Mais de um mês decorrera desde a festa comemorativa dos dois
anos de permanência em Angola. A nossa missão chegara ao fim, mas ninguém
pareceu impacientar-se com o “mata-bicho”, epíteto então utilizado para
designar o excesso de tempo sobre os vinte e quatro meses da praxe. Mas, como
não podia deixar de ser, chegou a notícia da rendição. Chegou, sem alaridos,
sem ansiedade, sem pressas e ninguém exultou com a novidade. Nada aconteceu que
se parecesse com a loucura desencadeada na Neriquinha por notícia semelhante.
Com efeito, quando o primeiro zumzum começou a circular, ninguém pareceu entusiasmado e o primeiro comentário
não passou de um simples:
- Ei, pessoal! Parece que nos vêm render p’ra semana.
A reacção geral pareceu-me genericamente destituída de
emoção, como se a coisa não fosse notícia importante. Do que recordo, não foi
além da displicente interrogativa:
- Ah é? Já não era sem tempo.
Contudo, não obstante aqueles últimos oito meses da nossa
missão em África tivessem decorrido como se do descanso do guerreiro se
tratasse e todos se sentissem bem naquele agradável local, o anúncio não deixou
de ser arauto de boa nova. A verdade é que, por muito aprazível que fosse, as
Mabubas não eram a nossa terra. A proximidade do fim da comissão, festejada com
pompa no mês anterior, espicaçara as saudades mantidas em suspenso ao longo
daqueles infindáveis dois anos. O desejo incontido de abraçar família e amigos
que, lá longe, no outro lado do oceano, nos esperavam com natural impaciência,
foi ganhando intensidade. Dois anos é muito tempo especialmente se tivermos em
consideração que, até ao momento em que nos vestiram a farda, uma grande parte
daqueles homens nunca se afastara da família mais de um par de dias seguidos.
Como sempre, a notícia veio singela, sem pormenores.
Seríamos rendidos antes do Natal embora nada fosse dito sobre o dia do regresso
a casa, ao nosso Portugal pequenino ali carinhosamente apelidado de “puto”. Mas
isso não pareceu preocupar a malta. A partir desse dia, passaríamos a estar em
Luanda, de papo para o ar, sem operações militares ou quartos de sentinela, apenas
aguardando, na grande cidade, o momento do regresso.
Chegaram finalmente aqueles que nos foram render. Foi numa
segunda-feira, quando faltava apenas uma escassa semana para o Natal daquele
ano de 1973. Não eram maçaricos. Vinham suados, sujos e com ar cansado a
denunciar a longa viagem que os trouxera para ali. Vinham dos confins da savana,
fartos de calcorrear picadas arenosas e sofrer na pela as agruras do clima e os
duros traumas do isolamento hostil passado numa base militar plantada no meio
de coisa nenhuma.
A história repetia-se. Sete meses antes éramos nós a aportar às Mabubas, também numa segunda-feira, resgatados às areias escaldantes do Cuando-Cubango.
A companhia que agora nos rendia, pertencente ao Batalhão de Caçadores 4611,
passou pelo mesmo mas no outro lado daquele bocado das terras do fim do mundo.
Nós, num lado, calcorreando as margens do Rio Cuando, do Cúbia e do Uefo, eles
no outro extremo, num ermo com centro em M’Pupa nas margens do Rio Cuito, bastante
lá para baixo, um pouco antes de este misturar as suas águas com as do Rio
Cubango para juntos se perderem, mais abaixo, no grande delta do Okavango.
Parece que as Mabubas haviam sido eleitas pelas hierarquias como local de
recobro de militares resgatados à grande savana.
O dia da rendição decorreu sem grandes alaridos, sem pressas
ou ansiedades. Não houve praxes que é coisa que só se faz a maçaricos e nada
havia para contar que interessasse a quem vinha prenhe de histórias
rocambolescas. A passagem do testemunho foi feita naturalmente por gente já
experimentada e conhecedora dos correspondentes preceitos protocolares e, em
boa verdade, o que havia a entregar não era muito. Quer o depósito de géneros
quer a cantina tinham stock reduzido de
secos e molhados já que a proximidade dos fornecedores dispensava armazenagens excessivas.
