Levanto-me cedo, após a luz viva e intensa do sol me ter visitado bem de madrugada. Percorro aquele caminho de sessenta metros de tabuinhas de praia que liga o meu quarto à messe. Um percurso que farei mais cerca de 2220 vezes, ao longo de um porvir de dias distantes que ainda nem imaginava ter de permanecer ali.
A bandeira, meio gasta pelas inclemências do sol, já se agita no cimo do mastro desde as oito horas da manhã, como sempre acontecerá enquanto a nossa soberania ainda ali reinar. É manhã. Mas a boca já se me seca porque não há vestígios de humidade no ar e o sol queima abrasador e luminoso. A sede em África é uma constante. De manhã, à tarde ou à noite.
Entro na messe de oficiais, contígua à de sargentos, uma divisão com cerca de três metros por cinco, que tem pouco mais que uma mesa rectangular e seis cadeiras. Ao fundo uma janela forrada com rede mosquiteira, que ficará sempre aberta deixando passar a brisa possível que amenize o ar quente reflectido das telhas de zinco do telhado. A um canto um pequeno frigorífico a petróleo que haveria de arvorar-se num oásis redentor de mil tormentos de sedes insaciáveis.
A porta de entrada é também ladeada por duas aberturas em forma de janelas que deixam passar a luz da rua e nos alargam a vista para a parada. Uma toalha meio encardida cobre a mesa onde se encontram alguns pães, manteiga e marmelada. Há quatro chávenas grandes de vidro viradas ao contrário, sinal de que fui o primeiro a chegar. No ar uma pequena nuvem de moscas entrechocam-se esvoaçando em círculos, aguardando a oportunidade de aterrarem na primeira carcaça que se libertar do pano que as cobre, ou sugar os restos de marmelada da faca inox de gume rombo já vencido pela guerra, que se obstina em manter-se ao serviço da pátria, até que alguém se decida ordenar ao nosso Sargento que a abata à carga, amortalhando-a num quadruplicado modelo próprio de 1945, dando-lhe por fim o merecido descanso.
Troco uma proposta de mistura de uma mistela preta (que com benevolência apelidávamos de café) com uma outra de cor branca (muito próxima do que habitualmente chamávamos de leite) por um refrigerante de maçã (Carbo Cidral) que acompanho com um pão com manteiga. Naqueles primeiros dias, consigo ainda vencer o desejo impertinente de romper a manhã com uma cerveja gelada, sofregamente tragada pela boca da garrafa, arrefecendo-me as entranhas durante uns trinta minutos de prazer efémero, acompanhados pelos protestos do meu pobre fígado, incapaz de lutar mais contra tantos inimigos quanto outros tantos escondidos nas matas.
Sou informado pelo ordenança que se encontra à porta da messe uma delegação do kimbo que me vem apresentar cumprimentos. Fico surpreendido pelo inesperado da situação. Não sei porquê, mas achei que era capaz de haver ali lugar a alguma solenidade, não obstante o quadro de pobreza daquela gente e o esquecimento a que sempre estiveram votados antes e durante a guerra.
Um acto de elegância ou subserviência? De curiosidade, deferência ou medo? Dou comigo a abotoar instintivamente o penúltimo botão da camisa como se me preparasse para um acto solene que obrigasse a aprumo. Coloco a boina, que me completa o atavio provisório até que cheguem o resto das malas que ficaram em Luanda, e saio ao encontro da comitiva anunciada. Deferentemente afastados da porta da entrada um grupo de sete ou oito anciãos dispõem-se ordenados em duas ou três filas atrás do primeiro que veste uma calça e um casaco, que, com esforço, adivinhamos terem tido outrora uma cor branca. O branco tinha agora dado lugar a um amontoado de nódoas de todos os tipos e feitios, algumas delas decididamente já parte integrante e definitiva do tecido, daquilo que percebi de imediato ser uma farda pela forma com se distinguia dos outros. O amarrotado do tecido é o mesmo que o da pele do ancião que se enruga em sulcos profundos denunciando longas guerras de silêncios sem registo na história. Alguns botões que restam estão pendurados por linhas puídas e meio desfiadas. Uma espécie de sobreviventes de um naufrágio tempestuoso, mas mantidos no seu lugar com o empenhamento sofrido de quem se obstina em preservá-los, como prova da sua fidelidade ao compromisso ancestral firmado com o reino, que lhe devassou o sossego e a harmonia com a terra. O colarinho justo e sem gola deixa transparecer ainda restos de um passado de altivez, que se aliava à sua inequívoca alvura primitiva, combinando com o contraste da pele queimada por séculos de sol e submissão.
Rapidamente me apercebo estar na presença do soba.
Os restantes são secúlos, uma hierarquia tribal mantida até aos nossos dias. Vestem restos de roupas esfarrapadas quase todas de cunho militar. Algumas, só com algum esforço dão para perceber ainda a sua origem. Alguns vêm descalços. Um deles procura mascarar a dignidade perdida, trazendo enfiados nos dedos dos pés uns xanatos de praia meio destruídos e com cor omissa. Um outro calça botas da tropa que o distante tempo de uso e maus-tratos avantajou para um 45 largo, albergando agora um pé que a fome minguou para um 35 estreito, que ameaça soltar-se a todo o momento em cada passo desajeitado e quase andrajoso que dá, arrastando-as na areia quente em passos bem cuidados para que não caiam e se não percam pelo caminho. Os atacadores de cabedal, outrora reluzentes de graxa e aprumo, foram substituídos por cordão feito de casca de arbusto, na ausência de artefactos mais apropriados que mantivessem digna a postura militar de outros tempos e outros usos.
