Introdução à apresentação do livro “Capitães do Vento” numa tertúlia militar em Oeiras
Setembro de 2012
Este é um livro azedo. Um livro onde o autor (um miliciano) revela uma enorme dificuldade em compreender onde chegou a insanidade política, o auto-convencimento militar, o desespero e a teimosia cega que conduziu ao suportar de uma guerra a qualquer preço, fosse ele um preço financeiro, humano ou mesmo patriótico. A História veio provar que o preço era demasiado elevado, ou mesmo incomportável, a médio ou a longo prazo.
A minha história foi forjada num acto de desespero político e militar, rodeado de um enorme secretismo que se se suportou no crédito da inabalável capacidade do povo lusitano em adaptar-se às circunstâncias mais difíceis e adversas, por vezes desumanas até.
Não sei quantos povos do chamado ocidente teriam sido capazes de resistir às condições de aquartelamento, de alimentação, da dureza do clima e da própria génese da guerra em que se veio transformando o conflito colonial.
Contudo, a mim coube-me suportar um outro fardo a juntar a todos estes que aqui se enumeram.
A mim coube-me carregar a escuridão das ideias, a inconsciência dos actos e o desespero da premonição de um fim por demais anunciado, que nada tinha a ver com a Pátria que todos amamos e aprendemos a defender com arreganho e alma, de que nos dá conta a nossa História nos infindos exemplos de galhardia e verdadeiro amor pátrio a que fomos habituando os nossos inimigos no passado.
Acharam-me, não de ânimo leve, mas de ânimo nenhum, que os meses que podemos contar numa só mão seriam mais que suficientes para construir um guerreiro, quiçá um pequeno Viriato, agora oriundo do sul, que fosse capaz de conduzir as suas tropas com mestria e engenho num campo de batalha adverso e feito à medida e conhecimento do inimigo. Não sei se esperavam de mim que regressasse vitorioso, mesmo que as baixas pudessem tornar-se num vilipêndio de consciência de que dificilmente me recomporia para o resto da minha vida, deixando-me sem qualquer resposta sensata para dar aos familiares que porventura me questionassem pelos erros cometidos, mesmo que em nome da Pátria.
Em 8 de Junho de 1970, tinha 22 anos, decidiram fazer de mim um Comandante de Companhia. Assim, de repente, num sopro ou golpe de mágica com o qual contavam poder prolongar a agonia da guerra e os alicerces carcomidos do regime, que haveria de ranger simbolicamente numa cadeira tolhida pelo caruncho a 27 do mês seguinte no Forte da Barra.
Com 23 anos assumi o comando de cerca de 140 homens (depois de mais 30 GE’s locais) somando 170 militares.
Tinha 23 anos, mas ninguém terá reparado nisso. Consta que serei o capitão mais jovem de sempre do Exército Português. Uma circunstância que me espantou na altura, não apenas pela idade mas pela escolha de um provinciano despolitizado arrancado aos confins do último reduto sarraceno, assinalado pela tez macerada pelo sol inclemente e uma insubmissão rebelde permanente de que em tempo se haveria de queixar a hierarquia militar.
Mais tarde percebi que o elemento decisivo para a minha eleição era o “despolitizado”, que garantia alguma segurança no cumprimento da missão. A catadupa de testes a que me submeteram durante mais de 15 dias terão encontrado outros valores que poderiam prometer uma ou outra expectativa. Mas o alheamento político era certamente o elemento mais aliciante e seguro.
Não sei como me viram ao início os meus oficiais, sargentos e praças; um jovem da mesma condição que adoptou e obrigou uma companhia de civis ao cumprimento do estatuto militar, como se de um oficial de carreira se tratasse. Uma opção tomada em consciência que acabou por nos permitir representar a hierarquia militar naquilo que tem de essencial; ordem, respeito (que não deferência) e funcionalidade.
Desde sempre senti o incómodo da situação; quer para mim, quer para eles. Mas não havia nada a explicar nem a justificar; era uma opção, um conceito. Sem sentido para alguns, que se sentiriam mais confortáveis num eventual tu-cá tu-lá de civis metidos na mesma embrulhada, a que o tempo haveria de conduzir. Uma irmandade que naturalmente descambaria numa anarquia mesmo que saudável entre amigos, onde a fraternidade desobrigaria ao cumprimento de ordens a que a cadeia de comando se obriga. Uma responsabilidade que me cabia a mim imprimir num contexto naturalmente organizado por hierarquias de comando onde me encontrava inserido e obrigado a responder à cadeia superior.
Assumi que não seria fácil compreender e aceitar esta escolha.
Mas foi aí que aprendi a conhecer melhor os que com sagacidade e inteligência aceitaram sem questionar a hierarquia imposta e a representaram sem objecções. Os que compreenderam com argúcia que em qualquer clima de guerra é condição imprescindível a hierarquia de funções e responsabilidades; mesmo que estas não correspondam a um enquadramento real mas apenas funcional. Mesmo que se constituam num contrato a termo certo, que para mim terminou no dia em que me despedi de todos eles no aeroporto de Luanda.
