A estafa daquela quase interminável viagem que nos trouxe dos confins das terras do fim do mundo até às delícias da civilização deixou as suas marcas. Meio atordoado e fisicamente combalido, nem me dei conta, no imediato, das características do lugar onde fomos largados. Em boa verdade, nem pensei nisso, pelo menos que me recorde. Ao abandonar a viatura, após percorridos mil e tantos quilómetros com escassas paragens pelo caminho, apenas ansiava por esticar as pernas e procurar a camarata na mira de um duche frio que me refrescasse os miolos, retirasse os músculos entorpecidos da sua letargia e me libertasse daquela sensação de sujidade pegajosa acumulada pelos longos dias da viagem; descobrir as Mabubas era coisa que, no momento, não me preocupou e nem uma pontinha de curiosidade me levou a pensar no assunto. Lancei-me à cata das minhas tralhas algures perdidas e esborrachadas no meio das demais e olhei à volta à procura do quartel.
Não obstante o reboliço da chegada, deu para perceber que nada à volta se parecia com instalações militares. Considerando as casas circundantes, assumi que estaríamos no meio da povoação, uma qualquer localidade, um pequeno lugarejo que, como tantos outros, na então áfrica portuguesa, nascera ao sabor das cruas exigências de ocupação secular daquele imenso território. O quartel, esse, certamente estaria por ali. Provavelmente, deduzi, para além das traseiras do edifício do comando postado à nossa frente.
Mas não era assim. Dali a um nada descobriria que o dormitório dos furriéis, pelo menos esse, estava localizado num edifício comprido, já nos limites do casario principal mas visivelmente não enquadrado em qualquer perímetro que pudesse ser considerado quartel ou similar. É que, nem sequer tinha aspecto que se parecesse com o que quer que fosse militar. Não se viam muros, guarnições, postos de sentinela ou outros sinais que fizessem lembrar preocupações de defesa. Embora fosse suposto estarmos em guerra, não se viam sinais disso.
Abandonámos o asfalto da rua principal espremida entre uma correnteza de casas, descemos por outra, agora empedrada e metemos por um caminho de terra e piso irregular que, atravessando o campo, levava ao edifício. A paisagem envolvente, coberta de vegetação meio ressequida (a época das chuvas passara havia tempo) acompanhava as irregularidades do terreno. No outro lado do caminho uma enorme mangueira, carregadinha de pequenos mangos ainda verdes, cobria toda a parte frontal da entrada do edifício enquanto, ao longe, sobressaía a silhueta majestática e caricatural dos imbondeiros, cujas galhas, despidas e estranhas, pareciam irregularmente recortadas no intenso azul do céu. Definitivamente, nada daquilo se parecia com a Neriquinha; não havia pó, as planuras imensas desapareceram e nem a irregularidade do caminho chegava a constituir um incómodo. Na verdade, por ali tudo era novidade.
O edifício, que a partir de então passou a acomodar o grupo de sargentos da companhia, revelou-se uma agradável surpresa. Embora por fora se parecesse com um barracão ou um qualquer armazém, o seu interior era diferente, mas para melhor. Um espaçoso hall, à entrada, dava acesso a um corredor longitudinal que, correndo pelo centro do edifício distribuía à direita e à esquerda quartos espaçosos, cada um comportando duas divisões dando uma imagem singela de suíte. Duas camas, num lado, definiam a zona de dormir enquanto o outro simbolizava uma espécie de sala de estar. As camas, essas, eram iguais às da Neriquinha, mas assumi desde logo que estariam limpas de percevejos embora a rede mosquiteira que selava as janelas garantisse que os mosquitos não eram diferentes, pelo menos no que toca ao seu afã de infernizar quem se expusesse às suas picadas vorazes. Um luxo! Pensei eu provavelmente condicionado pela recordação da precariedade da nossa camarata nas terras do Cuando Cubango.
Despi o camuflado e deixei-o cair por ali. Não obstante já fragilizado e coçado pelo uso intenso de dezoito meses de mato, pareceu ter enrijado. Ganhou textura em consequência da absorção de pó amassado com o suor daqueles quatro dias de viagem. Depois, peguei na toalha, lancei mão da lâmina de barbear e do sabonete e dirigi-me às instalações sanitárias localizadas um pouco mais à frente, no outro lado do corredor.
Passei sabonete várias vezes e perdi a noção do tempo saboreando a frescura revigorante do jorro forte do duche até sentir as pontas dos dedos enrugadas. Postei-me à frente do espelho e desfiz a barba de cinco dias, com cuidado, num escanhoar meticuloso e regressei ao quarto. Estiquei-me sobre a cama deixando que uma doce elanguescência fosse tomando conta do meu corpo cansado.
Não sei quanto tempo por ali fiquei e nem tive consciência de ter adormecido. Se calhar a fome despertou-me do doce torpor. Qual reflexo condicionado, veio-me à memória o restaurante que vira quando iniciei a descida da rua a caminho do dormitório. Ou então, os últimos cinco dias a ração de combate começavam finalmente a fazer o seu efeito.
- Não! Pensei. Deve ser o relógio biológico a anunciar a hora da janta. Não é meu hábito deixar-me guiar pelas armadilhas imateriais do subconsciente.
