domingo, 1 de julho de 2012

A PROFESSORA

A escola também chegava a cada um dos pequenos aglomerados populacionais das zonas mais remotas do Cuando-Cubango. Não a todos porque, na zona por onde andámos, não havia escola na maioria dos kimbos. Por ali, apenas Mavinga, Neriquinha e Rivungo tinham escola e o respectivo professor. O da Neriquinha, um rapaz tão novo quanto qualquer um de nós, era, à vista da população, uma pessoa importante e muito respeitada: sabia ler, desenhava letras bonitas no quadro e dominava muitos saberes trazidos lá da cidade onde aprendeu.
Eu, e penso que também a maioria dos meus companheiros, achava piada ao facto de insistir em usar gravata num local onde a indumentária mais comum era a tanga. Tal adereço, dependurado no pescoço do homem, sobressaindo sobre a camisa colorida, compunha um quadro ridículo se tivermos em conta a nudez daquele lugar empoeirado onde o calor insistia em torrar tudo à volta. O penduricalho estava nitidamente a mais, especialmente se se tiver em conta que aquelas gentes nunca tal haviam visto. Pelo menos até o professor querer dar-se ares de importante com recurso à indumentária. Até porque, a escola, um modesto barracão coberto de capim equipado com bancos improvisados, não se apresentava com a dignidade suficiente para conferir estatuto ao mestre-escola. Apenas a pequena ardósia, de cor escura, rudimentarmente encostada à parede do fundo, permitia adivinhar que ali era a sala de aula. Não fora isso, dificilmente se intuiria que aquele barraco era o estabelecimento oficial onde a criançada aprendia o bêábá.
O facto é que a gaiatada ouvia compenetrada as aulas do professor, papagaiando em coro os ensinamentos, como se a matéria tivesse de ser enfiada à força nas suas cabecitas, método assaz interessante que me levou uma ou outra vez a aparecer, espreitando a aula conduzida com alguma solenidade pelo professor.
Mas vamos ao que interessa. Daí a dois dias, partiria a coluna que faria o reabastecimento ao Rivungo. O stock de cerveja, tabaco e géneros estava perigosamente baixo o mesmo acontecendo com as reservas dos PSP’s nos Kimbos que ficavam no percurso. E isso era razão mais do que suficiente para que fosse considerada vital a reposição dos níveis antes que se esgotassem.
Para a missão foi destacado o Leitão que encetou os preparativos. O Gameiro tratou de coordenar o carregamento de grades de cerveja, tabaco e outras coisas da cantina há muito requisitadas e o Morais mandou separar os géneros que o cozinheiro do Rivungo necessitava. Seria necessário ainda aguardar a chegada do Nord Atlas que semanalmente nos trazia os frescos da Manutenção Militar, aproveitando-se o ensejo para levar ao pessoal ali destacado alguma carne, ovos, hortaliças ou qualquer outra coisa que resistisse ao calor e aos solavancos das viaturas e ao mesmo tempo, não se estragasse durante a longa viagem.
As berliets foram preparadas, verificaram-se os níveis, encheram-se os depósitos de gasóleo, os pneus foram passados em revista e o Lobato deu as últimas afinadelas. Enfim, tudo preparado com a minúcia que o Leitão costumava exigir. Ficara apenas por resolver um problema de última hora com os condutores. Uma sequência de acontecimentos estava a dificultar a vida ao Gabriel, furriel mecânico da companhia a quem competia a gestão da frota e do respectivo pessoal. Parece que um dos condutores estava doente, um outro argumentou com um impedimento qualquer e como nem todos os outros estavam habilitados a conduzir berliets, a coisa começou a complicar-se, aventando-se a hipótese de ter de avançar um dos que ainda mal descansara da última missão.
Na messe, à noite, depois do jantar, à volta com a última cerveja do dia, o assunto veio à conversa. Não obstante as suas funções não o obrigarem a sair para a mata, privilégio que muitos invejavam, o Gabriel gostava de, sempre que podia, fugir do espaço entediante do arame farpado. Ia à caça, por mais do que uma vez foi ao Rivungo, a Mavinga, Neriquinha Velha e Chicove; integrou a primeira incursão ao Esquadrão conduzindo ele próprio uma das berliets, era sempre voluntário para sair em auxílio de quem tivesse ficado atascado nas chanas lamacentas, como aconteceu comigo nas planícies do Cúbia e não resistia a, por vezes, ir à lenha ou às lavras da população quando calhava.
Assim, aquela viagem vinha mesmo a jeito; iria espairecer, matar saudades da malta que estava no Rivungo, dar dois dedos de conversa aos polícias do Liahona, do Mugamba e do Demba, beber umas cervejolas com o chefe França e com um pouco de sorte, até podia ser que apanhasse algumas palancas nas chanas do Cúbia.
- Tá decidido! Vou contigo. Sentenciou dirigindo-se ao Leitão.
