sexta-feira, 1 de junho de 2012

A tsé-tsé e os elefantes do Chicove

Aquela zona do Kuando Kubango, pelo menos a estreita faixa delimitada a sul pelo rio Utembo e a norte pelo Lomba, estendendo-se desde as margens do Cuando até praticamente a vizinhança com o Cuito, caracterizava-se por uma fauna rica e variada. Ali era o reino da imponente palanca preta e da gigantesca gunga, a par com uma multiplicidade de animais selvagens que aprendi a conhecer mesmo à distância, ao ponto de já os conseguir identificar pelo trote. A correria deselegante do caixote distinguia-se perfeitamente da do guelengue e nenhuma se comparava com a elegância majestosa da palanca ou com o passo empertigado do songue. Até o local onde costumavam pastar servia para os identificar: o songue frequentava sempre zonas alagadas, o búfalo procurava a sombra das árvores e a pequena cabra do mato saltitava por tudo quanto era canto.
Animais ferozes é que não abundavam por ali, o que podia explicar a variada e abundante fauna - sem predadores multiplicavam-se. A verdade é que, depois de ter calcorreado parte significativa daquela savana imensa, apenas uma vez avistei um leão, lá muito ao longe ao princípio da manhã quando, montados num unimog conduzido pelo Figueiredo (o comandos) eu, o Silva e um dos fuzileiros da marinha, percorríamos a chana do Utembo à procura de caça. Saíramos do Rivungo a meio da noite, pedimos um guia aos PSP’s do Caxoxo e aventurámo-nos pelo descampado, lá bem para baixo, muito para além do fim da picada que se sumira, como que sugada pelo capim rasteiro, dois ou três quilómetros depois do kimbo. Daí para baixo era apenas a chana imensa que percorríamos com cuidado, procurando avaliar a consistência do terreno não fosse o Unimog enterrar-se no lodaçal traiçoeiro escondido no meio das ervas. Foi um dia perdido, já que de caça nada se avistou que compensasse a caminhada. É que nem sequer uma simples cabrinha para amostra. Ainda hoje estou convencido que o leão os assustou. Andava certamente longe da sua área, talvez perdido, banido do seu grupo ou simplesmente à procura de almoço. Não sei se teve sorte que, cá por nós, voltámos de mãos a abanar sem termos apanhado nada.
Tirando isso, e não contando com os jacarés e hipopótamos abundantes ao longo do curso do Cuando, apenas as hienas habitavam a região, mas essas, precavidas, não se metiam connosco. Mal sentiam a nossa presença zarpavam à procura de melhor companhia. Ainda assim, por uma vez, ou porque as provocámos ou talvez por simples mau feitio, uma família delas tornou-se ameaçadora, obrigando o pessoal a abater algumas pondo as restantes em debandada. Quanto ao mais, nem uma simples cobra deu as caras por aquelas bandas, não obstante dizer-se que abundam em África.
Mas algo me intrigava. Até certa altura, nunca vira elefantes e, segundo aquilo que se ouvira, esses bichos mastodônticos deveriam habitar a região. Dizia-se que, garantidamente, onde houvesse elefantes haveria mosca tsé-tsé. E todo o pessoal da companhia fora expressamente vacinado contra a doença do sono que se sabe ser por ela transportada. E o reforço da vacina, feito de seis em seis meses, era uma espécie de confirmação de que o bicho andaria pelas matas. Também é verdade que nunca vira um desses insectos, mas sempre atribui o facto a não os saber identificar. Explicaram-me que se distinguiam das demais pelas asas cruzadas e pouco mais. Para mim, moscas são moscas e por ali havia muitas, umas pequenitas outras normais mais umas quantas diferentes das que sempre conheci. Mas nenhuma delas me parecia corresponder á descrição do temível insecto.
A partir de certa altura deixei de me preocupar com isso. Se nunca vira elefantes o mais natural é que também não haveria tsé-tsé nas redondezas. Se calhar tinham emigrado juntamente com os paquidermes que se mostravam arredios.
Até o dia em que fui informado que iria integrar o grupo encarregue de executar uma acção de patrulhamento à mata que se estendia para além do Chicove, local que, até então, nunca tínhamos visitado. O Chicove era um curto braço de chana que, correndo abaixo do Rio Lomba, levava até ao Cuando a água que para ali escorresse durante a época das chuvas. Não podia ser considerado um rio, mas exibia aqui e ali uns charcos enlameados onde javalis costumavam chafurdar. Situava-se a norte da Neriquinha, e alcançava-se em pouco tempo percorrendo uma picada que, nascendo numa perpendicular à pista, formava uma linha recta fácil de percorrer.
Talvez por isso, era um sítio que se visitava amiúde. Era perto, a picada não era má, tinha uma chana extensa e normalmente aparecia caça que justificava a viagem. Contudo nunca se atravessara a chana até ao outro lado. Podia-se fazê-lo a pé mas presumia-se que do outro lado não havia nada que justificasse o esforço e de viatura, arriscava-se o atascanço.
