Quando pela primeira vez pisei o chão vermelho da pista empoeirada da Neriquinha, experimentei um misto de surpresa e desagrado. O cenário que se me deparou era muito pior do que qualquer expectativa pessimista. Até então, apenas nos tinha sido comunicado o nome do local que nos havia saído em sorte, mas sem qualquer informação do que nos esperava. Só ao fim da derradeira etapa da longa viagem que nos levou de Lisboa aos confins das Terras-do-Fim-do-Mundo, quando o Nord Atlas já sobrevoava as chanas nas imediações do nosso destino, nos apercebemos que estávamos a aterrar no meio de coisa nenhuma, a verdadeira personificação do degredo num dos locais mais inóspitos do território angolano.
Corria o mês de Novembro daquele ano de 1971 e o calor fazia-se sentir em toda a sua pujança. Um bafo quente de ar saturado de pó avermelhado atiçado pelo rodopiar das hélices do avião, atingiu-me como uma bofetada de boas vindas quando, abandonando a barriga da aeronave, tocava pela primeira vez o solo que haveria de palmilhar durante os longos dezoitos meses que durou a missão da 3441 naquele fim de mundo.
Segui maquinalmente os meus companheiros de aventura em direcção ao centro daquela espécie de acampamento militar, olhando em redor como que anestesiado pela desolação envolvente sem me dar conta, pelo menos no imediato, de que aquele exíguo espaço, perdido no meio da imensa savana, mais se assemelhava a uma espécie de base remota, sem nada em volta ou o que quer que fosse que pudesse ser chamado de vizinhança. Para lá do limite do arame farpado, apenas existia mata e mais mata, numa sucessão infinitesimal de coisa nenhuma.
Entrei na messe, situada no barracão localizado mais ou menos ao centro do perímetro e aproximei-me do pequeno balcão arrumado a um canto. A garganta seca e o desconforto provocado pelo calor intenso exigiam qualquer coisa fresca. Lembro-me de ter pedido uma cerveja que sorvi sofregamente de um só golo, sem reclamar do facto de estar pouco fresca. Simplesmente intui que a canícula condicionava as capacidades do frigorífico, especialmente se se tiver em conta o ritmo a que as bebidas eram consumidas. Fosse como fosse, nem por um momento me passou pela cabeça que, num sítio daqueles, poderia nem haver frigoríficos. Sempre me habituei à sua existência mesmo nos lares mais pobres ou nas tascas mais humildes. É verdade que tomei consciência de que estávamos num local com aspecto de prefabricado provisório mas, naquele momento, nem me ocorreu pensar que, num sítio como aquele, não haveria rede eléctrica pública. São coisas em que não se pensa, especialmente se se está formatado para considerar a energia eléctrica como sendo um bem essencial existente em qualquer lugar.
Mas não na Neriquinha e arredores. Por ali não havia electricidade permanente. Apenas um pequeno gerador que só podia funcionar nas escassas três ou quatro horas que iam desde o cair da noite até ao recolher e isso não seria suficiente para alimentar frigoríficos que teriam de trabalhar dia e noite.
Na verdade, ali os frigoríficos eram alimentados a petróleo. E para que funcionassem satisfatoriamente, era preciso abastecer os depósitos amiúde e dispensar-lhes cuidados especiais. Mas disso só me apercebi depois de chegar ao Rivungo. O meu grupo de combate fora o escolhido para render aquele destacamento e por isso, tinha sido o primeiro a chegar, tendo permanecido na Neriquinha apenas o tempo suficiente para engolir um almoço de massa com salsichas, mistela que, vim a saber mais tarde, era sempre servida aos maçaricos como praxe de boas vindas, dando sentido à espécie de saudação com que fomos recebidos e que se resumia a um chavão cujo significado na altura não percebi:
- É só zala!
Ora, na língua dos Ganguelas, zala significa fome.
Como ia dizendo, só comecei a dar-me conta das particularidades dos frigoríficos a petróleo, depois de ter chegado ao Rivungo. No fim daquela infernal e quase interminável primeira viagem pelas picadas arenosas da savana, fui incumbido de receber a cantina e com ela o frigorífico que a equipava. A passagem do testemunho incluiu uma breve explicação do seu funcionamento e respectiva manutenção, instruções dadas de forma muito resumida já que os velhinhos tinham pressa em sair dali.
- Se queres ter cerveja fresca todos os dias, toma atenção! Avisou-me o furriel que eu iria substituir, enquanto assinava as guias que atestavam a transferência de responsabilidade.