No dia seguinte, a chegada do Nord trouxe uma surpresa. Antes que se abrissem as portas traseiras por onde se descarregariam as caixas recheadas de géneros, uma figura feminina, com aspecto frágil, descia timidamente pelas escadinhas dependuradas da estreita porta lateral. A sua tez, de um castanho suave, não deixava dúvidas quanto à raça, embora, pelo menos para mim, não permitisse definir a etnia. A pele, visivelmente bem tratada e a indumentária, indiscutivelmente citadina embora humilde e vulgar, deixavam antever que não se tratava de uma qualquer mulher da Neriquinha de regresso à sua terra.
Todos os olhares convergiram para a figura da mulher que acabara de aterrar naquele fim de mundo. Não porque se questionassem sobre o porquê de tão inesperada visita, mas por outras razões. Preta ou não, o seu aspecto distanciava-se do ar andrajoso e sujo das mulheres do kimbo. O olhar guloso de cada um, seguindo com avidez o seu andar sensual era disso sinal bem evidente; havia meses que não punham a vista numa mulher de jeito e por isso, ainda que à distância, aquela foi acariciada, quase violentada e praticamente despida pelos olhares de tantos quantos presenciavam a cena, saciando, ainda que por breves instantes, pecaminosos desejos a muito custo contidos.
Só depois é que a curiosidade veio ao de cima. Quem seria? Porque veio no Nord? Estaria só de passagem como da outra vez em que se avariou o motor do Dakota? Ou vinha para ficar?
Afinal não havia mistério. Tratava-se da professora que iria reger a escola do Rivungo. Só não se percebeu por que veio de Nord, via Luso, quando o mais natural seria vir de Serpa Pinto, na carreira dos pequenos aviões da Tasa que nos traziam o correio e que a levaria direitinha ao Rivungo. Mas provavelmente sairia mais caro, já que a viagem de Nord era de borla. A coitada da professora é que não se terá apercebido que assim, teria de fazer a parte restante da viagem integrada na nossa coluna de reabastecimento. E isso não era pera doce. Sete horas sobre uma berliet aos saltos pela picada irregular e empoeirada, suportando as inclemências do tempo, não seria propriamente um passeio para uma menina que parecia não estar habituada a tais provações.
Mas não havia outra solução. Creio que lhe reservaram um lugar ao lado do condutor, acomodação que, não obstante o assento de lona, sempre era mais confortável do que viajar sentada sobre uma caixa qualquer. Acomodou-se o melhor que pôde e lá partiram, mata adentro, ao sabor dos meandros caprichosos do percurso, ficando o assunto esquecido mal a última berliet desapareceu, lá ao fundo, na curva da picada.
Bem! Esquecido por todos, menos pelo capitão. A verdade é que o Gabriel decidiu ir na coluna, mas não passou cavaco ao comandante da companhia e creio que nem sequer ao primeiro-sargento que, para além de ser o superior hierárquico imediato, costumava estar por dentro de tudo o que se passava. E isso não caiu bem, especialmente porque ninguém tirava da cabeça do capitão que a decisão do Gabriel, à sua revelia, tinha a ver com a professorinha. A forma sorrateira como o furriel se desenfiou cheirava a rabo de saias e isso ainda era mais grave. Todos se aperceberam do descontentamento do capitão e a julgar por um subtil comentário feito pelo primeiro-sargento ao jantar, viria borrasca para cima do Gabriel mal regressasse da viagem.
Mas disso nem ele sabia e se bem o conheço, nem nisso pensava.  Certamente que nem lhe terá passado pela cabeça que a sua decisão em fazer aquela viagem com o Leitão lhe iria trazer dissabores. Disso só se apercebeu, volvidos dois dias quando, no fim de mais um regresso do Rivungo, as berliets se imobilizaram na parte inferior da parada como faziam sempre. Era o momento de sacudir o pó, desaperrar as armas e esticar o corpo cansado e moído de tantos safanões resultantes dos saltos e ressaltos que as irregularidades da picada impunham às viaturas. Nesse ínterim, alguém lhe soprou que o capitão se preparava para lhe dar uma porrada. No mínimo, de uma piçada ninguém o livrava. Na dúvida, o Gabriel preparou-se para a borrasca, provavelmente engatilhando explicações que justificassem a infracção que entendia não ter existido.
Ouviu sermão e música cantada, foi avisado, admoestado e ameaçado com uma punição severa. Mas a porrada ficou suspensa. O Leitão poderia confirmar que tudo fora combinado antes da chegada do Nord; A professora não poderia ter sido o leitmotiv.
Foi a vez do Leitão que, por sua vez, foi questionado, interrogado, apertado, ouviu por longo tempo as mil uma razões que justificavam a porrada. Umas quantas, no entender do capitão, eram suficientemente graves para justificar uma punição severa.
Mas nada aconteceu. Ou porque o capitão entendeu que as justificações mereciam credibilidade ou porque confiou na palavra do Leitão, o Gabriel saiu incólume. Não me admiro nada que a sua sorte tenha sido ditada pela confiança que o capitão depositava no Leitão. Era o furriel mais antigo, era sério, cumpridor, não se baldava e não criava problemas. Sim, é bem provável que isso tenha pesado na decisão.

