Aquela zona do Kuando Kubango, pelo menos a estreita faixa delimitada a sul pelo rio Utembo e a norte pelo Lomba, estendendo-se desde as margens do Cuando até praticamente a vizinhança com o Cuito, caracterizava-se por uma fauna rica e variada. Ali era o reino da imponente palanca preta e da gigantesca gunga, a par com uma multiplicidade de animais selvagens que aprendi a conhecer mesmo à distância, ao ponto de já os conseguir identificar pelo trote. A correria deselegante do caixote distinguia-se perfeitamente da do guelengue e nenhuma se comparava com a elegância majestosa da palanca ou com o passo empertigado do songue. Até o local onde costumavam pastar servia para os identificar: o songue frequentava sempre zonas alagadas, o búfalo procurava a sombra das árvores e a pequena cabra do mato saltitava por tudo quanto era canto.
Animais ferozes é que não abundavam por ali, o que podia explicar a variada e abundante fauna - sem predadores multiplicavam-se. A verdade é que, depois de ter calcorreado parte significativa daquela savana imensa, apenas uma vez avistei um leão, lá muito ao longe ao princípio da manhã quando, montados num unimog conduzido pelo Figueiredo (o comandos) eu, o Silva e um dos fuzileiros da marinha, percorríamos a chana do Utembo à procura de caça. Saíramos do Rivungo a meio da noite, pedimos um guia aos PSP’s do Caxoxo e aventurámo-nos pelo descampado, lá bem para baixo, muito para além do fim da picada que se sumira, como que sugada pelo capim rasteiro, dois ou três quilómetros depois do kimbo. Daí para baixo era apenas a chana imensa que percorríamos com cuidado, procurando avaliar a consistência do terreno não fosse o Unimog enterrar-se no lodaçal traiçoeiro escondido no meio das ervas. Foi um dia perdido, já que de caça nada se avistou que compensasse a caminhada. É que nem sequer uma simples cabrinha para amostra. Ainda hoje estou convencido que o leão os assustou. Andava certamente longe da sua área, talvez perdido, banido do seu grupo ou simplesmente à procura de almoço. Não sei se teve sorte que, cá por nós, voltámos de mãos a abanar sem termos apanhado nada.Tirando isso, e não contando com os jacarés e hipopótamos abundantes ao longo do curso do Cuando, apenas as hienas habitavam a região, mas essas, precavidas, não se metiam connosco. Mal sentiam a nossa presença zarpavam à procura de melhor companhia. Ainda assim, por uma vez, ou porque as provocámos ou talvez por simples mau feitio, uma família delas tornou-se ameaçadora, obrigando o pessoal a abater algumas pondo as restantes em debandada. Quanto ao mais, nem uma simples cobra deu as caras por aquelas bandas, não obstante dizer-se que abundam em África.
Mas algo me intrigava. Até certa altura, nunca vira elefantes e, segundo aquilo que se ouvira, esses bichos mastodônticos deveriam habitar a região. Dizia-se que, garantidamente, onde houvesse elefantes haveria mosca tsé-tsé. E todo o pessoal da companhia fora expressamente vacinado contra a doença do sono que se sabe ser por ela transportada. E o reforço da vacina, feito de seis em seis meses, era uma espécie de confirmação de que o bicho andaria pelas matas. Também é verdade que nunca vira um desses insectos, mas sempre atribui o facto a não os saber identificar. Explicaram-me que se distinguiam das demais pelas asas cruzadas e pouco mais. Para mim, moscas são moscas e por ali havia muitas, umas pequenitas outras normais mais umas quantas diferentes das que sempre conheci. Mas nenhuma delas me parecia corresponder á descrição do temível insecto.
A partir de certa altura deixei de me preocupar com isso. Se nunca vira elefantes o mais natural é que também não haveria tsé-tsé nas redondezas. Se calhar tinham emigrado juntamente com os paquidermes que se mostravam arredios.
Até o dia em que fui informado que iria integrar o grupo encarregue de executar uma acção de patrulhamento à mata que se estendia para além do Chicove, local que, até então, nunca tínhamos visitado. O Chicove era um curto braço de chana que, correndo abaixo do Rio Lomba, levava até ao Cuando a água que para ali escorresse durante a época das chuvas. Não podia ser considerado um rio, mas exibia aqui e ali uns charcos enlameados onde javalis costumavam chafurdar. Situava-se a norte da Neriquinha, e alcançava-se em pouco tempo percorrendo uma picada que, nascendo numa perpendicular à pista, formava uma linha recta fácil de percorrer.
Talvez por isso, era um sítio que se visitava amiúde. Era perto, a picada não era má, tinha uma chana extensa e normalmente aparecia caça que justificava a viagem. Contudo nunca se atravessara a chana até ao outro lado. Podia-se fazê-lo a pé mas presumia-se que do outro lado não havia nada que justificasse o esforço e de viatura, arriscava-se o atascanço.