Se a minha memória não me atraiçoa, o petróleo do frigorífico acabou ainda não tinha decorrido uma semana, pelo que chegara a altura de por à prova os ensinamentos que recebera: encher o depósito, ajeitar o pavio e pôr tudo a funcionar antes que as cervejas aquecessem.
Com a ajuda do cabo Almeida, que no Rivungo foi nomeado o cantineiro de serviço, meti mãos à obra. Retirei, com cuidado, o depósito do petróleo de formato achatado e que, em jeito de arrastadeira, encaixava debaixo do frigorífico, apaguei o pavio incandescente e segui os passos de forma meticulosa, devagar, para não fazer asneira e de forma a garantir que o Almeida aprendesse o ritual, já que, doravante, deveria ser ele a encarregar-se da tarefa.
Não era complicado, mas exigia algum cuidado e minúcia na preparação do pavio. Teria de se eliminar a parte carbonizada garantindo que a chama fosse o mais azulada possível; uma chama amarelada não produzia calor suficiente, fazia muito fumo, entupia a chaminé e o frigorífico não produzia frio. Depois, era só voltar a encaixar o depósito debaixo do frigorífico, garantir que a chama coincidia com o centro da chaminé e rezar para que as cervejas ficassem no ponto.
Daquela vez, a chama não ficou tão azul como deveria, mas, com o tempo, a técnica foi sendo aprimorada. O Almeida foi ganhando experiência, percebendo as manias do aparelho, descobrindo o jeitinho que garantia a chama ideal que, entrando pela chaminé, fazia a vez da electricidade transformando calor em frio.
Ganhou rotina e com isso, confiança. Até um dia. Quando procurava acertar no gargalo do depósito, a mão ter-lhe-á tremido e verteu uma boa porção de petróleo que se espalhou pela superfície delimitada por um rebordo que o reteve. Demorou algum tempo a aparar o pavio, colocou-o com a altura mais adequada, ajeitou o depósito e preparou-se para o acender. Não sei se por esquecimento, excesso de confiança ou se simplesmente deduziu que não haveria perigo, não limpou o excesso de petróleo que se derramara. Riscou o fósforo e no momento em que aproximou a chama do pavio, incendiou o combustível derramado.
A labareda irrompeu com violência, apanhando o Cabo que, de cócoras, se debruçara sobre o depósito para melhor executar a tarefa, não lhe deixando espaço para que se desviasse. A chama lambeu-lhe a parte superior do tronco, apanhou o pescoço e atingiu em cheio a cara do infeliz, incendiando-lhe o cabelo.
Acudiu o enfermeiro que, não sabendo bem o que fazer, o levou para a enfermaria com a ajuda de um ou dois. O Almeida apresentava um aspecto desolador: a pele empolara e desaparecera aqui e ali. E o pior é que a inexperiência do enfermeiro não chegava para avaliar da profundidade das lesões e decidir qual o tratamento mais adequado. Urgia fazer algo de imediato já que eram notórios os esgares de dor do paciente que, a muito custo, se continha para não gritar.
A única hipótese era recorrer ao saber do médico da companhia. Mas o Dr. Lacerda estava na Neriquinha e, dada a gravidade da situação, era o mesmo que estar no outro lado do mundo. O contacto via rádio apresentava-se como única solução, recurso que, aliás, estava previsto nos planos de contingência. O Dr. Lacerda era obrigado a dar consultas via rádio, numa exasperante sequência de códigos dos homens das transmissões, com muitos “base, base, escuto” e outros tantos “ok, transmita”, e uma infinidade de "Alfas", "Bravos" e "Foxtrots" do designado código fonético usado nas transmissões militares, entremeados de instruções médicas.
A verdade é que o enfermeiro lá anotou tudo, acabando o Almeida por ficar com o pescoço e a cara cobertos de tiras amareladas da milagrosa topifurazona que desempenhou a sua função na perfeição, sendo visível o efeito refrescante que refreou o afogueamento e acalmou o ardor do malogrado Cabo.
Por sorte, não obstante a sua dimensão, a queimadura era superficial e ao fim de uma semana a face já só apresentava um aspecto rosado mas sem sequelas de maior, passando depois a um pálido doentio que rapidamente voltou a ganhar a cor bronzeada pela exposição gradual ao sol africano, até desaparecerem todos os sinais do acidente.
Quanto a mim, pelo menos nos primeiros tempos e enquanto durou o impedimento do Almeida, tive de voltar a cuidar do frigorífico garantindo cerveja fresca em condições de matar a sede ao pessoal.
Mas, obviamente redobrei os cuidados que punha no manuseamento do depósito, do pavio e do jerrican do petróleo.