18 comentários:

Gabriel Costa disse...

FOI SEMPRE ASSIM! TIVE A FAMA E OS OUTROS O PROVEITO! FALTOU-TE DIZER QUE A GAROTA JANTOU NA MESSE DOS OFICIAIS ONDE, AÍ SIM, RESIDIA O VERADEIRO PERIGO ÁS SUAS VIRTUDES!
NA VERDADE, EU QUERIA ERA SAIR DA CASERNA! BONS TEMPOS!

Egidio Cardoso disse...

Se calhar, punhas-te a jeito...

Anónimo disse...

História interessante a da professora.
Pena que os seus contornos continuem (ainda) abrangidos pelo segredo militar e, nesse contexto, pouco possa ser revelado sobre a matéria...
Mas, mesmo assim, sempre posso afirmar que a história está quase bem contada... e congratular-me pelo bom espírito de corpo que ainda se pode registar entre os furriéis da C.Caç. 3441, o que não deixa de ser motivo de orgulho para mim.
A professora...
.... boa rapariga, se bem me lembro...!

PS
(:< ))))

P.C.

Egidio Cardoso disse...

Fica demonstrado que existem sempre dois lados de uma mesma barricada e cada um só conhece os factos passados no seu lado, limitando-se a fazer uma ideia do que se passou no outro.
É exactamente neste contexto que o espírito de corpo assume importância: temos sempre a tendência de torcer pela nossa equipa.
Quanto aos pormenores aqui relatados, se é que assim se podem chamar, foram-me relembrados exactamente pelo Leitão.

Pedro Cabrita disse...

Esta, cena nesta altura, está-me a dar uma enorme vontade de rir.
Como a importância das coisas se altera radicalmente conforme o tempo e as circunstâncias.
Vou ficar curioso por conhecer a versão do Gabriel. De preferência completa e com pormenores...
Quanto ao Leitão - o grande guerreiro Leitão, um dos melhores no mato - se o Gabriel ainda não lhe pagou um jantar... ainda vai bem a tempo...
Enfim... Grandes histórias das Terras do Fim do Mundo...
Um dia toda a história ficará completa.

