terça-feira, 1 de julho de 2014

DESAPARECIDOS

Episódios traumatizantes ou rocambolescos, marcantes ou sem importância, acontecem a qualquer um e de tal sorte que, independentemente da sua gravidade, ficam guardados na memória prontinhos para virem ao de cima alimentando recordações de histórias passadas, especialmente se se reportam a momentos especiais da nossa existência como foram os da vida militar nas longínquas terras angolanas, sejam os passados na cosmopolita Luanda ou nas extensas planuras da savana do Cuando Cubango. Sentir-se perdido ou considerado desaparecido, podem ser exemplos do que quero dizer.
Certa vez, em Luanda, cheguei a imaginar o Morais desaparecido sem que ele tivesse estado perdido. Passávamos ali um fim-de-semana, hospedados num Hotel lá para os lados da Serpa Pinto, acho eu, um hotel agradável e com bom preço. Separámo-nos. Eu planeara fazer uma visita a uma prima, cujo marido, capitão de carreira, cumpria uma comissão em Luanda, enquanto o Morais aproveitava o resto do dia para dar umas voltas, tirar umas fotografias e desfrutar do bulício citadino de que estivéramos afastados pelo longo tempo que durou a nossa aventura pelas Terras-do-Fim-do-Mundo. Foi atropelado algures quando procurava atravessar a marginal e acabou a noite no hospital. Eu, que de nada desconfiava, é que estranhei a sua chegada tardia ao quarto de hotel.
Mas, a grande cidade não é comparável com as grandes extensões da imensa savana. Aí, a coisa é diferente e tem outra dimensão. Na mata não há pontos de referência, nem ninguém a quem pedir ajuda. Foi exactamente no meio daquelas matas agrestes que, pela primeira vez, me senti perdido quando, juntamente com um punhado de homens, numa noite de chumbo e debaixo de uma chuva diluviana, saímos da picada para só a voltarmos a encontrar na manhã do dia seguinte quando a luz do dia surgiu, definiu os contornos e conferiu significado à paisagem envolvente. Tinha por missão recolher o Silva e o seu grupo que, contrariamente ao previsto, não se encontrava no local pré-definido, voltando eu à base sem o ter encontrado, andando o Silva desaparecido por mais de dois dias, até ser resgatado por um grupo lançado para esse efeito.
Mas estes foram casos insignificantes. O Morais acabou por aparecer, combalido, cheio de mazelas, coxeando e com umas quantas nódoas negras espalhadas pelo corpo. No meu caso, reencontrei o caminho no dia seguinte e nunca fui considerado desaparecido. Quanto ao Silva, quando encontrado, apressou-se a salientar que nunca se considerou perdido.
Apenas a aventura do Varela e do Vieira preocupou uns e outros. Sentiram-se perdidos e chegaram a ser considerados desaparecidos, embora apenas por um dia e uma noite. O caso foi recordado no último almoço da companhia, remontando o episódio ao tempo em que ainda mal começáramos a habituarmo-nos ás peculiaridades daqueles terrenos arenosos semeados de capim.
O terceiro pelotão, comandado pelo alferes Correia, fora incumbido de patrulhar as matas que se seguiam às grandes chanas do Rio Cúbia, lá para os lados do Liahona, primeiro dos kimbos que se enfileiravam no caminho que levava ao Rivungo. E perceberam que aquelas matas eram ricas em caça. Umas quantas palancas, umas pequenas gazelas e as manadas de songues que pelo caminho viram pastando nas chanas alagadas, despertaram o interesse daqueles homens.
Lá para o meio da tarde, quando todos descansavam no precário aconchego das palhotas do Liahona, o Varela e o Vieira, obtido o consentimento reservado do alferes, atreveram-se pela mata circundante penetrando algumas centenas de metros sem perderem de vista a silhueta das palhotas do kimbo que a pouca densidade arbórea deixava entrever.
Avançaram mais um pouco e para surpresa de ambos, como um presente da natureza, uma pequena gazela apareceu por entre o capim mordiscando a erva verde que crescia em abundância. O Vieira fez sinal ao Varela apontando o animal ao mesmo tempo que, colando o dedo à boca, recomendava silêncio para não o afugentar. Este, não dando sinais de ter pressentido os dois, foi andando, de moita em moita, parando aqui, avançando ali, ruminando a erva que ia arrancando com pequenos puxões.
Os dois homens, silenciosos, foram seguindo o bicho, procurando confundir-se com a vegetação, progredindo de árvore em árvore, ora para a direita, depois para a esquerda, outras vezes em frente, mas sempre ao sabor do deambular sem rumo certo da pequena gazela, na esperança de a apanharem a jeito. Perderam a noção do tempo e do espaço e nem deram conta de quanto já haviam andado.
Só quando perderam o animal de vista que misteriosamente desaparecera por entre o capim, é que deram conta de que estavam perdidos. O kimbo deixara de estar à vista e o pior de tudo é que já nem eram capazes de saber que direcção tomar para voltar para trás. Entreolharam-se apreensivos e questionaram-se sobre qual o caminho a tomar. Caminharam numa direcção, hesitaram, tentaram outra e ao fim de algum tempo concluíram que estavam perdidos e o pior é que, entretanto, o sol rendia-se descendo dramaticamente abaixo da copa das árvores, pintando de um vermelho alaranjado o céu que, até então, exibira o seu normal azul intenso e luminoso.
O Vieira, homem pequeno mas de corpo maciço, mais habituado às serranias da terra onde nasceu, ia mantendo a calma em contraponto com o ar assustado do Varela que, visivelmente alarmado e temendo a mata que desconhecia, começou a dar sinais de apreensão que, aos poucos, se foram transformando em pânico, visível no queixume choroso, lamentando a sua má sorte. Entretanto, a noite caia envolvendo com o seu manto negro toda a mata circundante, conferindo maior dramatismo à situação. O Varela, quase em desespero e sentindo-se desamparado, lamentava a sua má sorte:
- Ai minha mãezinha! E eu que há tão pouco tempo me despedi dela.
Aquietaram-se, mas os barulhos da noite ampliados pelo seu característico silêncio juntaram-se ao medo dos soldados que, desconhecendo que perigos se escondiam para além do negrume, começaram a imaginar-se cercados por toda a espécie de bichos medonhos, encontrando uma ameaça em cada restolhar em cada roçagar das ervas, em cada sombra projectada pelo fraco luar coado pela ramagem das árvores. Sem sequer tentar esconder os seus temores, o Varela decidiu que o melhor seria trepar a uma árvore, convencendo-se que ali, enganchado entre os ramos, estaria a salvo da bicharada e fora das vistas do inimigo que, pensou ele, bem poderia estar por ali à espreita. Contudo, ou porque não encontrou uma árvore a jeito ou porque a calma que o Vieira aparentava o convenceram a aquietar-se, conseguiu ainda dormitar enroscado no canto que julgou mais adequado.
O dia nasceu bem cedo, como é costume naquela terra e com a luz do dia desapareceram todos os fantasmas que povoaram a noite do pequeno Vieira e do seu companheiro Varela. Levantaram-se e puseram-se a matutar na melhor forma de encontrar o caminho que os levasse de volta às palhotas do Kimbo onde o resto do pessoal se questionava preocupado com o desaparecimento daqueles dois.
A solução apareceu como por magia quando, surgindo do nada, um elemento da população que, àquela hora, vindo do kimbo, caminhava por entre as árvores num passo decidido de quem se dirige a algum lugar. A aparição daquele negro materializou a tábua de salvação a que os dois náufragos se agarraram e, sem sequer se questionarem sobre a sua identidade, perguntaram ansiosos:
- Liahona?
O negro, um tanto ou quanto atónito, apontou-lhes uma direcção que os dois seguiram sem hesitar acelerando o passo numa incontida impaciência até que, ao fim de pouco tempo, lá divisaram, por entre as árvores, a silhueta das palhotas do kimbo.
Foi uma festa. Ainda abalados pela noite mal dormida, descomprimiram descrevendo atabalhoadamente mais a forma como se perderam e menos a ajuda que os trouxe de novo ao conforto da companhia dos amigos.
Só o alferes Correia, aparentando a calma que todos lhe conheciam, passava mentalmente em revista todas as preocupações que o haviam atormentado desde o momento em que, tendo-se posto o sol, não vira os seus homens regressar. Apostaria que, nesse entretanto, se terá arrependido mais de uma dúzia de vezes de ter autorizado o passeio insensato dos dois soldados.

