segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Trânsito citadino

Os milhentos ditames que compunham as regras pelas quais, naquele tempo, qualquer militar se devia pautar, eram uma preocupação permanente; um passo em falso, daqueles susceptíveis de constituir infracção a um qualquer artigo do RDM, podia transformar-se numa mão cheia de chatices, especialmente se a falta fosse cometida na presença de um daqueles militares da treta que costumavam adejar pelos corredores da burocracia militar. O desgraçado regulamento era tão persecutório que quase se pode dizer ser impossível não cometer infracções; Infringi-lo ou não era pura questão de sorte ou azar.
Libertos que estávamos das agruras ostracizantes da Neriquinha, uma das possíveis infracções que passou a ser minha preocupação frequente prendia-se com a eventualidade de, na qualidade de graduado, poder ser punido em consequência de um eventual acidente com uma viatura em que seguisse. É verdade, mesmo não estando ao volante, o graduado que seguisse na viatura podia ser responsabilizado por uma infracção ou aselhice do condutor.
Enquanto andámos pelas picadas empoeiradas do Cuando Cubango, isso não era problema porque, ali, ninguém tinha que se preocupar com o cumprimento das regras de trânsito. Naquele imenso ermo, ter essa preocupação até seria ridículo: não havia estradas, trânsito ninguém sabia o que era, cruzamentos eram apenas encontros de caminhos que levavam a lugar nenhum e sinais de trânsito ou o que quer que se pudesse aproximar das regras que preocupam quem conduz um automóvel eram coisas de ficção. A liberdade era total e as viaturas, preparadas para andar naqueles itinerários arenosos, circulavam por onde fosse preciso sem qualquer problema. Naquele mar de areia e lama a grande preocupação era a de saber por onde se andava, mas apenas para que não nos perdêssemos naquelas planuras imensas ou para nos pouparmos à carga de trabalhos necessários ao desatascanço de uma viatura que o desconhecimento ou nabice do condutor levasse para terreno menos consistente.
Agora, longe das picadas arenosas rolando por estradas asfaltadas e sem buracos, a condução era muito mais fácil, cómoda e quase sem riscos. Contudo, para condutores que se habituaram por demasiado tempo a ignorar o código da estrada e a não terem de repartir os caminhos por onde andavam com automóveis de toda a espécie, as preocupações eram muitas tanto para os condutores como para os graduados que, por inerência do posto, chefiavam a viatura em que seguissem. Pela parte que me toca, passei, sem motivo, por algumas dores de barriga, pelo menos até começar a ganhar confiança no homem que tinha a missão de conduzir.
Nas Mabubas, fui incumbido de gerir a cantina e isso implicava idas frequentes a Luanda para a necessária reposição de stocks, garantindo que, pelo menos, tabaco e cerveja nunca faltassem. As primeiras viagens foram, pelo menos para mim, exercícios de habituação. Primeiro estranhei a ausência dos saltos e ressaltos a que me habituara nos percursos esburacados das picadas sinuosas; depois fui-me familiarizando com a estrada pouco movimentada que, após cerca de uma hora de caminho, ali, logo a seguir ao Cacuaco, onde um bando de flamingos em lento movimento, pintando toda a praia de um cor-de-rosa suave, dava lugar ao trânsito citadino da então cosmopolita Luanda.
Era aí que começavam as minhas preocupações. Embora o condutor parecesse dar bem conta do recado, eu interferia na condução. Ainda que a contra gosto, avisava, alertava, carregava num pedal de travão imaginário sempre que a distância do carro da frente parecia encurtar.
- Olha que o gajo vai virar! Cuidado que vai travar! Olha aquele ali que vem para cima de nós!
O condutor, esse, nada dizia, mais parecendo conhecer o caminho que, por aquelas alturas me era totalmente desconhecido. Depois, era a estrada de Catete, naquele seu troço inicial que levava ao Grafanil. O limite de velocidade quedava-se pelos sessenta quilómetros por hora e a porcaria do velocímetro do Unimog indicava a velocidade em milhas. Afanava-me a fazer contas de cabeça, convertendo milhas em metros, até perceber que tudo estaria bem se o ponteiro não passasse além de certo ponto que, calculara eu, corresponderia, mais ou menos, à velocidade máxima permitida: sermos apanhados pela polícia militar em excesso de velocidade, mesmo que apenas por alguns metros, podia fazer nascer um processo disciplinar, cuja pena seria mais gravosa para mim do que para o condutor. Consequentemente, eu insistia:
- Oh pá! Vai mais devagar! Olha que estes gajos da PM são todos uns grandes filhos da puta.
A ansiedade baixava assim que entrava à porta do Grafanil. Por ali andava-se devagar, percorrendo cada um dos barracões da manutenção militar à procura dos produtos necessários: bebidas alcoólicas num, refrigerantes noutro, enlatados num terceiro, depois o das bolachas, o dos produtos de higiene, enfim um supermercado repartido por armazéns espalhados por aquele vasto recinto. Depois de tudo carregado, recomeçava a saga, agora em sentido inverso até nos libertarmos finalmente do trânsito citadino. Uma paragem numa das cervejarias do Cacuaco para matar a sede e saborear uns camarões era suficiente para descomprimir. Depois disso, o caminho de volta a casa era uma bênção; o trânsito era pouco, a estrada não era má e os condutores eram de confiança.

Com o tempo, acabei por me habituar, ou porque as ruas de Luanda se tornaram familiares ou porque o trânsito era agora encarado como rotina normal, ou ainda porque, afinal, concluí que não valia a pena tanta preocupação. Acidentes, acontecem, por muitos cuidados que se tenham; na verdade, nunca tivemos qualquer percalço, nenhum acidente veio conspurcar aquele pacífico fim de comissão às portas de Luanda.