sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Os ciúmes do taberneiro

A ausência de quase tudo no sofrido isolamento da Neriquinha quase me levou a esquecer o sabor gostoso de uma bica, daquelas cremosas, tiradinhas à pressão e creio que também o seu aroma. Lá longe, bica não havia, nem mal nem bem tirada, era coisa inacessível. Café só aquela água escura servida ao pequeno-almoço, feita no gamelão e tingida com o líquido esbranquiçado resultante da mistura de leite em pó com a água ferrenha sugada das entranhas arenosas daquele deserto poeirento. E o mesmo se pode dizer de tudo o resto. Ali apenas se podia contar com o rancho condicionado na sua qualidade pelo parco orçamento que o Morais dispunha. Talvez por isso, ao pequeno-almoço, tenha substituído a xícara de café com leite por duas cervejas. Matava a sede e ia melhor com a sandes de paio.
A mudança para as Mabubas alterou, num ápice, tudo isso. Agora, o estaminé do Manolo estava ali, à mão e devidamente abastecido. Beber uma bica voltou a ser rotina bem como tudo o resto, passando o local a ser o poiso frequente de quase toda a gente. Ali se almoçava ou jantava sempre que o rancho não agradava, tomava-se café tirado à pressão, tantos quantos se quisesse e do bom. E bebiam-se imperiais quando era necessário aplacar a sede. De caminho jogava-se às cartas, disputavam-se torneios de matraquilhos, ensaiavam-se arremedos de política barata, criticava-se o que não se achava bem, discutiam-se assuntos sérios e, porque aquilo não deixava de ser poiso da tropa, preenchia-se a falta de assunto com dichotes de caserna, tolejando quando a cerveja ingerida, ultrapassando a fasquia do razoável, toldava o raciocínio, interferia com o tino e bloqueava o bom senso.
Com uma espécie de bonomia indolente, o Manolo a tudo assistia pasmaceando atrás do balcão, atendendo todos com natural simpatia até porque não se podia queixar da vida; Clientes não lhe faltavam e embora a receita não fosse muita, sempre dava pró gasto amealhando, aos poucos, um pé-de-meia cuja dimensão nunca ninguém se preocupou em avaliar.
Da cozinha encarregava-se a esposa, senhora de trato delicado que, saindo pouco do seu encerro, no intervalo entre o empratamento de um bitoque e o virar de mais um prego, assomava à pequena janela que ligava a cozinha ao balcão para dar dois dedos de conversa à malta empoleirada nos bancos altos alinhados do outro lado. Para nós, a dona Benvinda era uma senhora, não só pela postura mas também porque a idade, não sendo muita, sempre estava uns anitos à frente da nossa. O facto é que a senhora era respeitada, com naturalidade, ao ponto de o “dona” que todos faziam questão de não esquecer sempre que se lhe dirigiam, parecer pouco respeitoso. Pelo menos era o que achava o Mota que, estabelecendo uma comparação mental com as “donas” que conhecia, corrigia-nos em tom sério:
- Dona não! Dona é a mulher-a-dias. Senhora dona, se não se importam!
Havia ainda o cinema, um grande barracão devidamente apetrechado para assim poder ser chamado. Se a minha memória não me atraiçoa, havia pelo menos uma sessão por semana. O bilhete não era caro e, por isso, fosse qual fosse a fita, toda a gente ia ao cinema, incluindo o Administrador do Caxito que ali se deslocava de propósito para assistir à sessão que, para mal de todos nós, não começava antes de sua excelência chegar. Das fitas que por ali passavam não havia nada a dizer. Para além das coboiadas do costume, retenho de memória algumas fitas interessantes ali exibidas. Recordo-me, por exemplo, de um violino no telhado, novidade cinematográfica estreada dois anos antes e um outro, cujo nome não sou capaz de recordar, mas que tinha como actor principal o francês Serge Reggiani num papel que se encaixava que nem uma luva no seu fácies triste e melancólico. Encarnava a figura de um infeliz, casado com uma mulher que, sem pudor ou recato, o enganava com todos os homens que dela se aproximassem sem se preocupar com a tristeza submissa do marido que a tudo assistia sem queixume, limitando-se a um sofrimento silencioso que os olhos mortiços do actor ajudavam a compor.