Contudo, os planos de actividade operacional da companhia haviam de anular a lacuna. A operação foi planeada com o fim de patrulhar uma pequena área da extensa mata que separava o Chicove do Rio Lomba e a missão foi destinada ao meu grupo de combate reforçado com mais uns quantos homens. A princípio pensei tratar-se de uma operação importante já que o comando ficou directamente a cargo do Capitão que não dispensou a participação do alferes Oliveira. Contudo, não era uma operação complicada; de acordo com os planos, seríamos largados num dia e recolhidos no outro, particularidade que caracterizava as acções de simples rotina. Apenas me preocupava as recomendações que foram feitas; quico bem enfiado na cabeça, mangas descidas e bem abotoadas e se possível um cachecol à volta do pescoço. O Oliveira avisara ser quase certo encontrarmos a temível tsé-tsé e, por isso, era preciso diminuir ao máximo a área exposta.
As viaturas largaram-nos ao princípio da manhã no Chicove e encetámos a curta travessia do descampado que nos separava do outro lado. Abotoei o colarinho até cima, desci as mangas da camisa, enterrei bem o quico na cabeça e iniciámos a marcha penetrando arvoredo adentro seguindo sem pressa um trajecto paralelo à chana em direcção à foz, se assim se pode chamar ao encontro da chana do Chicove com a imensa planura do Cuando.
O aviso sobre a mosca pôs-nos todos de sobreaviso. Por mim e mal se iniciou a caminhada, procurei descortinar em cada insecto esvoaçante as características de que ouvira falar: asas cruzadas, tamanho indefinido, não fugia quando enxotada. Mas, que diabo, ali todas as moscas tinham essa mania, alapavam-se à pele e não fugiam quando as sacudíamos. E o pior é que nem conseguia ver se tinham ou não as asas cruzadas. O melhor era considerar que todas as que pousassem eram uma ameaça. Mas isso acontecia continuamente. As moscas abundam em áfrica, gostam do calor e da humidade, são atraídas pelo cheiro a merda e parece que também pelo do suor humano. Fartos de esbracejar, procurando em vão enxotá-las, já não importava se eram tsé-tsé ou outra estirpe qualquer, a solução passou pelo recurso a um pequeno ramo mantido em permanente agitação, varrendo sistematicamente a cara com as folhas. Transportando ou não a doença do sono, procurava-se evitar que alguma conseguisse pousar por tempo suficiente para largar a praga.
Caminháramos durante toda a manhã e mais de metade da tarde sem que se avistasse qualquer sinal de elefantes, diminuindo-se o ritmo do cansativo abanar do ramo verde com que se procurava obstar ao persistente ataque das moscas. Por mim, estava praticamente convencido que aquele bocado de mata não era diferente de todos os outros que já se conheciam. Aliás, se na mata do outro lado da chana, já por nós percorrida inúmeras vezes, nunca se haviam divisado sinais de elefantes ou da exótica mosca, por que raio os haveriamos de encontrar, logo ali, tão pertinho, mesmo do outro lado do inofensivo Chicove?
As coisas são mesmo assim. Mal a dúvida acabara de se instalar na minha cabeça, um grupo de elefantes surgiu na nossa peugada, como se, vindos do mesmo lugar, nos estivessem vindo a seguir. Era um pequeno grupo, talvez uma família de meia dúzia de animais, uns maiores outros mais pequenos, caminhando no seu trote indolente como se, em passeio, desfrutassem a despida paisagem circundante sem pressa ou correrias. No meu entender, era como se estivessem em casa, não iam a lugar nenhum. Simplesmente deambulavam.
No imediato, não reagimos. Desde o início da caminhada que se esperava ver elefantes. Mas, naquele exacto momento, o seu aparecimento pareceu inesperado. Permanecemos quedos e mudos sem saber bem o que fazer. O problema é que os bichos vinham na nossa direcção. Não pareciam ameaçadores mas temíamos pela sua reação perante aquele grupo de seres estranhos e provavelmente nunca vistos por ali. Conferenciámos à boca pequena e o capitão alvitrou que o melhor era ficarmos quietos. Recuámos um pouco procurando fugir ao que parecia ser a trajectória da caminhada dos paquidermes e deixámo-nos ficar em silêncio.
Os bichos aproximaram-se, passaram por nós sem pressas e ignorando completamente a nossa presença seguiram o seu caminho até desapareceram por entre o arvoredo.
Nós, também seguimos o nosso caminho como se, sem convicção, os perseguíssemos. Durante algum tempo esquecemo-nos da malfadada mosca. É que, se se confirmasse a regra, havendo elefantes também haveria tsé-tsé. Continuei a tentar identificá-la por entre as centenas que esvoaçavam à minha volta sem que conseguisse encontrar uma com o aspecto que julgava já ter interiorizado. Na dúvida voltei a agitar o ramo que, entretanto, não largara.
Afinal, havia elefantes a norte do Chicove e eu vi-os. Mas só daquela vez. Contudo, não fiquei tão certo de ter avistado a tsé-tsé. Ainda hoje não tenho a certeza de que tal coisa se tenha cruzado comigo durante os longos dezoito meses passados nas Terras-do-Fim-do-Mundo.

