sábado, 8 de novembro de 2014

Barragem das MABUBAS, 2014


















Estas fotografias, são do actual estado da Barragem das Mabubas, recuperada pelos chineses e em cujas margens vão ser implantados alguns complexos turísticos. 2014.

sábado, 1 de novembro de 2014

Caçada nocturna

Já por diversas vezes me referi à riqueza da fauna que me habituei a ver deambular pelas imensas planuras do Cuando Cubango. A flora era escassa, o que se compreende; no meio daquele quase deserto matizado de chanas alagadiças, pouca coisa medrava. Contudo, era um verdadeiro paraíso para os animais de grande porte, a julgar pela quantidade e variedade que por ali havia. Aquele bocado de savana, definido pela faixa que vai do Rio Cuando até à chanas do Utembo, terreno maninho e semi-pantanoso que aprendi a conhecer por corresponder à área de actuação da companhia, era habitado por manadas de búfalos, de songues, de gungas, de guelengues e outras espécies onde se contavam as elegantes palancas, os simpáticos antílopes de várias espécies, os rezingões porcos do mato sempre de rabo no ar como se uma antena se tratasse e até coelhos, para só falar de alguns.
Bastava percorrer alguns quilómetros que mais cedo ou tarde os encontraríamos, especialmente nas imediações das chanas húmidas onde a erva permanecia verde e fresca mesmo quando a ausência de chuva transformava tudo em volta num imenso mar de palha seca. Assim, para compensar o magro orçamento que não permitia refeições de bifes de carne de vaca, faziam-se incursões periódicas à caça de carne fresca. Abatiam-se dois ou três animais que a perícia do Ferreira reduzia a bifes, bastando acrescentar-lhes os temperos e correspondente acompanhamento para o Morais compor o rancho, compensando assim a insuficiência de verba. Mas isso era no Cuando Cubango onde a pasmaceira reinante por falta do que fazer, tornava interessante palmilhar a imensa savana à caça da melhor peça. A gunga, por exemplo, espécie de antílope de grande porte, permitia fazer uns bifes que em nada ficavam a dever à melhor vitela.
Mas, nas Mabubas, nunca poderia ser assim. Desde logo porque a variedade não era tanta e o acidentado do terreno não motivava ninguém a aventuras de caça, não conseguindo ser alternativa à vida regrada que a animação social ia propiciando. Havendo muito por onde entreter o tempo a sedentarização ganhou espaço, os dias de pasmo deram lugar a uma intensa vida social e a aventura deixou de interessar. Mas, ainda assim, sabia-se que a mata que bordejava a imensa albufeira da barragem albergava algumas famílias de pacaças, bovídeo corpulento cuja carne se dizia não ser desagradável.
Ora, pacaça era bicho que ninguém da companhia alguma vez tinha visto e isso espicaçou a curiosidade. Isso e provavelmente as recordações das grandes aventuras em que se tornavam as idas à caça na grande savana de onde viemos. A ajudar, tínhamos à carga um barco zebro, destinado ao patrulhamento da barragem, com dimensão suficiente para transportar uma equipa de caça e trazer na volta os bichos que se deixassem apanhar.
Assim sendo, certa noite, reuniu-se um pequeno grupo decidido a aventurar-se na escuridão dos meandros da albufeira e que, tanto quanto me lembro, integrava o Capitão, o Gabriel - que para além do seu mais que demonstrado gosto por aquele tipo de aventuras era o responsável pela manutenção do zebro – e ainda, porque era preciso alguém que conhecesse os segredos daquela imensidão de água, o Sr. Tomé responsável pela barragem e o seu ajudante, o Gasolina, negro corpulento que conhecia tudo por ali.
Carregaram uma bateria a que ligaram firmemente um projector e lançaram-se à aventura fazendo o zebro deslizar devagar rasgando as águas adormecidas da barragem. O Gabriel levava a G3 aperrada, o Gasolina segurava a bateria garantindo alimentação permanente do farolim com o qual o Sr. Tomé ia varrendo a mata circundante, esquadrinhando cada recanto com o foco luminoso do improvisado projector. Não demorou muito até que a luz intensa, perfurando a noite, descobrisse os olhos brilhantes de duas pacaças que encadeadas pela intensidade da luz nem se moveram tornando-se em alvo fácil que dois tiros certeiros deitaram ao chão.
O problema agora era carregar os animais corpulentos no Zebro, coisa que não parecia ser fácil. Apontaram à margem e aceleram a fundo para que a proa do barco galgasse a margem rampante na esperança de que ali se imobilizasse. O zebro ganhou velocidade seguindo o túnel luminoso do farolim e exactamente quando se aproximava da margem, embateu violentamente num tronco submerso escondido na escuridão das águas, logo abaixo da superfície. O barco estacou repentinamente travado pelo inesperado obstáculo. Abanou violentamente desequilibrando os passageiros que, agarrando-se conforme puderam, evitaram cair à água.
Todos, excepto o Gasolina que, talvez entendendo que era importante não largar a bateria, a agarrou firmemente ficando sem hipótese de se segurar. Desequilibrou-se e caiu borda fora levando consigo a bateria cujo peso o empurrou para o fundo da barragem. Momentaneamente, no meio da escuridão, apenas deram pela falta do Negro sem que, no meio da confusão, alguém soubesse exactamente onde caíra. Fizeram incidir o halo de Luz do projector sobre a superfície das águas abruptamente tiradas da sua quietude, esperando que a todo o instante emergisse. Mas, pelos vistos, não foi isso que aconteceu embora o farolim continuasse aceso.
Foi então que o Sr. Tomé, como que inspirado na lenda de Ariadne, trazendo para realidade a fantasia mitológica, seguiu o fio que desaparecia nas escuras águas. Debruçou-se sobre a borda, esticou os braços, agarrou o seu ajudante pelo cabelo e puxou-o vigorosamente para a superfície. O Gasolina emergiu, sorvendo sofregamente o ar e, nunca largando a bateria, esperou que o ajudassem a subir para bordo, escorrendo água e arengando qualquer coisa à laia de justificação.
Com muito custo e permanente adornar do barco, carregaram as duas pacaças de cujo destino pouco recordo. Sei apenas que uma foi direitinha para o refeitório enquanto a outra foi transformada em petisco. Creio que, nas Mabubas, toda a gente comeu um bocado do churrasco em que se transformou aquela massa enorme de carne fresca.