Fitam-me com um sorriso pálido. O soba acena-me com uma espécie de gesto suave de continência de mão meio aberta que eleva até à têmpora direita, enquanto solta algo que confundo com um gemido. Os outros seguem-no numa sequência de aceno semelhante que se fica pelo meio gesto. Uma certa forma de imitação inacabada que sugere cansaço. Cansaço da vida, da guerra e da tropa, que era agora nova e de esperanças renovadas.
Trazem um cicerone. O Lupale, claro…
Não falam português. Balbuciam palavras dispersas que acompanham com gestos de afirmação da cabeça.
O Lupale faz as apresentações. Tem que falar alto para que o soba o possa entender considerando a sua avançada idade e a surdez que já o atinge, deitando um pouco por terra a teoria do ruído da civilização como causa essencial para a mouquice que a todos nos vem molestando nos dias que correm.
A lição já vinha estudada. Das poucas palavras no dialecto que o soba balbucia, o Lupale traduz num discurso político completo. Uma espécie de protocolo de estado daqueles que já estão tipificados e são sempre iguais. Vêm apresentar cumprimentos ao novo capitão, aproveitando a oportunidade para transmitir as dificuldades da população. Basicamente a fome (zála).
Cumprimento-os um por um e tento fixar o nome de cada um deles, que o Lupale vai pronunciando repetidamente adivinhando a minha dificuldade em os fixar. Sinto que me olham como uma nova esperança caída do céu, embora sem que dela esperem grande coisa. Dobram-se à frente em cada cumprimento. O aperto de mão tem contornos de súplica ou submissão. Agarram o próprio antebraço da mão que me estendem, como se me quisessem significar que ma entregavam como preito de vassalagem, subserviência ou medo.
Vem-me repentinamente à memória os tempos dos primórdios da colonização. As coisas não devem ter sido muito diferentes daqueles gestos, daquela relação vencedor/vencido.
Faço um elogio honesto à farda do soba e agradeço o facto de a envergar especialmente para me visitar, facto que me foi adiantado pelo Lupale. Jamais voltaria a vê-lo fardado, a não ser em mais uma ou duas ocasiões especiais. Mantenho uma conversa de circunstância e procuro saber um pouco mais sobre os problemas da população. Ficam-me dúvidas quanto à correcção da tradução efectuada, quer para um, quer para o outro lado. Noto que as minhas palavras de conforto e esperança não convencem os meus interlocutores. Compreendo que não lhes prometo nada que outros o não tenham já feito, muito provavelmente sem que o tenham cumprido. Prometo ir visitar o kimbo e inteirar-me dos problemas que preocupam o soba, nomeadamente a zála cujo termo eu já conhecia desde o primeiro dia.
Dou por terminado o encontro mas percebo nos gestos que não ouviram o que queriam. Parece claro que haviam preparado um conjunto de questões no sentido de as exporem e levarem resultados de volta. Fico a observar o regresso ao kimbo. Caminham lentamente como quem quer voltar para trás para repetir as preocupações e obter outras respostas. Apercebo-me de uma troca de palavras mais acaloradas entre o Lupale e o soba, sinal evidente de que há censura e desacordo quanto à forma como os assuntos tinham sido abordados. Perco-os de vista a passarem a portada do aldeamento. Caminham arrastados, olhos no chão e braços pendendo ao longo do corpo, ou a mão direita coçando uma comichão eterna que não existe no antebraço do outro lado, uma espécie de sarna que não se vê mas lhes fustiga o ser, suportado num estômago dorido e vazio de pirão e de fé. Como teria sido diferente aquele regresso, caso o sentido das palavras tivesse conduzido a outra fé e outras certezas, pelas quais esperavam e desesperavam havia décadas. Como teriam ficado felizes se lhes pudesse ter dito que a guerra ia acabar, que era tudo o que queriam e mais desejavam para voltarem a ser felizes no seu mundo livre feito de séculos de liberdade.
Pedro Cabrita (In-Capitães do Vento)
3 comentários:
O Lupale era uma pessoa tão misteriosa que nem ficou em nenhuma fotografia das milhares que que se tiraram, durante os mais de dezoito meses que permanecemos naquela terra.
O facto de falar português e, diz-se, também o inglês, fazia dele o "rei em terra de cegos"
A sua enorme importância no seio daquela comunidade ainda não foi devidamente tratada neste blog.
É verdade.
Coisa estranha.
Mas como o Lupale era o negociante oficial do kimbo, estou em crer que nunca se terá deixado fotografar porque... o segredo é mesmo a alma do negócio...
Será que não temos mesmo fotos do Lupale...?
Ainda vou dar uma volta aos meus slides.
P. Cabrita
A fim de tornar possível cruzar histórias de N'riquinha que remontam a 1963, alguém se lembra do nome do soba de N'riquinha?
P. Cabrita
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