sábado, 1 de outubro de 2011

Economia no mato

A Neriquinha não era uma localidade, o que significa que não tinha estruturas administrativas nem um poder civil instituído. O aldeamento ali existente não era mais do que um kimbo formado por população nativa que, empurrada pela guerra ali se instalou construindo as suas cubatas à sombra da segurança e conforto que a proximidade da tropa propiciava. Maioritariamente constituído pelas etnias ganguela e kamache, compunham uma sociedade que pautava a sua conduta segundo seculares regras tribais, sendo a autoridade subjacente exercida por Sobas e Sékulos, normalmente eleitos de entre os anciãos, seguindo a máxima de que a idade confere sabedoria. Na verdade, não obstante serem duas das etnias mais atrasadas de África, representavam uma sociedade que se regia pela obediência a normas de conduta que norteavam a vida em sociedade, a família, os direitos e as obrigações. As infracções eram discutidas em conselho de anciãos que aplicava penas e coimas adequadas a cada situação. Era um normativo não plasmado em livros mas cujas regras, passando de geração em geração, eram do conhecimento de todos.
Contudo, a autoridade formal era exercida pela tropa. Começando no Capitão - autoridade máxima - seguia a respectiva hierarquia percorrendo a estrutura desde os oficiais até ao soldado mais básico, cuja autoridade se sobrepunha à ancestral liderança do Soba.
E disso se deu conta o capitão Cabrita. Se alguma vez teve dúvidas de que ali era ele quem mandava, depressa se apercebeu de que a sua autoridade não se cingia apenas aos seus subordinados, mas também a tudo aquilo que respeitava aos actos, costumes, comportamentos, atitudes e ao que quer que comandasse o modo de vida daquela gente. A querela de natureza familiar que se viu compelido a dirimir, terá sido certamente uma realidade desconcertante, especialmente para si que desconhecia em absoluto os costumes daquele povo.
Subjacente àquela pequena comunidade formada pela tropa, movimentava-se uma economia sui generis. Não apenas aquela que decorria do cumprimento das rígidas regras da contabilidade militar, mas também tudo o que daí resultava. Era uma economia fechada e rudimentar, mas que envolvia alguma complexidade. Ali havia um orçamento para gerir, um comércio à volta da cantina e do chiado e a consequente circulação de moeda. Havia ainda que garantir o fornecimento de géneros à PSP e à Marinha do Rivungo, implicando a emissão de facturas e consequentes pagamentos e recebimentos.
Tudo isto era gerido pelo nosso primeiro Pinto que, qual ministro da economia e finanças daquela espécie de estado improvisado, tudo controlava com competência e saber, zelando pela execução do apertado orçamento, supervisionando o consumo de géneros, dos combustíveis, das munições, do material de guerra, das compras e vendas na cantina, para além de ser o garante do cumprimento das milhentas normas profusamente plasmadas nas NEP’s que obrigavam à elaboração de um intrincado acervo de documentos, formulários e procedimentos que só ele conhecia. Emitia ainda as facturas à PSP e à Marinha, recebia destes o valor dos géneros fornecidos e reencaminhava a receita correspondente para os serviços da manutenção militar a quem prestava contas de tudo o que esta fornecia.
A quantidade de moeda que circulava na Neriquinha era limitada. De facto, no princípio, o número de notas e moedas em circulação resumia-se às que levávamos no bolso quando ali chegámos, acrescentando-se o muito pouco que pudesse existir em poder da população local. Não havendo fluxos do exterior, a moeda que circulava era apenas essa. Se num dia, na cantina, se pagava uma cerveja com uma moeda de cinco escudos, era grande a probabilidade de a voltar a receber no dia seguinte como troco da nota de vinte para pagar o maço de tabaco. E isto começou a ser um problema; dependendo a cantina da velocidade de rotação do que cada um tinha para gastar, a determinada altura não havia trocos.
Na Neriquinha o problema não foi grande; os mais de cem homens que se serviam da cantina, garantiam um fluxo de moedas em quantidade suficiente para as necessidades diárias.
Mas no Rivungo a coisa complicava-se. Esse problema nem me passou pela cabeça quando ali cheguei e fui encarregado da gerência da pequena cantina que servia os cerca de trinta homens ali colocados. Pelo menos até o cabo Almeida vir queixar-se de que não tinha trocos para garantir as demasias. Alguém lhe entregara uma nota de vinte para pagar a cerveja e exigia o troco que não havia. A minha primeira reacção saiu quase sem pensar:
- Oh homem! Vá arranjar troco em qualquer lado!
Mas, de facto, não havia onde ir buscar moedas. O número de utentes da cantina era limitado e não havia bancos ou comércio onde pudéssemos trocar as notas.
No momento, resolvi o assunto emitindo uma pequena nota de dívida que o soldado em causa poderia apresentar a pagamento na próxima compra que fizesse.
É claro que isso só resolveu o problema daquela transacção. Durante o resto do dia e nos que se seguiram, a dificuldade subsistiu e o problema da falta de moedas agravou-se. Resolvi o assunto utilizando uns quantos papelinhos, onde inscrevi o valor das moedas de curso corrente, rabisquei uma rubrica, coloquei uma sinalefa que impedisse a sua multiplicação por contrafacção e assim pus fim à falta de trocos. Na verdade, acabara de criar moeda, uma operação que só o Estado através do Banco de Portugal podia fazer. Mas nunca fui questionado ou admoestado por ter exorbitado competências que não possuía.
Pelos vistos, os serviços administrativos e financeiros em Luanda desconheciam estes problemas. O facto é que o dinheiro mensalmente enviado para pagamento do mísero pré aos praças e dos ordenados aos oficiais e sargentos vinha sempre em cheque. Não havendo por ali bancos onde se pudesse rebater o cheque, o assunto só poderia ser resolvido utilizando a boleia semanal do Nord. Alguém ia ao Luso, trocava o cheque por dinheiro e regressava na semana seguinte com o dinheiro necessário. Mas, com o tempo, o nosso primeiro foi verificando que os magros tostões que compunham o rendimento mensal de cada soldado, mal chegavam para a cerveja, tabaco e alguma outra coisa de que precisasse. De facto, o ordenado recebido era todo gasto na cantina, voltando assim às mãos do sargento.
Não sendo novato naquelas andanças, o primeiro-sargento concluiu que o dinheiro que recebia em cheque para pagar ordenados era, mais coisa menos coisa, equivalente ao valor que tinha de remeter à manutenção militar para liquidação dos produtos vendidos na cantina e esse, mais coisa menos coisa, provinha dos ordenados que pagava.
Assim, quando recebia o cheque, endossava-o reencaminhando-o para a Manutenção Militar e pagava os ordenados com o produto do que se vendia na cantina, gerando assim um ciclo vicioso: as notas que o pessoal gastava voltavam às mãos do Primeiro, que as voltava a usar no pagamento de salários acabando de novo nas mãos do Primeiro, formando uma espécie de corrente que só acabou quando a nossa comissão na Neriquinha chegou ao fim. As notas, essas, foram ficando velhinhas, amachucadas encardidas, flácidas e muito frágeis, quase sem cor.
Por força das feridas e cicatrizes que apresentavam, algumas já eram conhecidas, identificáveis como carta marcada do baralho.
Ainda me recordo de certa nota, com uma mancha avermelhada a um canto, que veio parar à minha mão umas duas ou três vezes.