PC.

Gabriel Costa disse...

Passados estes anos, este assunto já não está ao abrigo dos "segredos militares". No entanto, perdura um segredo que continua guardado pelo "maior" da companhia: a garota, depois de jantar, ficou a descansar no edifício dos quartos dos oficiais,até ao momento da partida, cerca das 2 da manhã. Pergunta-se: será que esteva a dar aulas de estratégia militar? Ou a recebê-las? Será que esteva a manusear uma arma, dado que estava em zona de combate? Será que esteva a ser interrogada pelo responsável da informação militar, na companhia? Será que lhe passaram revista? se assim foi, o que descobriram? Será que era um elemento inimigo camuflado de professorinha e que foi torturada para confessar os motivos da sua aparição no meio do nada? Será que se "vendeu" à tropa e foi infiltrar-se no inimigo? A verdade, é que hoje ainda não me sinto culpado de a ter retirado daquele lugar medonho e horrível, que era a casa dos oficiais! Se por ali ficasse mais algum tempo, coitada, guarda-la-iam a 7 chaves e esta história perderia a piada!
Caro capitão: é altura de revelar que tortuosos segredos a pequena tinha em seu poder, porque, mesmo depois de jantar, e durante 6 horas, os oficiais foram, com elevado sentido do dever e espírito de sacrifício, capazes de se sacrificarem em nome da segurança da companhia,e, quiçá, de toda a guerra no Leste de Angola! Chegou a hora de sabermos quem foi o pricipal interrogador que, com o microfone na mão, obrigou a garota a deitar tudo da boca para fora! Em nome da paz, claro!!

Anónimo disse...

Este tópico trás-me à ideia as aulas que os furrieis ministraram durante meses aos praças e que resultaram em diplomas da quarta classe para muitos deles. O exame final, cujas peripécias caricatas já se encontram muito difusas, davam para outra boa estória.



Morais

Anónimo disse...

Um bom político anota todos os movimentos dos adversários de modo a jogá-los no momento certo.
Ora vejam bem como o nosso brilhante autarca de Penalva do Castelo, ao tempo em que era o manager da escuderia Berliet de N'riquinha anotou com uma precisão suíça todos os movimentos da professorinha desde que chegou às Terras do Fim do Mundo. Quantas horas passou nas instalações dos oficiais, a hora de partida da coluna para o Rivungo; enfim, tudo ao pormenor e, ou tomou notas, ou a memória ainda se mantém firme e fresca.
O controlo foi tanto que o Gabriel nem hesitou em acompanhar a rapariga ao Rivungo, não fosse perder-se a pequena pelo caminho, ou, quem sabe, tomada pelo inimigo...

O "segredo de justiça militar" continua a condicionar este meu depoimento e nem para memória futura me posso abrir totalmente.... Mas ficam alguns ajustamentos.
A professora arribou de facto num Nord e de forma inusitada. Provinha de Teixeira de Sousa e era esposa de um autarca daquela vila.
Deslocava-se a N'riquinha para uma visita a um irmão que não via havia anos. Logo que chegada concluiu-se que o irmão não estava ali, mas sim no Rivungo. Razão para a tal viagem.
Tendo em conta a óbvia aculturação aos hábitos do colonizador (indumentária, domínio da língua portuguesa e índices culturais acima da mediania a que estávamos habituados no local) o "maior" achou por bem que a stôra mereceria melhor estadia que não uma cubata do kimbo, ou uma refeição de pirão requentado. Na N'riquinha sempre soubemos receber quem nos visitava,... fosse quem fosse...
Para pernoita achou ainda o "maior" que seria "prudente" e de bom tom proporcionar uma instalação condigna e essencialmente individual para que a pequena pudesse "dormir descansada" e em condições mínimas de dignidade.
Determinou então o "maior", consultado o indigitado facultante da sua instalação privada, que a srª professora pernoitaria no quarto do dr. Armando Lacerda, passando este de armas e bagagens (suponho, embora fosse apenas por uma noite) para os quartos dos outros alferes.
E assim foi.
Quanto àquelas terríveis 6 horas que pairam excitantes na imaginação de alguns malandrecos daquela companhia, pouco posso adiantar: não ouvi ruídos (muito menos gritos, por exclusão de partes...), não determinei interrogatórios, nem a pequena me pareceu inclinada para a instrução militar, tendo em conta a sua conhecida função docente. Também ficou arredada qualquer suspeita de se tratar de uma espia inimiga.
Esta a verdade e só a verdade a que estou obrigado pelo juramento militar...