É que, deste lado, porque pertinho da civilização, as faltas eram facilmente
supridas. Lá em baixo, no meio daquele deserto arenoso, era necessário garantir
um stock de segurança; o fornecedor mais perto estava a dias de distância, a
viagem era longa e atribulada e não era garantido que o reabastecimento mensal
chegasse dentro dos horários.
Abraços, apertos de mão efusivos e um acenar de até sempre compuseram
uma despedida muito distinta do nosso adeus à Neriquinha sete meses atrás. Cá
como lá, deixaram-se amigos, diferentes mas igualmente amigos. Contudo, da paisagem
lunar da Neriquinha todos tinham pressa de fugir e sem olhar para trás. Mas as
Mabubas, um lugar aprazível, cheio de gente que nos tratou bem, não era
propriamente um local de que se quisesse distância. Partimos felizes porque
isso apenas significava que estava perto o regresso a casa; a nossa passagem
pela guerra chegara definitivamente a seu termo.
Deixámos para os recém-chegados umas instalações condignas. Quartos arejadas, pintados de fresco e com cores garridas, decorados com alguma arte, cortinas a condizer e com a certeza de que, desta vez, não haveria necessidade de desinfestar as camas: mosquitos haveria sempre que esses não podem ser exterminados, mas percevejos, como os que nos infernizavam o sono na precária camarata da Neriquinha, era coisa que por ali nunca houve.
5 comentários:
Muito interessante, como sempre.
2/2/2015- Como sempre, leio com curiosidade o que o nosso amigo Egidio escreve e partilha e que desde deixo o meu muito obrigado. Sinceramente, recordo algumas passagens das Mabubas, mas não, porventura as mais relevantes. Da leitura desta publicação e de tantas outras que de forma objetiva e clara, nos deste a recordar, reconheço que tomei conhecimento de muitas passagens que não conhecia. Estava um pouco afastado do teatro das operações, como estava do convivio da camarata e isso implicava o meu afastamento no conhecimento de determinadas situações e passagens durante a nossa pwermanência por terras longinquas de Angola. Vai se aproximando a ida para o Grafanil e o regresso a Lisboa. Confesso, amigo Egidio Cardoso, estou te imensamente grato por tão belas descrições com que nos brindaste. Pessoalmente, pude regressar aquelas paragens e ao tempo e reviver momentos que não pensaria ser possivel. OBRIGADO Um grato abraço de (Pinto) Figueiredo
Dr. Alípio
Muito obrigado pela fidelidade
Pinto:
Pois! Dormir na enfermaria desgasta o chip da memória.
Eu, às vezes, também fico surpreendido. Quando me desafiaram para entrar nesta aventura da escrita, só me recordava de meia dúzia de situações.
Descobri, afinal, que escrevendo sobre umas coisas, outras vão emergindo, aparecendo ao de cima.
Um abraço.
Ou muito me engano ou está por aqui a desenhar-se uma despedida por parte do Provedor das nossas memórias colectivas...
Pelas saudades que já vou fermentando, venho lançar uma Petição no sentido de "obrigar" o nosso Cronista a continuar esta viagem que tão boas recordações nos vai trazendo à nossa memória colectiva.
Dispensamos a obrigação de um post por mês; pode ser apenas quando surgir algo que escapou, ou venha a ser lembrado por algum companheiro.
E porque não criar aqui um cantinho de breves episódios pitorescos que podiam ser lembrados por quem os viveu...?!
Ficam as propostas.
Um abraço ao Egídio e o meu agradecimento por este memorial que guardamos com zelo e indelével marca de apreço, não só pela qualidade da prosa literária, mas também pelo sentido de deixar uma marca histórica do que se constituiu num período marcante das nossas vidas.
E, assim sendo,... até já...!
P. Cabrita
A despedida não é para já, mas o assunto está prestes a esgotar-se. Estão quase, quase a completar-se sete anos a escrever crónicas mensais. Até eu me admiro por ter conseguido arranjar assunto para alimentar por tanto tempo este cantinho de recordações.
Tenho ainda mais umas três ou quatro (uma delas é triste). Contudo, se me municiarem com mais umas quantas, cá estarei para manter a assiduidade.
Sendo preguiçoso, é um compromisso que assumi comigo mesmo. Conhecendo-me mais ou menos, foi a forma que encontrei para me autodisciplinar.
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