lodaçal que estabelece a fronteira entre Angola e a
Zâmbia, lá bem para baixo, a meio caminho entre o Rivungo e o Luiana. Transcrevo
a descrição do Eduardo Aranha que melhor do que ninguém conhece o episódio.
“Devo
começar por dizer que essas ilhas não eram, nem são, qualquer espaço
paradisíaco no meio do mar ou de um rio na moda para ir fazer férias ou passar
luas-de-mel. Na fronteira leste sul de Angola está o rio Cuando que na altura,
pelos registos, pertencia a Portugal e não à Zâmbia. Pelo que aqueles
amontoados de terra arborizada que existiam pelo meio do rio e que aqui no Tejo
se chamam mouchões e servem para a agricultura, lá pelas áfricas
serviam para esconder elementos guerrilheiros que, de noite, ousavam
enfiar-se em pirogas e atravessar o rio infiltrando -se no território angolano.
Uma vez,
numa operação militar, que eu não tive o prazer de comandar, estava prevista
uma patrulha a pé pela margem direita do Cuando, o mais chegadinho possível a
terra para não molhar os pezinhos e ninguém se constipar, pois o objectivo
principal da tropa portuguesa era poder regressar à sua aldeia natal todo
completo de cabeça e corpo.
Regressados
da operação ao Rivungo, estava, ao que me contaram, o major Tamegão, como
sempre vestido da sua personalidade grotesca e dos adereços de farda igualmente
ridículos: dois cantis com “água de capim”, para fazer bem aos rinzes, três
pares de óculos presos por fios de nylon e uma Manelika verde-vivo pintada à
mão. Neste excelente aparato dirigiu-se ao comandante da referida operação
inquirindo-o sobre o sucesso da mesma na aniquilação do inimigo. Na resposta,
evasiva como sempre, foi-lhe dito o que também sempre se dizia; que pegadas se
tinham visto, muitas, mas inimigos nenhuns, que talvez estivessem nas Ilhas
Menguelas, local inacessível para tropas apeadas. Aí, muito dentro da sua
lógica de oficial cujos estudos teriam parado pela Grande Guerra de 1914-1918,
o sr. Major Tamegão, perguntou: -Porque não fizeram uma balsa!? Ora, balsa é o
mesmo que jangada, mas é um termo menos usado que o segundo e, como o major era
do norte, muita gente, do sul, pensou que ele poderia estar- se a referir a um
valsa à beira-rio, o que só entre homens e naquelas paragens deveria ter-se
revestido de enorme romantismo.”
Alguns meses
depois, o tenente Valério, na altura o comandante da Marinha do Rivungo a quem,
segundo julgo, se haviam queimado parte dos neurónios que controlam o bom
senso, resolveu pôr a lancha a navegar, ultrapassando para sul tais ilhas. No
regresso foi metralhado, atacado à granada, perdeu um homem atingido por uma
rajada de chumbo mortífero e só a muito custo conseguiu que a lancha vencesse a
correnteza e regressasse ao seu ancoradouro no recesso do Rivungo, muito mal
tratada e com a moral dos seus homens a razão de juros.
Uma lancha, blindada, guarnecida de fuzileiros bem treinados e equipada com uma metralhadora Oerlikon de grosso calibre, quase que foi impedida de navegar. E o nosso major a querer que se construísse uma balsa!
Cá para mim, ou o homem via muitos filmes ou era leitor assíduo das histórias aos quadradinhos do Major Alvega.Uma lancha, blindada, guarnecida de fuzileiros bem treinados e equipada com uma metralhadora Oerlikon de grosso calibre, quase que foi impedida de navegar. E o nosso major a querer que se construísse uma balsa!