quarta-feira, 1 de julho de 2015

O ataque às ILHAS MENGUELAS

Ainda que passados muitos anos e a memória continue inexoravelmente a degradar-se, retenho a ideia de que muitos dos profissionais da tropa daquele tempo nunca chegaram a perceber de facto que a guerra nas colónias não encaixava em regras susceptíveis de poderem conferir significado a definições padronizáveis. Retenho de memória que os conceitos teóricos, plasmados nas sebentas da escola da guerra, dactilografadas e sistematicamente duplicadas a setencil, se referiam amiúde ao facto de aquela ser uma guerra de guerrilha, mantida por hordas de guerrilheiros não treinados e avessos a convenções.
Ainda assim, na cabeça de alguns velhos do restelo que ocupavam as cúpulas da hierarquia militar de então, continuavam vivas velhas tácticas e estratégias com barbas e bolor, manuscritas em acervos enegrecidos pelo tempo e guardados nos sótãos bafientos da memória de gente que parou no tempo e se mostrou incapaz de perceber que a guerra travada nas matas africanas não tinha nada a ver com as grandes batalhas da idade média e não seguia qualquer dos modelos clássicos que enchem as páginas dos compêndios militares por onde haviam estudado.
Alguns deles, se calhar, continuavam a confiar na eficácia das velhas tácticas quiçá acreditando ser possível aplicar nas matas africanas o estratagema do quadrado, derradeiro esquema defensivo utilizado pelo General Custer na batalha de Litle Big Horn contra uma nação inteira de índios Sioux ou até o medieval ouriço que se sabe ter sido utlizado pela infantaria de Nuno Ávares Pereira contra a cavalaria da coroa Espanhola na célebre Batalha dos Atoleiros nos conturbados anos do fim da primeira metade do século XVII.
Pode parecer inverosímil mas, das duas, uma; ou o nosso comandante não sabia mesmo o que era a táctica do ouriço ou ainda não percebera que a guerra que na altura se travava era outra. A verdade é que, perante o catastrófico resultado da operação levada a cabo lá para os lados da Quirongosa onde treze GE´s, entre eles o nosso Fulay, encurralados pelos guerrilheiros do grupo do Kuenho, perderam a vida sem que sequer pudessem ter esboçado um gesto de defesa, o distinto oficial tenha proferido a suprema crítica:
- Porque não fizeram o ouriço?
Bem, mas o episódio que aqui me trás tem, mais uma vez como protagonista, o nosso incrível Major Tamegão quando, certa vez, o grupo estacionado no Rivungo foi incumbido de patrulhar as margens do rio Cuando até às imediações das Ilhas Menguelas, algures situados no meio do lodaçal que estabelece a fronteira entre Angola e a Zâmbia, lá bem para baixo, a meio caminho entre o Rivungo e o Luiana. Transcrevo a descrição do Eduardo Aranha que melhor do que ninguém conhece o episódio.


“Devo começar por dizer que essas ilhas não eram, nem são, qualquer espaço paradisíaco no meio do mar ou de um rio na moda para ir fazer férias ou passar luas-de-mel. Na fronteira leste sul de Angola está o rio Cuando que na altura, pelos registos, pertencia a Portugal e não à Zâmbia. Pelo que aqueles amontoados de terra arborizada que existiam pelo meio do rio e que aqui no Tejo  se chamam mouchões e servem para a agricultura, lá  pelas áfricas serviam  para esconder elementos guerrilheiros que, de noite, ousavam enfiar-se em pirogas e atravessar o rio infiltrando -se no território angolano.
Uma vez, numa operação militar, que eu não tive o prazer de comandar, estava prevista uma patrulha a pé pela margem direita do Cuando, o mais chegadinho possível a terra para não molhar os pezinhos e ninguém se constipar, pois o objectivo principal da tropa portuguesa era poder regressar à sua aldeia natal  todo completo de cabeça e corpo.  
Regressados da operação ao Rivungo, estava, ao que me contaram, o major Tamegão, como sempre vestido da sua personalidade grotesca e dos adereços de farda igualmente ridículos: dois cantis com “água de capim”, para fazer bem aos rinzes, três pares de óculos presos por fios de nylon e uma Manelika verde-vivo pintada à mão. Neste excelente aparato dirigiu-se ao comandante da referida operação inquirindo-o sobre o sucesso da mesma na aniquilação do inimigo. Na resposta, evasiva como sempre, foi-lhe dito o que também sempre se dizia; que pegadas se tinham visto, muitas, mas inimigos nenhuns, que talvez estivessem nas Ilhas Menguelas, local inacessível para tropas apeadas. Aí, muito dentro da sua lógica de oficial cujos estudos teriam parado pela Grande Guerra de 1914-1918, o sr. Major Tamegão, perguntou: -Porque não fizeram uma balsa!? Ora, balsa é o mesmo que jangada, mas é um termo menos usado que o segundo e, como o major era do norte, muita gente, do sul, pensou que ele poderia estar- se a referir a um valsa à beira-rio, o que só entre homens e naquelas paragens deveria ter-se revestido de enorme romantismo.”


Alguns meses depois, o tenente Valério, na altura o comandante da Marinha do Rivungo a quem, segundo julgo, se haviam queimado parte dos neurónios que controlam o bom senso, resolveu pôr a lancha a navegar, ultrapassando para sul tais ilhas. No regresso foi metralhado, atacado à granada, perdeu um homem atingido por uma rajada de chumbo mortífero e só a muito custo conseguiu que a lancha vencesse a correnteza e regressasse ao seu ancoradouro no recesso do Rivungo, muito mal tratada e com a moral dos seus homens a razão de juros.
Uma lancha, blindada, guarnecida de fuzileiros bem treinados e equipada com uma metralhadora Oerlikon de grosso calibre, quase que foi impedida de navegar. E o nosso major a querer que se construísse uma balsa!
Cá para mim, ou o homem via muitos filmes ou era leitor assíduo das histórias aos quadradinhos do Major Alvega.