É mais um pequeno acrescento a tudo o que escrevi sobre as
capacidades de orientação das gentes que habitam uma das zonas remotas do território
angolano. E estamos a falar de um povo que, pelo menos naqueles tempos, tendo
hábitos de vida bastante afastados do que se poderia designar por civilização,
era considerado como integrantes da mais atrasada de todas as etnias que
povoavam aquele imenso território, atraso que, como é bom de ver, era medido a
partir da comparação com o padrão de vida dito civilizado, citadino ou, se se
quiser elevar a bitola, evoluído.
Só que, aquele povo, para levar a sua vida, não necessitava de
nenhuma das vantagens ou alegadas mordomias do mundo moderno. Pautavam o seu modus vivendi por hábitos ancestrais,
tinham pavor a quase tudo o que se assemelhasse a uma qualquer maquineta, eram
capazes de considerar o médico analfabeto quando comparado com a imensa sabedoria
do curandeiro da aldeia e as suas superstições quase que condicionavam tudo o
que faziam ou pensavam. Por exemplo, uma máquina fotográfica era uma invenção
do demónio para lhes roubar a alma e um rádio bem podia ser o portal que o dito
utilizava para, desde as profundezas do inferno, enviar as suas ameaças aos que
por cá andassem. Feitiçarias, enfim.
Pois! Podiam ser tudo isso, mas eram doutores relativamente
ao que era preciso conhecer para tirar partido do muito pouco que aquela terra
estéril e areenta tinha para dar. Em tudo o que tivesse a ver com isso a sua
sabedoria era imensa, especialmente quando comparada com a nossa total
ignorância sobre tais assuntos. Por ali, a nossa vasta cultura era de pouca
serventia, especialmente quando o que importava era saber por onde andar, quer
estejamos a falar do terreno que se pisava quer da direcção a tomar para chegar
a algum lado.
O episódio passou-se comigo na companhia de outros três em
quem o juízo e as cautelas pareciam interessar pouco. E surgiu na sequência de
uma proposta feita por um dos fuzileiros do destacamento de marinha estacionado
no Rivungo. Ainda não decorrera um mês desde que ali chegáramos e para nós,
imberbes principiantes, os mistérios da savana ainda eram exactamente isso;
mistérios, desconhecidos e insondáveis. Mas para o pessoal da Marinha, que já
ali estava há algum tempo, não seria bem assim. O marinheiro, de quem
infelizmente não consigo recordar o nome, veio ter connosco e propôs uma
caçada. Naquela altura do ano, as chanas
do Uefo costumavam apresentar-se como uma extensa pastagem verdejante e seria
certamente fácil encontrar, algures no meio das ervas, uma vítima a condizer.
Era só escolher.
O Alferes autorizou, a escolha da equipa reuniu consenso,
aperraram-se armas, embainharam-se as facas de mato, atestou-se o depósito do
Unimog e, quando as três já se aproximavam das quatro da matina, eu, o Silva, o
homem da marinha e o condutor Figueiredo, mais conhecido por Comandos e que
parecia só ter medo de agulhas e injecções, largámos em direcção à picada
sinuosa que se dirigia ao Caxoxo, pequeno Kimbo localizado nas imediações das margens do Uefo, aonde chegámos uma hora depois,
já o sol, que por ali costuma ser madrugador, despontava por entre as árvores. Naquelas
paragens, às cinco da manhã já é dia claro e pelas seis o calor já frita
miolos.
Os homens da PSP, ali destacados, indicaram-nos um guia de
confiança, deram-nos umas dicas, desejaram boa sorte e partimos, sem pressa,
que a picada, ora de areia solta ora lamacenta, não ajudava, em direcção à
grande chana do rio de fraco caudal
que serpenteia em direcção a sul.
Avançámos, ao sabor dos meandros da chana, procurando evitar as zonas mais alagadas, perscrutando cada
recanto da mata e detendo o olhar em cada tufo de capim, tentando adivinhar
onde estariam as manadas de palancas que, na nossa ignorância de principiantes,
se considerava certo andarem por ali.
Mas nem um bicho se nos apresentou, nada mesmo. Naquele
extenso prado verdejante, de beleza feérica, longe de tudo e sem nada que pudesse
perturbar a paz circundante ou assustar o que quer que fosse, não se via
vivalma.
Continuámos para sul, desflorando aquela paisagem virgem,
confiantes de que o guia nos saberia trazer de volta e na espectativa de que,
em qualquer dos recantos caprichosamente recortados na paisagem, surgisse o
que quer que fosse que justificasse a viagem. De repente, quando, já
desanimados, nos preparávamos par regressar, surgiu o vulto amarelo ocre de um
antílope, um nunce como era conhecido, mordiscando placidamente um tufo de
erva, quase passando despercebido na linha que separa o descampado da mata que
bordeja a chana.
Num primeiro momento não se apercebeu da nossa aproximação,
até que provavelmente alertado pelo ronronar do motor que o Comandos
procurava controlar com uma aproximação cautelosa, o bicho deu um pinote e
encetou uma cavalgada desenfreada em direcção ao interior da mata ao mesmo
tempo que o condutor, acelerando a fundo, lhe seguia no encalço, procurando competir
com a corrida de um animal que ziguezagueando por entre o arvoredo, saltando
por cima de cada obstáculo, se afanava em fugir à besta roncante que lhe seguia na
peugada.