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

É interessante essa situação dos dinheiros num lugar sem bancos, comercio mínimo, ordenados reduzíssimos (pré), os salários maiores iriam para poupança, mas era quase a situação dos anos 50 nas grandes aldeias portuguesas e pequeníssimas cidades.

Ou seja, circulava pouquissimo dinheiro, não havia bancos, comércio era apenas a mercearia (cantina do primeiro)e resolvia-se o problema com o Rol, ou seja metia-se vale.

Na Angola dos anos 50, simplesmente para se tomar café e bagaço, no Polo Norte em Luanda ou Portugália, passava-se vale e pagava-se no fim do mês. e toda a gente tinha Rol na mercearia.

Amigo Egídio, esse ponto de vista sobre o sistema económico da N´riquinha, que nem 0 virgula, 000001 por cento dos portuguees conheceram ou imaginam, não era muito diferente do nosso Portugal rural e não só, de quando a nossa geração nasceu.

As maiores diferenças entre o nosso mundo rural e aquele fim do mundo, era a temperatura que nos obrigava a gastar mais dinheiro no alfaiate, porque o saneamento básico era semelhante, e a iluminação pública era igual.

Amigo Egídio graças a este Blog, aquela terra vem no mapa, com o mesmo direito que as capitais.

Cumprimentos

Egidio Cardoso disse...

Bem visto. Aceito a analogia por ser incontestável. Nos anos 50, o mundo rural Português seria mais ou menos constituído por pequenas comunidades fechadas, que a ausência de meios de comunicação com o exterior transformava em "N'Riquinhas".
Na Madeira, por exemplo, há uma pequena localidade do interior, estranhamente denomidade "Ilha". Há 30 anos atrás, uma parte significativa da sua população nunca tinha visto o mar. Estranho, não é?
Obrigado por nos visitar e contribuir com os seus comentários para enriquecer este blog.
Um abraço.