Contudo, os planos de actividade operacional da companhia haviam de anular a lacuna. A operação foi planeada com o fim de patrulhar uma pequena área da extensa mata que separava o Chicove do Rio Lomba e a missão foi destinada ao meu grupo de combate reforçado com mais uns quantos homens. A princípio pensei tratar-se de uma operação importante já que o comando ficou directamente a cargo do Capitão que não dispensou a participação do alferes Oliveira. Contudo, não era uma operação complicada; de acordo com os planos, seríamos largados num dia e recolhidos no outro, particularidade que caracterizava as acções de simples rotina. Apenas me preocupava as recomendações que foram feitas; quico bem enfiado na cabeça, mangas descidas e bem abotoadas e se possível um cachecol à volta do pescoço. O Oliveira avisara ser quase certo encontrarmos a temível tsé-tsé e, por isso, era preciso diminuir ao máximo a área exposta.
As viaturas largaram-nos ao princípio da manhã no Chicove e encetámos a curta travessia do descampado que nos separava do outro lado. Abotoei o colarinho até cima, desci as mangas da camisa, enterrei bem o quico na cabeça e iniciámos a marcha penetrando arvoredo adentro seguindo sem pressa um trajecto paralelo à chana em direcção à foz, se assim se pode chamar ao encontro da chana do Chicove com a imensa planura do Cuando.
O aviso sobre a mosca pôs-nos todos de sobreaviso. Por mim e mal se iniciou a caminhada, procurei descortinar em cada insecto esvoaçante as características de que ouvira falar: asas cruzadas, tamanho indefinido, não fugia quando enxotada. Mas, que diabo, ali todas as moscas tinham essa mania, alapavam-se à pele e não fugiam quando as sacudíamos. E o pior é que nem conseguia ver se tinham ou não as asas cruzadas. O melhor era considerar que todas as que pousassem eram uma ameaça. Mas isso acontecia continuamente. As moscas abundam em áfrica, gostam do calor e da humidade, são atraídas pelo cheiro a merda e parece que também pelo do suor humano. Fartos de esbracejar, procurando em vão enxotá-las, já não importava se eram tsé-tsé ou outra estirpe qualquer, a solução passou pelo recurso a um pequeno ramo mantido em permanente agitação, varrendo sistematicamente a cara com as folhas. Transportando ou não a doença do sono, procurava-se evitar que alguma conseguisse pousar por tempo suficiente para largar a praga.
Caminháramos durante toda a manhã e mais de metade da tarde sem que se avistasse qualquer sinal de elefantes, diminuindo-se o ritmo do cansativo abanar do ramo verde com que se procurava obstar ao persistente ataque das moscas. Por mim, estava praticamente convencido que aquele bocado de mata não era diferente de todos os outros que já se conheciam. Aliás, se na mata do outro lado da chana, já por nós percorrida inúmeras vezes, nunca se haviam divisado sinais de elefantes ou da exótica mosca, por que raio os haveriamos de encontrar, logo ali, tão pertinho, mesmo do outro lado do inofensivo Chicove?
As coisas são mesmo assim. Mal a dúvida acabara de se instalar na minha cabeça, um grupo de elefantes surgiu na nossa peugada, como se, vindos do mesmo lugar, nos estivessem vindo a seguir. Era um pequeno grupo, talvez uma família de meia dúzia de animais, uns maiores outros mais pequenos, caminhando no seu trote indolente como se, em passeio, desfrutassem a despida paisagem circundante sem pressa ou correrias. No meu entender, era como se estivessem em casa, não iam a lugar nenhum. Simplesmente deambulavam.
No imediato, não reagimos. Desde o início da caminhada que se esperava ver elefantes. Mas, naquele exacto momento, o seu aparecimento pareceu inesperado. Permanecemos quedos e mudos sem saber bem o que fazer. O problema é que os bichos vinham na nossa direcção. Não pareciam ameaçadores mas temíamos pela sua reação perante aquele grupo de seres estranhos e provavelmente nunca vistos por ali. Conferenciámos à boca pequena e o capitão alvitrou que o melhor era ficarmos quietos. Recuámos um pouco procurando fugir ao que parecia ser a trajectória da caminhada dos paquidermes e deixámo-nos ficar em silêncio.
Os bichos aproximaram-se, passaram por nós sem pressas e ignorando completamente a nossa presença seguiram o seu caminho até desapareceram por entre o arvoredo.
Nós, também seguimos o nosso caminho como se, sem convicção, os perseguíssemos. Durante algum tempo esquecemo-nos da malfadada mosca. É que, se se confirmasse a regra, havendo elefantes também haveria tsé-tsé. Continuei a tentar identificá-la por entre as centenas que esvoaçavam à minha volta sem que conseguisse encontrar uma com o aspecto que julgava já ter interiorizado. Na dúvida voltei a agitar o ramo que, entretanto, não largara.
Afinal, havia elefantes a norte do Chicove e eu vi-os. Mas só daquela vez. Contudo, não fiquei tão certo de ter avistado a tsé-tsé. Ainda hoje não tenho a certeza de que tal coisa se tenha cruzado comigo durante os longos dezoito meses passados nas Terras-do-Fim-do-Mundo.