O mês de Novembro daquele ano de 1971 ia já avançado quando aportámos àquelas paragens. Na Metrópole (carinhosamente apelidada de Puto) dali até ao Natal seria um saltinho. Naquele fim de mundo, a quadra festiva aproximava-se ao ritmo indolente da calmaria, andamento já de si retardado pela contagem decrescente dos dias, alimentando o desejo sofrido de ver chegado o distante dia do regresso, dando maior dimensão ao longo caminho que ainda havia a percorrer.
Em boa verdade, não creio que alguém se preocupasse com o Natal. Por ali, nada o fazia lembrar e a população local não sabia o que isso era. Sempre associei a quadra ao frio e isso era coisa que ali não havia. Também não havia ruas iluminadas, nem lojas, nem pais natais, cânticos natalícios ou jingle bells. Apenas um dia a seguir ao outro, com a noite de permeio, num território inóspito e desconhecido, infestado de mosquitos gulosos, de tamanho desmesurado, que se engalfinhavam logo que caía a noite, sugando o sangue a quem não se resguardasse por detrás de uma qualquer rede mosquiteira.
Por estas alturas, o exército costumava abrir os cordões à bolsa e recomendava rancho melhorado. Contudo, não se esperava bacalhau para a consoada. Menos ainda rabanadas, bolo-rei, fios d’ovos ou outros acepipes com que, por tradição, nos empanturramos na quadra natalícia.
É estranho! Passei três natais em África, mas apenas me lembro deste, o primeiro e único passado no Rivungo. Dos restantes, não retenho sequer uma pequena recordação, lembrança ou imagem, muito provavelmente porque eram dias normais, iguais a todos os outros. São os desígnios do tempo, que tendem a esconder nos recônditos inacessíveis da memória, factos, histórias e imagens da nossa vida, apenas deixando à superfície flashes isolados que permitem reconstituir, mais uns do que outros, alguns episódios, sem que, muitas vezes, se perceba os critérios selectivos dos neurónios em funcionamento.
Não havendo como festejar, atamancou-se uma solução para cada um dos três principais dias festivos e que passava por reunir toda a comunidade de deslocados num almoço de confraternização que tinha lugar, à vez, nas instalações de cada força. Naquele ano, ficara decidido que o almoço do dia de Natal seria na tropa, o de Ano Novo na Marinha e finalmente, o do dia de Reis, na PSP. Os dois agentes da DGS não tinham condições para o fazer, o mesmo se dizendo do Administrador e do Camassango, pelo que eram sempre, apenas convidados.
O rancho melhorado no dia de Natal, bem se pode dizer que foi obra do Máquina que, sendo uma espécie de ajudante de cozinha, foi, neste caso, ajudado pelo cozinheiro do destacamento, numa autêntica inversão de funções. Não obstante já nos termos apercebido dos dotes culinários do homem, ainda assim, todos se admiravam das suas habilidades. Aquele arroz de frango (digno substituto de um qualquer manjar de Natal) estava divinal.
A frugalidade da comezaina era limitada pela pouca variedade e escassa disponibilidade do depósito de géneros, valendo o almoço pela companhia devidamente animada com o vinho de péssima qualidade, único de que se dispunha e que era fornecido em bidões de 200 litros. Após a abertura do bidão, tinha de ser consumido em poucos dias, já que azedava a uma velocidade imparável, transformando-se rapidamente em ácido acético impróprio para o que quer que fosse. Por mim sempre preferi a cerveja. Era fresca e saborosa, indo melhor com o calor. Por outro lado, ao contrário do vinho, não tinha tempo de azedar. Esvaziada uma, havia logo outra, sempre à mão.
De qualquer forma, o Natal resumiu-se a esta espécie de evento, sem missa do galo ou noite de consoada. A rotina apenas foi alterada no reforço das sentinelas e das rondas nocturnas, não fossem os amigos turras quererem fazer-nos uma visita em tempo de maior descontracção.
No ano novo, o almoço ficou a cargo da marinha e, creiam-me, os rapazes capricharam. Especialmente no acompanhamento alcoólico. O dia coincide com o do meu aniversário e toda a gente sabia disso. Assim, fui transformado numa espécie de dono da festa e todos, tanto dum lado como do outro, fizeram jus à arte de bem receber, pugnando para que nada faltasse à minha frente. As cervejas sucediam-se e a sobremesa foi devidamente acompanhada com meia dúzia de whiskies, mais não sei quê, igualmente alcoólico, que me foram pondo à frente. A mistura, cumpriu o seu dever, dando-me conta disso quando, no fim do repasto, as pernas não obedeceram ao tentar levantar-me.
A tarde ainda ia a meio e, não obstante ninguém estivesse verdadeiramente sóbrio (excepção para o Silva que julgo apenas ter quebrado a abstinência para não fazer a desfeita) entendeu-se que o novo ano merecia outra comemoração. O Tenente, bem bebido, tal como os demais, achou que era engraçado dar uma volta pelas redondezas. Sentou-se ao volante do Land Rover da marinha e fez carregar uma grade de cerveja. Outros três ou quatro bêbados (eu incluído) tomaram também assento e lá rumámos à Missão, não sei bem para quê, já que ali não existia nada que justificasse o raid.
A viagem acabou, pelo menos para mim, na Mahínha, pequeno kimbo que distava do Rivungo uma meia dúzia de quilómetros por uma picada de areia, numa espécie de visita sem motivo, de que apenas recordo ter-me espalhado ao comprido ao tentar apear-me, verdadeiro corolário do excesso de bebida, transformada em cocktail pelas sacudidelas da curta viagem.
Não me recordo do regresso. Acordei, no dia seguinte, com o Alferes Fausto a perguntar pela bandeira. Eram horas de a içar e não estava no lugar do costume. Estremunhado, com a memória entupida, raciocínio atascado e sem vontade de me levantar, balbuciei qualquer coisa. Foi quando, ao virar-me na cama, reparei que estava embrulhado na bandeira nacional. Segundo contaram, no dia anterior, no meio da barafunda, carregaram-me às costas e atiraram-me para cima da cama. Provavelmente, porque a sobriedade não era muita, alguém agarrou no que estava mais à mão, acabando a bandeira verde rubra a fazer de lençol.
No almoço do dia de Reis, servido na PSP, a comezaina decorreu sem incidentes. A recordação de tão insólita festa de aniversário levou-me a beber apenas duas cervejas, em evidente contraste com o anfitrião - o chefe França - que, como não podia deixar de ser, se encarregou da animação, regando-a generosamente.