quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O Máquina

A imagem preconcebida que todos levávamos das Terras do Fim do Mundo, provavelmente condicionada pelas inúmeras paisagens africanas vistas e revistas em muitos filmes holliwoodescos, compunha cenários de um ambiente selvagem, não apenas no que concerne à fauna e à flora, mas também quanto às gentes que por ali viviam. A realidade encontrada e que aos poucos fomos conhecendo, revelou-se distante da ficção. Era bem mais selvagem.
A maioria autóctone que habitava tão remotas paragens (o povo Ganguela) vivia numa quase pré-história, facto que os rotulara de raça mais atrasada de entre as múltiplas etnias do continente africano.
A chegada da tropa àquelas longínquas terras, veio conspurcar o seu simples modo de vida com tiques de alguma civilização e hábitos europeus que nada diziam àquela gente, para quem, um qualquer pequeno trapo que permitisse improvisar uma tanga, era vestimenta mais do que suficiente. De facto, o frio era pouco e a chuva apenas água que refrescava e lavava corpos seminus sem necessidade de abrigo, o que explicava as simples e acanhadas cubatas de capim e paus aconchegados de lama, que quase só eram utilizadas para os abrigar das frias noites do cacimbo ou quando a chuva, teimando em cair de noite, arrefecia os corpos que não estivessem debaixo de qualquer coisa.
Os hábitos alimentares não primavam por grande variedade. Os frutos silvestres e algumas raízes eram consumidos no local onde eram colhidas e a agricultura apenas se quedava pela produção de milho (talvez a mais vulgar) e massango, uma variedade de sorgo muito popular em África. As correspondentes sementeiras decorriam durante a época húmida, em lavras espalhadas por lugares específicos da mata, normalmente localizados a distâncias razoáveis dos aldeamentos, para onde migravam as mulheres (a mão de obra principal) aí assentando arraiais por longos períodos, cuidando das plantas que cresciam naturalmente, apenas regadas pelas abundantes e frequentes chuvadas tropicais.
Estes dois cereais, uma vez transformados em farinha, representavam a base da alimentação de boa parte da população africana. A tarefa era, uma vez mais, cometida às mulheres, que passavam algumas horas do dia a bater de forma cadenciada, com um grosso pau, as sementes colocadas no fundo de um pilão a lembrar uma espécie de almofariz gigante, obtendo assim uma farinha grosseira, com a qual cozinhavam uma papa dura a que chamavam pirão, que ingeriam a seco, ou então acompanhada de quando em vez por alguns bocados de carne seca. Para além disso, com a fermentação de sementes de massango, produziam ainda uma beberragem alcoólica, com aspecto acastanhado, que não parecia ser muito agradável, pelo menos à vista.
Era uma sociedade patriarcal e poligâmica, na qual a mulher era força de trabalho. A posse, que definia a riqueza de cada um, apenas respeitava aos homens e era medida pelo número de mulheres e de vacas que cada um possuía. Aliás, para além de definir a riqueza, as vacas serviam para comprar mulheres, pelo que, em boa verdade, um homem era tanto mais rico quanto mais mulheres possuísse, já que isso também significava que tinha vacas para a troca. Era a que cuidava da casa, a que cuidava dos filhos, a que cuidava da lavra, as que cuidavam das vacas, etc.. As terras, essas não tinham propriedade. Não sendo de ninguém, eram de todos.
Nesta sociedade machista, a caça era a única tarefa cometida aos homens. Deslocavam-se em grupo para as zonas de caça e por lá andavam por longos períodos. Do que caçavam, comiam no local o que podiam e secavam a parte restante, armazenando reservas mal cheirosas que, no fim da temporada, transportavam para casa, constituindo as escassas proteínas da dieta alimentar daquelas gentes, dieta essa que, ditada pelos costumes, constituía, a meu ver, a razão principal para a inexistência de obesidade entre os Ganguelas.
Foi no seio desta comunidade que o Máquina, nado e criado no Rivungo, se aculturou. Era apenas mais um nativo, com todas as características culturais, sociológicas e fisiológicas dos Ganguelas, até na sua compleição franzina e pele escura, quase carvão, como o era a maioria da população. Muito popular na zona, expressava-se em bom português num discurso desenvolto e nitidamente mais culto, contrastando com os demais, que apenas dominavam dois ou três dialectos locais. O nome, ganhara-o pelo facto de possuir uma velha máquina de costura portátil com a qual, ora costurava as vestes simples daquela gente, ora remendava os rasgões de fardas de tropas, marinheiros ou polícias. O seu atelier resumia-se a uma pequena mesa que instalava sob o alpendre, em frente à porta da enfermaria, sobre a qual colocava, com mil cuidados, aquela maravilha da técnica, dando à manivela com uma mão, enquanto com a outra segurava o pano mantendo-o alinhado debaixo da agulha da geringonça, num sincronizado movimento de artesanal mestre-alfaiate.
Mas a verdadeira habilidade do Máquina era na cozinha. E também na arte da panificação, ficando explicado o pão que, no primeiro dia, apareceu na mesa ao pequeno-almoço. O Máquina, juntamente com um outro da sua raça, mas ainda rapaz, compunham uma dupla de especialistas da panificação que, com a ajuda imprescindível de um forno artesanal, garantiam pão fresco todos os dias, contribuindo para esta particularidade dos hábitos alimentares europeus, num evidente contraste com as rotinas gastronómicas dos Ganguelas.
Mas estas, contudo, não eram as únicas habilidades deste homem para as coisas da cozinha. Na verdade, para quem nunca saíra do Rivungo, os seus dotes culinários, para nossa felicidade e prazer, superavam os do Lourenço que se iniciava na difícil tarefa de alimentar soldados habituados a refilar da confecção, não obstante o curso que a tropa lhe ministrara.
Não sei se os ares africanos me abriam ou não o apetite, mas ainda tenho na memória o fabuloso arroz de frango que o homem preparava. Ou ainda, a deliciosa cabra do mato que, previamente temperada com requintes de chef pelo Máquina, era assada inteira no forno de pão.
Ainda hoje me cresce água na boca perante a lembrança do petisco, contribuindo para elevar as virtudes culinárias desta espécie de costureiro-cozinheiro ao patamar do mistério, se tivermos em consideração que o homem nunca se afastara do Rivungo mais do que as escassas dezenas de quilómetros que separavam a localidade dos kimbos próximos.
Deixei de ver o Máquina.
As comissões no Rivungo duravam três meses, pelo que, passado esse tempo, o meu grupo regressou à Neriquinha, sendo substituído por outro.
Quando ali voltámos, passado mais de um ano, para cumprir outros três meses de comissão, já não pudemos contar com as suas habilidades culinárias. Da pequena máquina de costura também não ficou rasto.
Parece que a PIDE desconfiou do à vontade com que se movimentava por entre a tropa e a marinha. Levou-o para um interrogatório e nunca mais foi visto. Disseram-nos apenas que tinha sido levado para Serpa Pinto.
Ainda hoje não sei exactamente o que motivou as desconfianças da PIDE, mas não me admirava nada que estivessem relacionadas com a evidente diferença cultural que o distinguia dos demais.