7 comentários:

Anónimo disse...

A estória "das terras do fim do mundo" é bem mais interessante que a prosa que me diz respeito.

O dia de S. Martinho de 1973 ficou bem marcado na memória e em vestígios de cicatrizes que ainda mantenho. Lembro também o enorme esforço que tive que despender para, cerca das 2 da manhã, conseguir que me abrisses a porta.

Abraço,

Morais

Egidio Cardoso disse...

Pois é, Morais, para usar um termo de um colega meu, nessa altura eu dormia com força. Se calhar só dei mesmo pela tua falta quando bateste à porta.
Mas recordo perfeitamente que vinhas todo engalanado com pensos, ligaduras e pinturas de mercurocromo.

Um abraço

Pedro Cabrita disse...

Bem que queremos "abandonar" a N´riquinha.
Mas parece haver uma espécie de chamamento que nos leva de volta às savanas do Leste que nos marcaram para sempre.
Basta que ocorra um qualquer sopro do vento da História, ou histórias do vento... e aí vamos nós de volta à planura e secura das terras do fim do mundo.

Este episódio escorrido no último encontro anual da Companhia veio reforçar uma certa dúvida metafísica que me vem atormentando.
É que, com tanta história que vou ouvindo em cada encontro, começo a ficar com dúvidas se realmente eu estive lá...
Por outro lado, a perspectiva do "último a saber" não é circunstância que me deixe sossegado...