No dia seguinte, enfileirados ao balcão, beberricando imperiais, escolheu-se para tema de conversa o enredo do filme da noite anterior. Naquele dia, por estranha coincidência, o Mota estava com uma dúzia de cervejas a mais e no meio dos comentários, reparou na evidente parecença entre o Manolo e o actor francês.
- Oh Pá! Tartamudeou o Mota tentando vencer o entorpecimento da língua: - Já repararam que aqui, o Manolo, é parecido com o “gajo” da fita de ontem à noite?
A parecença era evidente: os mesmos olhos mortiços, as pálpebras meio descaídas e o ar ensonado a realçar o semblante tristonho. Contudo, embora todos concordassem, a conversa não teve andamento especialmente por parte do taberneiro que se fechou num mutismo que ninguém estranhou até porque todos sabiam que o homem era pouco falador e não se esperava que viesse agora gastar palavras perorando sobre tema que não lhe interessava.
A chatice é que, confirmando que não é natural alguém se reconhecer parecido com quem quer que seja, o Manolo achou de entender, nas palavras do Mota, coisa diferente. As parecenças, concluiu, não eram fisionómicas mas sim com o enredo do filme, mais especificamente com a personagem e o comportamento da respectiva consorte. Em suma, na cabeça enciumada do homem, o Mota estaria a insinuar que a sua Benvinda o enganava. E assim, ensimesmado e de cara fechada, foi remoendo uma surda revolta sem que alguém disso se apercebesse.
Entretanto a noite foi avançando, o tema da conversa foi mudando, acrescentaram-se mais umas quantas cervejas às muitas já bebidas e esqueceram-se os infortúnios vividos na tela pelo Reggiani.
Abandonado o aconchego do balcão, queimava-se o tempo com as últimas achegas ao tema entretanto trazido à lide, mesmo ali, em frente, no meio da rua. E de tão interessante que a conversa estava que ninguém se apercebeu que, vindo do escuro, sem emitir um som e brandindo um grosso fio eléctrico, o songamonga do Manolo investiu, qual rapace, descarregando furiosas vergastadas nas costas do Mota, aplacando assim a fúria que fora acumulando num crescendo de soberba bem disfarçada. O Mota balançou sob os golpes da improvisada chibata e, parecendo não as sentir, talvez anestesiado pelo excesso de cerveja, exclamou:
- Alto, que estão a bater no meu amigo Leitão.
O ataque veio tão rápido e tão de mansinho que antes que alguém conseguisse esboçar um movimento, o Manolo retirou-se tão lesto quanto lhe permitiu o discernimento e, esgueirando-se pela porta do restaurante, desapareceu no seu interior.
Refeitos da surpresa e mudando radicalmente o tema da conversa para tão inesperado assunto, analisámos e reanalisámos o porquê de tão inopinado ataque e rendemo-nos finalmente à evidência: o homem não percebeu que as suas parecenças eram mesmo as relativas à fisionomia do grande actor e não com a sina da personagem que, naquela fita, encarnava.
Quanto às consequências do acto, o ofendido homem perdeu a face e uma data de clientes; nós, infelizmente, vimo-nos de novo confinados ao rancho. Coisa de somenos importância. Afinal, o cozinheiro Lourenço, definitivamente adstrito à messe, não era assim tão mau a lidar com os temperos.

2 comentários:

Anónimo disse...

Bela narrativa de um da mais marcantes episódios da "peregrinaçom"!...

Assisti à parte em que o Mota depois de se referir às semelhanças com o Reggiani e, com a impertinência que o acumular de copos de imperial porporciona, começa a perguntar, com aquele ar de gozo que bem conhecemos, se o bar servia uns quantos pratos mais ou menos sofisticados. Ele era o foie-gras, as trufas, o caviar e outros.

O Manolo continuava de semblante fechado e, quando o Mota e o Leitão resolveram sair para apanhar ar, perguntou-se se caviar era algum bicho com cornos.
Prova-se que não ficou convencido com a resposta que lhe dei.

Abraço,

Morais

Egidio Cardoso disse...

Já não me lembrava do bicho com cornos. Pelos vistos, era a primeira vez que o homem ouviu falar em tal coisa.
Era desconfiado, como o são todos os ciumentos.