O rigoroso RDM, kafkiano regulamento da disciplina militar de que se
dizia ser incumprível, alimentava boa parte do anedotário de caserna dos tempos
idos da tropa. Estava capaz de apostar que se contariam pelos dedos de uma mão
– vá lá, de duas mãos – aqueles que, naquele tempo, se deram ao trabalho de ler
tão exigente normativo, o que, entenda-se, seria de todo desnecessário e isso
porque, para não cair nas suas malhas, bastaria atender a duas regras
principais: “cuidado com o que dizes”
e “vê lá o que fazes”, o que
significa que, até a dormir, era razoável a probabilidade de se infringir um
qualquer dos seus inúmeros artigos, ainda que inconscientemente e sem se saber
como, espécie de círculo vicioso da justiça militar que tanto poderia
considerar alguém culpado por ter cão, como por o não ter. A crítica ao seu
excesso de rigor era, naquele tempo, expressivamente ilustrada com a afirmação
galhofeira de que, o seu autor, uma vez completado o seu trabalho de
legislador, se suicidara ao dar-se conta de que não seria capaz de cumprir os
ditames plasmados em tão intransigente e espartano diploma.
A aplicação do direito sancionatório correspondente competia aos
comandantes das unidades que não tinham dificuldade em enquadrar cada infracção
no respectivo articulado. As penas menos severas transferiam o recruta para o
serviço de faxina às cozinhas, seguindo-se, por ordem de gravidade, a limpeza
dos sanitários, a proibição de sair do aquartelamento até ao recolher, a perda
de direito a gozar o fim-de-semana e por aí adiante até às penas de prisão. É
verdade, as infracções mais graves, ainda que não constituíssem crime, eram
cumpridas na prisão.
Mas vamos ao que interessa. Na Neriquinha, não havia cadeia. E não
havia, porque não era preciso. A singela e frágil cerca de arame farpado, que
delimitava aquele quadrado de pó areento perdido no meio da savana, já era o
bastante para que nos sentíssemos enclausurados, não obstante a ausência de
muros permitir acesso livre e directo à vastidão do espaço envolvente. E nunca se
pensara nisso, até porque, pelos vistos, nenhuma das unidades que ali nos
antecederam teve necessidade de tal coisa.
Mas, a companhia de caçadores 3441 pertencia a um batalhão – o 3857 – cujo
comandante, a que todos deviam vassalagem, não entendia assim e, por isso, a
ordem expressa, vinda directamente do seu gabinete, lá no Cuito Cuanavale, determinou:
– construa-se uma cadeia.
A ordem, exigente e imperativa, não admitia desculpas e qualquer desobediência
seria insensatez; na tropa era assim e com aquele comandante, mais ainda. E,
assim sendo, não havia sequer que discutir: –
pois construa-se o tal de cárcere, determinou o capitão.
Passado todo este tempo, não tenho memória do aspecto físico de tais
instalações, mas alvitra-se a hipótese de o local escolhido ter sido, logo ali,
paredes meias com a oficina auto, confinando com as traseiras da enfermaria e
não longe do refeitório, junto ao gerador pequeno, espécie de reserva
energética que permitia a existência de luz pelo tempo que levava a resolver os
amuos do gerador principal. O facto é que, e isso é uma certeza, se deitou mãos
à obra, desencantaram-se os materiais necessários e, em pouco tempo, lá nasceu,
isso sim, um casinhoto precário, sem condições e de pequenas dimensões; enfim,
um cubículo. Talvez porque se entendia que nunca teria serventia, não se lhe
meteram grades e creio que a porta, se é que alguém disso se lembrou, nem
fechava. Pelo menos não tinha chave. E para quê, se ali não havia para onde
fugir.