Depois das 2 horas da madrugada perdi o controlo...
E aí se pede o apoio do Gabriel para nos dar continuidade ao relato da estadia da rapariga de Teixeira de Sousa em terras do Fim do Mundo, porque ninguém melhor que ele nos poderá tirar desta dúvida militar, sim, porque duma ocorrência no seio militar se trata.

Assim sendo, ficamos a aguardar a reportagem, ficando desde já dispensado da referência à viagem em si, poupando as conhecidas sete horas do percurso, bem como outras tantas da volta. Poderá cingir-se apenas à estadia no Rivungo porque jamais me chegou ao conhecimento qualquer relatório desse episódio.

A Bem da Nação e da paz, como diz, ficamos na expectativa...

PS zito oportuno

A estória da falta de condutores para a coluna ao Rivungo está bem metida. E dessa nem posso duvidar.
O estranho é que essas circunstâncias eram normalmente decididas pelo "maior" e naquele dia nada lhe chegou nem por sussurro...
O que estragou tudo foi o nosso 1º me ter entrado pelo gabinete adentro logo pela manhã a perguntar-me, como lhe competia, se eu tinha conhecimento, ou tinha autorizado o nosso Furriel Mecânico a conduzir uma Berliet ao Rivungo...
E lá saltou a tampa ao "maior"...

Egidio Cardoso disse...

Bem ... desta vez consegui trazer alguma polémica ao blog.
Se calhar exagerei a parte da falta de condutor.Coisas de quem só sabe de ouvir contar.
Quem conta um conto....

Morais! já me ocorreu essa parte de termos de fazer de professor a magalas iletrados. Mas, como dizes, está muito difuso e se contar terei de meter alguma ficção.
É coisa para pensar.

Pedro Cabrita disse...

Não há polémica nem exagero, Egídio.
Ou o escriba confia nas fontes, ou não confia...
Da sua fidedignidade, ou saúde da memória, nunca este pode ser responsabilizado.
Que esta estória me está a animar é um facto.
E como me tenho rido.

Já tinha feito um desafio ao Gabriel para me fazer um relatório deste episódio na sua parte mais obscura; a parte do Rivungo.
Mas ele fechou-se em copas e eu fiquei a saber o mesmo.
Mas acho que ele agora conta...
Eu até estou a imaginar como a condução foi impecável até ao Rivungo, com o Gabriel a evitar covas e troncos para proporcionar uma viagem à maneira.
Uma prerrogativa da C.Caç 3441 de sempre bem receber e servir quem nos visitava...

Aquele abraço

... e haja alegria.
Nem tudo foram desgraças na guerra...!

PC

Gabriel Costa disse...

Meu caro Capitão

Mal de mim se julgasse que algo de mal tinha acontecido á pequena anclausurada na casa dos oficiais! Mal de mim se desconfiasse que um, ou vários, dos oficiais do garboso exército português tinham importunado a donzela! Mal de mim se não acreditasse que a pequena descansou realmente na cama do Dr. Lacerda! Mal de mim se não acreditasse na memória fidelíssima do meu capitão! Mal de mim se passados estes anos ainda tivesse pesadelos e ciúmes dos cuidadosíssimos e cavalheirescos oficiais da 3441!
Terminando: MAL DE MIM SE LHE CONTASSE TUDO, MEU CAPITÃO! E olhe que a pequena foi entregue sã, salva e inteirinha á família. Levava tudo aquilo com que saiu da N'Riquinha. Até o saco da roupa!