Por outro lado, não sei se lhes fui capaz de transmitir alguma confiança ou segurança. Não sei o que esperavam de mim no auge da batalha. Mas o que menos descanso me dava era imaginar como iriam reagir ao ressoar de trovão das espingardas quando em uníssono cruzassem fogo com o inimigo.
Eu já o tinha experimentado nos Dembos. Conhecia a sensação da fímbria da morte. Eles tinham ficado por uma boa dúzia de tiros disparados na carreira de tiro, alguns deles tapando os ouvidos.
Tudo uma insanidade. Uma irresponsabilidade que, na hora incerta da tragédia, haveria de ter um dedo apontado à minha consciência, ignorando os meus 23 anos, e ilibando todos quantos me despejaram no campo de batalha esperando que me comportasse como um verdadeiro militar experimentado. Tudo fruto de quatro “longos” meses de estágio que caucionaram a minha responsabilidade de comandante de companhia, outrora atribuída a militares do Quadro Permanente sempre com mais de 30 anos de idade e cerca de 12 anos de experiência na função.
Um dia, ainda na instrução enquanto cadete, mas já com o processo de formação em andamento, captei por acaso uma troca de palavras entre dois oficiais do Q.P.. Importa esclarecer que o meu curso foi o primeiro do chamado C.C.C. (Curso de Comandantes de Companhia).
Dizia um deles: - “Não estou a ver que isto vá a algum lado; como é que os gajos se vão desenrascar a comandar homens, quando debaixo de fogo!?”.
Ao que o outro, seguro, respondia: - “… acho que não vai haver problema; quando as coisas aquecerem o instinto de conservação há-de fazer com que sobrevivam.”
Com que sobrevivam… articulei mentalmente e nunca mais me esqueci.
Era preciso sobreviver. De preferência sem que fosse pela via do instinto.
Nesse sentido tomei algumas decisões que contribuíssem para a minha sobrevivência e a de todos os que comandava. Decidi ali mesmo que não haveria de voltar a cara àquela luta; a da sobrevivência. Talvez a mais importante decisão se resuma ao princípio que sempre me norteou no mato. Se me quisessem apanhar teria que ser de frente; nunca pelas costas ou distraído. Foi uma autêntica obsessão.
Se resultou, não sei; mas sei que nunca fomos atacados no mato. Lembrar-se-ão muitos quanto exigente me tornava em operação. Lembrar-se-ão todos a forma como foram apanhados os treze GE’s, onde pereceram quatro dos nossos, entre eles o comandante Fulai Monjuto. Pelas costas e muitos deles praticamente desarmados.
Sempre procurei transmitir aos quatro alferes operacionais estes princípios por acreditar que seriam atitudes sensatas que nos ajudariam a regressar incólumes. Tenho a certeza que o terão tido sempre em mente contribuindo assim para a segurança de todos.
Esta é genericamente a minha história. Uma história que sempre considerei criminosa e muito mal suportada até hoje.
Todos os pormenores relato-os com minúcia neste livro. Talvez demasiada minúcia. Também porque não foi apenas a guerra das armas que me aconteceu. Nas Terras do Fim do Mundo uma outra guerra me viria a apanhar desprevenido; mas essa é uma outra história que fez com que tudo tenha valido a pena. Saímos de N’riquinha deixando o vazio da nossa presença. Mas ali deixámos o calor humano com que sempre tratámos aquela gente. “A nossa gente das Terras do Fim do Mundo…” como sempre lhes hei-de chamar.
Como canta o Vitorino nos cantares alentejanos;
“Fui às sortes e safê-me…!”
Eu, nas “sortes” não me safei; aliás, nas sortes aprendi logo no primeiro dia algo que desconhecia por completo.
Transido do frio que fazia no majestoso, mas gélido, convento de Mafra – já lá ia mais de uma hora nuzinho que nem um ovo cozido descascado a fim de me avaliarem as mazelas – queixei-me meio amotinado a um graduado disso mesmo.
- “Meu Alferes. Estou gelado; isto ainda vai durar, ou é mesmo castigo…?”
A resposta foi célere e esclarecedora: “… O frio é civil, nosso cadete! Não incomoda militar…!”
Eu fui à guerra e safei-me…Porque comigo esteve gente que não esqueço. Gente que, compreendendo e aceitando ou não o que nos aconteceu, esteve à altura da gesta dos navegadores que nos antecederam 500 anos antes.
E foi por pouca sorte apenas que não voltámos todos, como o tinha prometido solenemente a mim mesmo na hora da partida.
P. Cabrita
Nota
A publicação deste texto fica a dever-se apenas a um imperativo de consciência que os tempos me sugeriram que fizesse. Nenhuma outra intenção me motivou.