5 comentários:

Anónimo disse...

Mais uma viagem à nossa eterna memória colectiva dos últimos dias do Império. Como sempre uma reportagem viva e bem colorida ao jeito do cronista-mor da C.Caç 3441.

Apenas juntar um ou outro dado que, como sempre, me era apenas familiar por via dos ínvios segredos militares.
A zona em apreço nunca foi objecto de qualquer operação por estar registada nos mapas (com uma mancha cor de rosa) como zona da mosca de sono. A dedução era simples: se tinha mosca não haveria de albergar o inimigo.
Só que o inimigo pensava de modo inverso: como tem mosca a tropa não virá aqui.

Para pouca sorte de ambos os lados, um dia fiz um RVIS em Dornier com o então Major Caetano e fomos surpreendidos com uma considerável quantidade de trilhos na zona. E aí se compreendeu que, afinal, o IN usava a mosca como capa dissuasora...
Daí a programação imediata duma operação na área.
Contudo, o que se veio a constatar é que se tratavam de trilhos de passagem (infiltração) e não trilhos de implantação. Para eles era mais seguro passar pela mosca de sono pelos motivos atrás referidos.

Como sabíamos que era zona de elefantes íamos preparados para a eventualidade de um encontro menos desejado. Se bem se lembram foram serradas as pontas de alguns projécteis de munições de modo a causar um maior impacto no animal, caso investisse. Foi igualmente levado o lança granadas foguete... para uma emergência maior... Se tivesse sido necessário, sempre queria ver quem é que ia apontar aquilo... Mas enfim; acabou por não ser necessário, nem uma nem outra.

Dos elefantes lembro-me de um que nos apareceu pela frente, mesmo sobre o trilho pelo qual íamos. Um elefante enorme e velho.
Parámos e ficámos de olhos nos olhos bem uma meia hora.
Aí lembrei-me das estórias do Solnado, entre elas uma em que ele teria ficado numa situação semelhante, tendo optado por esperar que o elefante avançasse e depois passou-lhe uma rasteira...
Ainda ponderei essa hipótese...