Vamos lá. Eu sei que havia histórias que o melhor era eu não saber. Mas tantas...?

Parabéns renovados ao Egídio por mais um bom naco de prosa de historiador.

Abraço

P. C.

Egidio Cardoso disse...

Meu caro Cabrita.
Fica mais uma vez demonstrado que qualquer história sobre as nossas guerras na Neriquinha é sempre mais saborosa que todas as outras.
Devíamos promover mais encontros para ver se alguém se recorda de outras peripécias.
Tenho a certeza que haverá muitas mais.

Um abraço

Gabriel Costa disse...

Boa nota, este texto, mais uma vez!
Acho que esta história eu não conhecia e não devia ficar esquecida. Estas almoços também servem para recordar o passado e acrescentar sempre mais um ponto...a quem conta um conto.
Abraço
Gabriel

Anónimo disse...

Carissimos amigos, embora não conheça nenhum pessoalmente, salvo, talvez, o Leonel Pedro Cabrita, não tenho a certeza, mas creio que o vi uma vez, a falar com a "chicalhada" no Cuito Cuanavale.(Eu era escriturário da CCS, paredes meias com o Rui Alberto Vasques de Mendonça, conhecem?!.... Como eu, impossível...)
Há muito, muito tempo, que me delicio com a vossa prosa, especialmente a do Egídio, que, curiosamente, julgo não conhecer, mas provavelmente, até somos vizinhos. Eu moro aqui nas Paivas, Amora, há muitos anos. Já dei por mim a chorar a rir e não só, com a bela prosa do Egídio, narrando imensas facetas e episódios de toda aquela malta que, como imaginarão, conheci melhor que todos vós, pois durante 18 meses no Cuito, levei com eles todos os dias de manhã à noite, porta ao lado, imagine-se... Abençoada N Riquinha, como tão bem insinuou o Egídio, a propósito dos que estavam no Cuito.... E digo 18, porque 15 dias de chegar à Fazenda Tentativa, nunca mais lá voltei, saiu-me a sorte grande. Pediram com urgência, do Grafanil, do Comando da Intervenção, um escriturário experiente. O que me saiu na rifa dos sortudos!...Fui o escolhido pelo Rui Mendonça... No dia seguinte, lá estava eu,no Grafanil, libertando-me assim daquela cambada toda, até ao dia do regresso. Nunca mais os vi, nem sequer no Aeroporto...Saudades, nenhumas, e então do Rui Mendonça, desse homem velhaco, mauzinho de carácter, como tão bem o caracterizou o Egídio num texto antigo. Do José Borges Tamegão, tb faço minhas as as palavras do Egídio, nada tendo a ver com o fascista Rui Mendonça. Figura única, as vezes ridícula, cromo, castiço, apalhaçado, era apenas um pobre coitado, pau mandado, do Rui Mendonça. E então gostava de parecer mau, mas não era, não mordia nada. Agora o outro, só quem o conheceu!... Aquela do Tamegão a comer a cola, na messe, é de ir às lágrimas.. E fomos todos, ainda há dias, 6 de Maio passado, quando recordei nesse episódio, em Mafra, no almoço convívio, CCS e 3442. Já agora, só por curiosidade, da 3441 só recordo uma pessoa, e foi um minuto ou dois, Eduardo Aranha, porque fixei o nome na farda, a despedir-se da família, segundos antes de subirmos ao Vera Cruz 23 Out 1971. Absolutamente, indelével... PS: O lado negativo destes convívios, como todos sabemos, é sempre a noticia da partida de alguns. Este ano foram vários, entre os quais o nosso médico Dr João Carlos Leitão Ribeiro Santos. Esse mesmo, irmão do estudante Ribeiro Santos, assassinado pela PIDE em Outubro de 72. Continuem, amigos, até sempre, companheiros de armas...
Fernando Farinha

Egidio Cardoso disse...

Pois é, Farinha. Devemo-nos ter encontrado, pelo menos a bordo do Vera Cruz. Até dos furrieis não me lembro e éramos todos do mesmo curso. As companhias do Batalhão foram distribuídas por aquele imensa região e nunca mais nos encontrámos.
A Neriquinha era de facto o local mais afastado de todos, mas aproximou bastante todos quantos pertenciam à 3441. Sabe, Os meus maiores amigos de hoje, aqueles mesmo a sério, correspondem a amizades cimentadas na Neriquinha. O comandante da Companhia, o Pedro Cabrita, é um deles.
Obrigado pelo comentário, serve para demonstrar que aquilo que eu vou escrevendo por aqui, aconteceu mesmo, não é ficção.
Do Rui Mendonça, que por pudor apenas tenho tratado por Comandante ou por Ruizinho, como era conhecido, poucas saudades tenho, não obstante o ter-me cruzado com ele poucas vezes. Já faleceu entretanto.

Abraço