7 comentários:
Mais uma estória que nos transporta a outros tempos! E o teu talento de contista sempre em alta!
Recordo também o frigorífico da messe contígua à nossa, na N'riquinha, que, numa bela tarde das primeiras semanas da estadia, se incendiou espontâneamente! Foi com algum esforço que conseguimos extinguir o fogo, sem grandes danos.
Um abraço
Óscar Morais
Como se depreende do texto, nessa altura estava eu no Rivungo. Por isso não conhecia esse episódio. Dava uma boa estória.
Outra que deveria aqui ser contada era a da câmara frigorífica do depósito de géneros. São bocados de história a que eu não assisti e por isso tenho dificuldade em contar.
Desafio o Cabrita a fazê-lo. Pelo menos sabe das guerras de papeis que sobre o assunto teve de derimir.
Olá Vaguinho!
Quem apagou (?) o fogo no frigorífico da messe dos oficiais fui eu. aquela porcaria começou a arder e saía um fumo negro como breu. Arrastei-me pelo chão com um pequeno extintor mas aquela merda não se extinguiu. Já sem poder respirar e bastante aflito, comecei a mexer desordenadamente com as pernas e,aí, quem me puxou foste tu e o Fielas ou o Sarg. Pinto, salvo erro.
Recordo-me da falta de ar e, se não me puxassem, creio que acabava aí a minha visita á guerra. As redes mosquiteiras, em plástico, desapareceram completamente da porta e das janelas. O cheiro daquele fumo ficou agarrado ás paredes durante muito tempo.
Incêndios nas Terras do Fim do Mundo...
Bem deste incêndio não tenho qualquer memória. Eu não deveria estar por lá. Ou de férias, ou na mata. Não me recordo de nada e o episódio não era de esquecer.
Quanto ao desafio que me faz o Egídio, a estória da câmara frigorífica é curta.
Quando chegámos todas as condições que encontrámos eram deploráveis. A companhia que rendemos foi de um desmazelo em toda a linha. Quer operacional, quer de manutenção e segurança do aquartelamento.
Como se lembram os projectores estavam reduzidos a 15% de operacionalidade; a bomba de água praticamente inoperacional (com água de excelente qualidade no aquartelamento); as viaturas presas com arames e os meios frio quase inexistentes.
No meio de tudo isto ( e apenas algum tempo depois de instalados...) fomos dar com uma câmara frigorífica de grandes dimensões (com gerador próprio... um luxo) ainda encaixotada e muito bem arrumadinha no armazém dos géneros. O Morais deve lembrar-se bem disso.
Eu nem queria acreditar, quando nos debatíamos com problemas graves de manutenção de géneros frescos.
Sai mensagem directa a Luanda indicando condições de vida e sobrevivência deploráveis, solicitando vinda urgente de técnico habilitado que montasse a câmara, sob pena de condicionamento da actividade operacional...
E aí, quando soou a prejuízo da actividade operacional... nem uma semana demorou a vinda de dois técnicos que montaram a câmara e nos aliviaram alguns dos tormentos que esperavam ainda.
Se bem se lembram a câmara podia armazenar várias palancas... como foram uma boa parte das 9 pretas que o "Caçador" Gabriel arrecadou numa determinada caçada.
Abraço
P. Cabrita
EH pá, não me lembre esse crime! AQUELAS DESGRAÇADAS APARECERAM NUMA ALTURA DE PENÚRIA DE CARNE NA COMPANHIA E, OLHE, FORAM Á VIDA! O PIOR É QUE QUANDO ME APROXIMEI DO QUARTEL COM A BERLIET CARREGADA, VIMOS AOLONGE O JEEP DO ADMINISTRADOR LITENDA. FICÁMOS NA MATA Á ESPERA QUE ABALASSE PARA O RIVUNGO E SÓ DEPOIS ENTRÁMOS. FOI UMA FARTAZANA DE CARNE.
O Fielas, mandou cortar uma cabeça de palanca e enterrá-la, para depois ficar com uma carcaça limpinha coroada por um monumental par de cornos . Lá deve ter ficado, pois nunca a vi. As peles, provas reveladoras do crime, foram enterradas na mata.
Ó Gabriel...!
Mas da forma como isto vai em termos de fisco não sei se o governo não lhe vem ainda pedir contas...
Esse abate ilegal pode estar sob a alçada de um decreto-lei ainda em vigor.
Sei não. Pelo sim pelo não eu negava...
P Cabrita
Parabéns pelo bom trabalho. Recolhi um excerto do texto "Frigoríficos a petróleo" que inclui num texto meu em https://vivevence.weebly.com/torcida.html
Um abraço
Avelino Lopes
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