Contrariamente ao que seria de esperar, o presídio foi estreado, e coube
ao Pinheiro o privilégio da inauguração, sem pompa nem discursos mas, ainda
assim, um acontecimento inaugural. O Pinheiro era um chato, um refilão
preguiçoso que, com alguma frequência, esticava por demais a corda. Até que um
dia, exagerou, ultrapassou o desculpável e foi além da capacidade de tolerância
do capitão. A pena aplicada, ainda que com algumas atenuantes, ficou-se pelos
cinco dias de prisão.
Tanto quanto julgo saber, não os cumpriu todos. Provavelmente houve a
percepção de que, para o preguiçoso do Pinheiro, estar detido, para mais
naquela estranha cadeia, produzia efeito contrário ao que é suposto ser um
castigo. É que, o estar preso, implicou não ser escalado para os sempre
detestados quartos de sentinela e outros serviços do dia-a-dia. E o pior é que
passava pouco tempo enclausurado, não fazia nada, comia no refeitório como
todos os outros, passava o dia chateando o pessoal da ferrugem e, de caminho,
infernizava a vida dos cozinheiros e exigia atenção especial aos enfermeiros.
Para completar o quadro, transferia-se, à noite, para a sua cama na caserna e
ainda gozava com o pessoal que com ele se cruzava, não perdendo a oportunidade
de, disfarçadamente, provocar o segundo-sargento que, achando tudo aquilo um
abuso, resmoneava visivelmente agastado, um “num tá bem!” reprovador. Tirando
isso, dormia o resto do tempo e preguiçava nos intervalos de cada soneca, feliz
da vida e apostado em cumprir, com zelo sacana, o castigo que lhe foi imposto, comportando-se
de forma a convencer disso o capitão, até porque, o segundo-sargento nunca se
atreveu a denunciar uma situação que, no seu entender, “num tava bem”.
A boa vida do Pinheiro durou apenas aqueles escassos dois dias de
prisão efectiva, intervalada de saídas precárias auto autorizadas. Apercebendo-se
da ineficácia do castigo, o capitão comutou-lhe a pena, deu-lhe ordem de
soltura e determinou que os restantes três dias fossem convertidos em liberdade
condicional, para grande desgosto do preso que via assim as suas imerecidas férias
abruptamente interrompidas, com a agravante de se ver escalado para um quarto
de sentinela naquela mesma noite.
Creio que o cárcere apenas teve mais um inquilino ainda que apenas por
umas horas. E como não podia deixar de ser, coube ao Candeeiro esse privilégio.
O soldado Raimundo, por todos conhecido como Candeeiro, pescador algarvio vindo
dos lados de Vila Real de Santo António, era um homem quezilento, especialmente
quando estava com umas cervejas a mais, situação algo frequente. Nessas
alturas, tinha por hábito desatar num berreiro, ameaçando todos aqueles de quem
não gostava, elegendo sempre o alferes Torres como primeiro alvo a abater.
Felizmente, levado a bem, era fácil apaziguar-lhe as fúrias, mesmo quando bem
bebido. O problema era que, como se sabe, o excesso de bebida tolda o
raciocínio e o bom senso a certas pessoas e, no caso do Candeeiro, nunca se
sabia se as fúrias eram apenas desabafos alcoólicos ou algo mais. E, assim
sendo, mais valia prevenir, obviando a que, de um momento para o outro, fizesse
um qualquer disparate.
Certo dia, excedeu-se mais do que costumava e, antes que os desacatos
descambassem em grossa asneira, foi encarcerado. O berreiro ainda continuou por
algum tempo, mas acabou por calar-se. Talvez vencido pelo cansaço e totalmente
dominado pela bebedeira, adormeceu e, rangendo os dentes, por ali ficou o tempo
necessário para cozer e processar o álcool ingerido, saindo em liberdade
quando, já esquecido da guerra que apregoara, acordou.
É caso para se dizer que a cadeia, ali, não fazia falta. Mas, uma vez construída, teve uso, ainda que apenas por duas vezes: uma para estreia e outra para curar uma bebedeira.