PS: Com que então foi o Sarg. Pinto o delator! Sacana!

Pedro Cabrita disse...

Meu Caro Gabriel

Eu sei.
Mal de mim se o Gabriel me contasse tudo...

Aliás, tendo em conta tudo o que fui sabendo 20 anos depois de terminar a guerra, momentos houve em que cheguei a duvidar de ter lá estado... lol.

Quanto à pequena ter sido entregue sã, salva e inteirinha à família, jamais me passou pela cabeça o contrário.
Sempre tive em enorme consideração a sua reconhecida destreza de caçador, pelo que ai de qualquer inimigo que se aproximasse... lol, lol.

Ainda o nosso 1º Sargento Pinto.
Era o seu superior hierárquico directo, pelo que cumpriu apenas a sua obrigação.
Eu é que jamais consegui controlar aquela camarata de Furriéis.
Julgo que só lá terei entrado uma única vez e ia com péssimas intenções; felizmente controlei-me a tempo.

Pronto.
Relatório muito sintético e previsível mas foi o que se conseguiu "espremer"...

Aquele abraço amigo de sempre.
Mesmo no tempo em que fomos obrigados a hierarquizar as nossas vontades e consciências.
Vicissitudes da guerra.

P. C. ... (ex-capitão...)

lol

Anónimo disse...

Foi com agrado que li a confissão de PC (ex-capitão) que jamais conseguiu "controlar aquela camarata de furieis". É pura verdade. Também jamais controlou a "camarata" dos alferes, tão pouco a dos sargentos do quadro. Quanto aos praças, a maioria escapou ao seu controlo.

À época ficou bem claro que a iniciativa do Gabriel de se ausentar sem estar autorizado, independentemente das justificações, era uma falta grave, mas não, necessariamente, pelos motivos que lhe imputou. E ainda hoje mantém o remorso de lhe não ter dado uma "porrada".

Será que se tem punido o faltoso teria melhor "controlado" as várias camaratas que lhe fugiam ao controlo?

Morais (ex-furriel)

Pedro Cabrita disse...

Confesso que não consigo apreender a fina ironia do Morais, ou se ela extravasa o contexto suave do sarcasmo em que vimos relembrando, com saudável nostalgia, episódios com 40 anos temperados pela nossa memória.
Mas já agora.
Quanto aos (des)controlos de camaratas e casernas, não foram fruto de falha ou ineficiência; foram efectivos e determinados pela minha própria consciência. Tudo uma questão de princípio e convicção de que a privacidade e liberdade individuais são direitos inalienáveis.
Quanto a remorsos não trouxe nenhum da guerra.
Apenas alguma mágoa de não ter sido capaz de evitar a morte dos dois companheiros que não conseguimos trazer de volta. Isso sim pesou-me durante muito tempo na minha consciência.
As "porradas", ou ausência delas, não. Eram apenas adereços do regimento militar a que estávamos obrigados e que se aplicavam por exercício simples dos regulamentos.
Enquanto civil obrigado às regras militares nunca uma "porrada" me saciou qualquer prazer de a aplicar.
Pensando melhor, talvez o remorso faça algum sentido em algumas a que fui obrigado a aplicar. Especialmente aquelas em que a ronda da noite apanhava os militares a dormir no posto de sentinela, quando estes eram obrigados àquele serviço após terem chegado duma operação ou duma coluna ao Rivugo. Aí fazia sentido o remorso. Mas... era a guerra, as regras e a segurança que falavam mais alto. Algo que não é fácil à compreensão dum civil. Mas foi isso que nos dispusemos a cumprir.

Com o abraço amigo com que rodeio sempre todos os que me privilegiaram com a sua presença, compreensão e empenhamento na C.Caç. 3441.

PC
.

Anónimo disse...

Tinha decidido não intervir nesta polémica e acabei por fazê-lo. Penso que o fiz para apaziguar alguma indignação que senti na época.