Levantei-me, sem pressa. O lusco-fusco do fim de dia anunciava a noite que se aproximava. Vesti a melhor roupinha civil que arranjei, um bocado amarrotada pelos meses e meses que esteve encafuada no fundo da mala. Por sorte, naquela altura, usava-se bem justa e isso disfarçou as pregas da plissagem a que fora sujeita. Calcei o sapatinho preto, procurei companhia e em passo indolente, caminhámos em direcção ao restaurante.
Estrategicamente colocado no melhor sítio da rua principal à direita de quem desce, aquele restaurante pareceu-me o mais evidente sinal de civilização. Uma ampla esplanada, uma singela mas simpática sala de jantar e um balcão tipo snack-bar com bancos altos ao redor, anunciavam que a nossa vida começava a mudar para melhor. Tirar a barriga de misérias era coisa que ia começar já; descontando a compreensível falha de memória já queimada pelo tempo, apostaria que me devo ter alambazado com um grande bife com batatas fritas e ovo a cavalo. Era petisco com que sonhava frequentemente, especialmente quando, não havendo opção, o rancho na Neriquinha deixava muito a desejar.
Decididamente, os tempos de miséria chegavam ao fim e, como a seu tempo se verá, a coisa não se ficaria apenas pelos pecados da gula. Aquelas Mabubas que nos saíram em sorte prometiam uma nova vida. Ruas asfaltadas, casas, população civil e um restaurante eram amostras promissoras. Para já, tudo corria de feição à mesa daquele restaurante.
7 comentários:
O 1º Sargento Pinto tem lido com muito interesse e particular agrado os vossos textos sobre os diversos temas relacionados com a C. CAÇ. 3441, na sua passagem pelas "terras do fim do mundo" da então Província de Angola. São muito bons e revelam bem a capacidade dos seus autores. Sensibilizado, agradece os elogios que lhe têm feito, os quais considera muito generosos. Todavia, é seu entendimento que o chefe só pode ser bom chefe, se os colaboradores quiserem e lhe prestarem uma colaboração eficaz.
Um abraço especial para todos, e um outro muito especial para os que melhor cumpriram, que foi a grande maioria.
Publicado por Jorge Galvão a pedido do 1º Sargento Pinto, na falta de capacidade deste para acompanhar o progresso
Transição bem conseguida, sempre na mesma linha de repórter atento e vivamente descritivo. Pelo que, ao ler, quem por lá passo é como se regressasse ao terreno e às situações.
Abraço... e vamos ver o que nos conta as Mabubas.
PC
Mas que surpresa agradável! Saber que o (ex) 1º sargento Pinto é leitor assíduo do que aqui escrevo, deixa-me enlevado e motiva-me ainda mais para continuar.
Penso que, quem tem vindo a acompanhar as crónicas que por aqui vou deixando, já se apercebeu o quanto eu considero o homem que dá pelo nome de MANUEL ANTÓNIO PINTO. Durante aqueles conturbados tempos, especialmente no isolamento tórrido da Neriquinha, foi para mim um pai e penso que também para a maioria dos companheiros que compunham a C.Caç. 3441.
Espero que esteja bem de saúde. Um bem-haja, meu primeiro,
Amigo Cabrita. Não sei como será doravante.
Como sabe, a nossa vida nas Mabubas foi muito menos marcante, quando comparada com o que passámos na Neriquinha. E por isso a memória, porque mais volátil, não guardou tanta coisa.
A ver vamos!
2/10/2013 - É com grato prazer que tomei conhecimento do interesse, por parte do nosso sempre 1º Pinto, nas crónicas, que tão bem são publicadas pelo nosso Egidio Cardoso. Espero que o nosso amigo Pinto, possa desfrutar por muitos e muitos anos, a vida que lhe for concedida, na companhia da familia e dos seus amigos, onde todos nós, comp 3441, nos incluimos. Um forte abraço para o primeiro,o conselheiro, o amigo. Bem, quanto à nossa chegada ao oásis, chamado de Mabubas, reconheço que a transcrição feita pelo Egidio é tão clara e incisiva, que de forma progressiva,me faz recordar passagens da nossa vivência. recordo me, que não dormia nesse barracão destinado aos furrieis, mas sim no edificio da enfermaria, que tinha bem visivel uma cruz em vermelho na parede frontal do mesmo. Mas, com os teus relatos, tenho a certeza que irei recordar outros pontos de interesse. Obrigado pelo teu empenho. Um abraço e acredita que mensalmente, leio com muita curiosidade todas as narrativas. Figueiredo Pinto.
Só uma pergunta:Não pertenceram ao Batalhão de caçadores 3856?
Eu era da 3440-
http://companhiadecacadores3440.blogspot.pt/
Caro "SOUGUS".
A C. Caç. 3441 pertenceu ao Batalhão 3857.
Chegámos a Luanda um mês depois de vós.
Essa fotografia do meu quarto nas Mabubas, onde tinha por companheiro o Mota, dá-me recordações engraçadas. Era normal o Mota fumar no quarto, coisa que eu, embora também fumador na altura, não fazia. A solução era abrir as portadas da janela e a porta para o corredor para arejar. Havia então uma invasão de mosquitos pelos buracos da rede mosquiteira que, se deixássemos, nos sugariam toda a noite. Resultado: saído o fumo, era o quarto seringado de spray anti-mosquito o que era pior que o fumo. A solução era esperar um pouco no quarto do Leitão, que ficava em frente, até o veneno se dissipar.
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