O Comandos, sacando da sua perícia, exigiu do Unimog tudo o
que ele tinha para dar e lançou-se numa louca correria mata adentro, derrubando
árvores, contornado as de maior porte, evitando num último momento uma
depressão no terreno que, escondida pelo capim, surgira pela frente, perseguindo
o animal até que, depois de dois saltos impelidos pelas ágeis patas traseiras,
o nunce despareceu por entre a vegetação.
Parámos. Esfreguei as mãos doridas do esforço feito para me
segurar ao banco, retomámos a compostura, conferenciámos e decidiu-se que o
melhor era regressar, ainda que de mãos a abanar. Olhámos em volta. A mata
circundante era incaracterística, sem pontos de referência. A chana do Uefo
desaparecera e depois daquela correria sem destino ninguém sabia para que lado
ficava o norte e menos ainda que direcção seguir.
Era exactamente para isso que se precisava do guia e o homem
cumpriu plenamente a sua função. Sentou-se sobre a parte superior do encosto
dos bancos, pés nus, sujos e gretados sobre o assento, esticou o braço para a
frente indicando o caminho a tomar e, sem dizer palavra, esperou que se
iniciasse a marcha. O Comandos arrancou, seguindo a direcção apontada pelo braço
do homem, conduzindo a viatura a corta mato, sem pressas, desviando-se das
árvores e contornando a vegetação mais espessa. Sempre que, um obstáculo
obrigava a um desvio de maior amplitude, o braço do guia, parecendo dotado de
uma qualquer agulha magnética, movia-se para a esquerda ou para a direita,
corrigindo o rumo, como se perseguisse um ponto invisível, no meio do arvoredo.
Seguimos assim, por longo tempo, confiando apenas no braço
estendido do guia. Por mim, interrogava-me seriamente se seria aquele o caminho
certo. As árvores pareciam ser sempre as mesmas, a vegetação rasteira à nossa
frente, uma repetição da que se acabara de pisar e aquela árvore, um pouco mais
frondosa que as demais, não era diferente da que se tinha contornado um quarto
de hora antes. Cheguei a pensar que seguíamos em sentido oposto ao que eu pressupunha
ser o correcto, para de seguida, duvidando da certeza do guia, imaginá-lo um
elemento do inimigo a levar-nos em direcção a uma qualquer emboscada.
Contudo, se era por ali que o guia apontava, era por ali que se seguia, até porque
opção diferente não havia.
Finalmente, depois de tanto ziguezague e sem nunca se
divisar um horizonte, logo ali, a seguir a uma espécie de moita mais espessa,
como se surgisse do nada, a picada desenhou-se por entre o capim para, cinco
minutos depois, após uma ligeira depressão, se divisar claramente as palhotas
do Caxoxo.
Não sei como, mas o homem trouxe-nos direitinhos ao ponto de
partida. Ou conhecia cada árvore daquela mata imensa ou então memorizou
mentalmente o percurso feito na ida para, numa espécie de recriação da lenda de
Ariadne, nos trazer de volta seguindo o fio criteriosamente gravado na sua
memória.
Na altura, não me ocorreu outra explicação.
Na altura, não me ocorreu outra explicação.
2 comentários:
Com algum esforço e imaginação o Egídio lá vai alimentando esta chama que nos mantém mais unidos, volvidos que vão mais de quarenta anos desde o último abraço.
Não importa que se venham repetindo intervenções ou apenas semelhantes. Importante é manter este elo e esta unidade.
Mas vinha mais por outro motivo.
É bem verdade que a ancestralidade daquela gente só podia levar à desconfiança dos usos, costumes e saberes daquela tropa, cuja imagem colonialista se mantinha viva nos seus espíritos. Mas se houve setor que rapidamente os conquistou foi a enfermaria e os prodigiosos "milombos" do dr. Lacerda. Recordar as filas para a consulta à porta da enfermaria logo pela manhã atestando a confiança depositada.
Com outra envergadura recordo o surto de sarampo que atacou o aldeamento e a fuga para a mata, "fugindo ao mau olhado e estranhos desígnios brancos que os fustigavam", tornando-se necessário ir ao mato e convencê-los a voltar ao aldeamento. E eles vieram. A medo, mas vieram. Muito por ação do Fulai Monjuto, Chefe dos GE's, (o grande Fulai Monjuto!), tornando as consequências bem menos gravosas. Creio mesmo que terá sido a partir daí que a confiança se alicerçou e os medos se dissiparam, com quebras para o negócio do feiticeiro do kimbo, com quem o dr. Lacerda não chegou a aprender nada, tendo prestado mais atenção aos calhamaços de medicina tropical que levou na bagagem.
Abraço e vou tentar participar com uma ou outra prosa mantendo esta combustão de espírito que, pelo menos a mim, me continua a alimentar uma amizade que jamais definhará.
P Cabrita
É verdade. Retenho de memória esse grande feito do Dr. Lacerda; Conquistar a confiança daquela gente que via mau feitiço em toda a desgraça.
Mas não deixa de ser importante frisar o papel dessa grande figura que foi Fulay Monjuto.
Fica a eterna dúvida: Se não fora o Fulay, não sei se o feiticeiro não teria ganho. O facto é que muita galinha continuou a morrer para garantir o fornecimento do sangue do bicho que, com a ajuda de umas danças a preceito, insistia o feiticeiro, curava tudo.
EC
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