O Gabriel, pese embora a forma direta como se expressava nas suas relações com a hierarquia, desempenhava serviços a que não era obrigado. Refiro-me às longas e penosas viagens que fez como condutor, para recolha de pelotões em serviço na mata, no transporte de pessoas doentes das lavras e também as inúmeras caçadas que nos ajudaram a melhorar a qualidade do rancho.

A prolongada pressão que exerceu para que o Leitão comprometesse o Gabriel, demonstra que o intuito era punir e com isso disciplinar a camarata dos furrieis. Sei que não vai alterar a sua opinião sobre o caso, mas pode confirmar que o Leitão, quarenta anos depois, mantém a versão que lhe transmitiu, por ser verdadeira.

Quanto às "porradas", bem sabe da sua ineficácia porque já tinhamos sido condenados a um degredo de dezoito meses. E que eu me lembre, a prisão só terá sido utilizada uma vez, para curar uma perigosa bebedeira.

Morais

Pedro Cabrita disse...

Caro Morais

Creio ter escolhido mal o local para este tipo de intervenção.
O blogue não tem a função que aparentemente lhe quer imprimir, se tiver o cuidado de rever, quer os posts, quer os comentários que o conformam, o que certamente já fez.

Esclarecê-lo, contudo, que não me parece haver aqui qualquer polémica. Salvo se o Morais a quiser fomentar, o que me parece deslocado e tardio.
Nunca é demais lembrar que a guerra terminou há quase 40 anos. Pelo menos para mim.

No entanto reparo que está notoriamente mal informado sobre os acontecimentos e não se trata aqui de pontos de vista, mas sim de factos, ainda que, pela minha parte, mais que enterrados.
Lembrar-lhe ainda que a forma desportiva e pacífica com que o Gabriel aborda esta questão neste post revela uma elevação que aprecio – e muito apreciei desde o primeiro momento em que pessoalmente abordámos o assunto num dos encontros da Companhia, ainda que de forma superficial – e desvirtua qualquer sentimento de ressentimento que possa agora ser ressuscitado.
Já agora, se se der ao trabalho de reler o post do nosso companheiro Egídio, verificará que os próprios recortes da estória ali invocada não conferem com aqueles que o Morais descreve.

Faz ainda referência a “… uma certa forma directa com que o Gabriel se expressava nas relações com a hierarquia”.
Confesso que, no que a mim me toca, nunca dei por qualquer excesso, quer de linguagem, quer de atitude. Pelo exemplo que aqui transcorre tal não passaria sem o devido exercício regulamentar a que todos estávamos obrigados, quer estivéssemos ou não de acordo com ele.

Se mostrar interesse em abordar o assunto com a profundidade que me parece aprazer-lhe estou disponível para o fazer pessoalmente, ou correio electrónico, em ambos os casos obviamente dando conhecimento do respectivo conteúdo aos envolvidos, Gabriel e Leitão. Aqui não me parece o lugar certo e não contará comigo para esse efeito.

Embora me suscite muito mais prazer recordar os bons momentos da C.Caç. 3441, estou também disponível para aprofundar quaisquer episódios que causem ainda perturbação, mal-estar ou mesmo dúvidas. Mesmo sabendo nós que tudo na vida tem um prazo de validade; as coisas boas, as más… e a própria vida…

Com o mesmo abraço de sempre.

PC

Anónimo disse...

Caro PC

Para encerrar a minha participação nesta "guerra" assinalo que mantém a bonomia paternalista que lhe conhecemos enquanto comandante da outra guerra.

Retribuo, com igual sinceridade, o cumprimento,

Morais

Gabriel Costa disse...

Caros Cabrita e Morais:
Obrigado pelo final feliz. Depois de tantos anos, não vale a pena deitar sal na sopa. Esta vida já é amarga que chegue.
Para vos satisfazer a curiosidade, vou contar, um dia destes, a história da donzela causadora de tanta conversa. Á minha maneira, no blog www.batemtodos.blogspot.com, local onde me divirto a escrever baboseiras.
Abraços militantes e não militares!