O animal acabaria por desistir de nos dificultar a passagem, tendo-se desviado para o capim viçoso que por ali havia em abundância.
Como este encontro ocorreu por volta do meio-dia, aproveitámos para almoçar e deixar apaziguar um pouco o calor daquela hora do dia. Não sei se se lembram, mas o elefante ficou por perto de nós (a cerca de 300 m) todo o tempo em que ali estivemos, alimentando-se como o faria sem a nossa presença. Ficou-nos a ideia de se tratar de um elefante muito velho que nestas condições se separa da manada e vai acabar no chamado cemitério dos elefantes, local misterioso do qual decorrem lendas sem fim.

A mosca era de facto irritante. Pousava na cara, batíamos-lhe com uma ramagem que transportávamos ao longo de todo o dia, mas não saía e era necessário bater com a mão e afugentá-la. O curioso é que por mais que nos esbofeteássemos raramente conseguíamos apanhar uma.
Claro que alguém acabou por ser picado. O que ocorre é que a picada da mosca não significa que se apanhe a doença. Para isso é necessário que essa mosca esteja infectada, o que felizmente é pouco frequente.
O mesmo acontece com o paludismo que decorre da picada de um mosquito, mas também esse terá que estar infectado para que a doença se instale.

Pronto; e por aqui fica mais uma pincelada da odisseia da C.Caç. 3441.

P.C.

PS
Começo a pensar que um dia ainda vamos publicar um apanhado de post's e alguns comentários.
Era capaz de ser interessante.
A verba recolhida poderia ser doada à instituição dos Deficientes das Forças Armadas que bem precisa, já que os políticos, não mais precisando deles, deles se esqueceram.
Fica a ideia.

Anónimo disse...

Esta é, seguramente, uma das tuas melhores narrativas!!!

A chana do "chicove" trouxe-me à memória uma saída de um grupo de furrieis que, da parte da tarde de um dia cinzento, se aventuraram a caçar na dita chana, no unimog maior conduzido pelo "comandos".
Poucos quilómetros percorridos foi avistado um grupo de meia dúzia de gungas (taurotragus orix?) que permanecia no picada, a uma distância considerável.
No intuito de nos aproximarmos, desligou-se o motor e infletimos a pé para a mata. Quando estaríamos a cerca de quinhentos metros dos bichos fomos detetados e iniciaram a fuga. De imediato o Gabriel e o "comandos"(?) apontaram a arma e cada um disparou um tiro. Alguém do grupo afirmou que um deles tinha sido atingido, situação altamente improvável, dada a distância e por estarmos dentro da mata só avistávamos parcialmente os bichos.
A verdade é que quando nos aproximámos do local deparámos com uma gunga ferida, deitada na picada e como qualquer pacífico boi olhava para nós tranquilamente.
Dado o tiro de misericórdia, ficou o duro trabalho de carregar o imenso boi na viatura, já que esta espécie chega a atingir os 600 quilos, e o grupo de carregadores não ultrapassava a dezena.
A proeza teve que ser repartida pelos dois atiradores e, nenhum deles, pode afirmar ser o seu autor e o facto é que nenhum deles aproveitou a imensa armação do troféu. Outro que (parece-me) não esteve na caçada ainda o tentou.

Óscar Morais

Gabriel Costa disse...

Caro Morais.
Um pequeno pormenor: atirei eu e o Silva. Acertamos os dois tiros na pata traseira do lado esquerdo a uma distância de uma mão travessa um do outro.
Bons tempos!
Abraço
Gabriel

Anónimo disse...

Olá Gabriel
Depois de ter inserido o meu comentário fiquei na expectativa de que rectificasses ou confirmasses alguns pormenores. O outro atirador, que deixei interrogado, era um deles.
Também já não retinha aquele de que ambos tinham acertado na peça, pelo que fica a reposição da verdade. Para mim já era um milagre que um de vocês tivesse acertado!
Li, entretanto, na wikipedia que o taurotragus orix já se encontra extinto em Angola. As dezenas de anos de guerra acabaram com muitas das espécies emblemáticas, mas esta continua presente noutros países africanos.

Um abraço,

Morais

Anónimo disse...

Em tempo
Rectifiço o nome científico da gunga para taurotragus oryx (em vez de orix).
Morais