Não há volta a dar; clima tropical e mosquitos andam sempre emparceirados.
Não é possível usufruir das cálidas vantagens de um serão africano sem ter de
sentir na pele o incómodo doloroso das ferroadas violentas daqueles pequenos seres
que se afanam incansáveis em dar cabo da paciência de qualquer ser vivente,
sugando o sangue a quem não for capaz de os sacudir antes que consigam ancorar
aquela minúscula ferramenta sugadora que dá pelo nome de ferrão. E o pior é que
não são esquisitos, tanto ferram no coiro duro duma pacaça, como na pele
enrugada e encortiçada de um velho ainda que antes tenham acabado de picar a
sedosa derme de uma donzela, contribuído alegremente para a transmissão de
doenças por inoculação.
Durante o dia, enquanto o sol faz valer o seu poder escandecente
sobre os elementos, não se deixam ver mas, assim que o sol se esconde por
detrás do horizonte e o lusco-fusco se instala, surgem em bandos zunindo numa
infernal e irritante sinfonia monocórdica, penetrando por nesgas impensáveis, encontrando
o mais esconso buraquinho no mosquiteiro para, conquistado o nosso reduto de
sossego, nos sugar o sangue enquanto durar a noite.
E o pior é que calor e águas paradas formam o ambiente ideal
para que se multipliquem, quer estejamos a falar das remotas e pantanosas chanas
do Cuando Cubango quer do pacífico recato das Mabubas onde o enorme manancial
de água da barragem, permanentemente mantido ao seu nível pelo incessante
caudal do Rio Dande, constituía o alfobre ideal para que se multiplicassem
incessantemente. É verdade, no que toca à guerra com os mosquitos, a nossa vida
nas Mabubas não era melhor que a passada no desconforto da Neriquinha. Tanto
aqui como lá, a guerra contra aquele exército zumbidor era renhida e não havia
forma de os vencer.
Nos quartos de dormir, entrincheirados sob a redes
mosquiteiras, quase sempre se conseguia dormir sem se ser incomodado, mas na
messe, depois do jantar, quando nos juntávamos no alpendre para um bocado de
conversa e mais o que conviesse para roer o tempo enquanto a hora do recolher
não chegava, a horda de mosquitos atacava em força, de todos os lados, e nem a
roupa servia de protecção. Mesmo o tecido grosso do camuflado era facilmente
perfurado pelo ferrão aguçado da bicharada ávida de sangue que sabia escolher
devidamente as carnes mais expostas ou mais frágeis para se banquetear.
As cadeiras de descanso da messe, aquelas onde, nas horas de
ócio, costumávamos preguiçar, tinham uma construção simplista: estrutura em
ferro tubular, sendo o assento e encosto formados com uma fita de plástico
grosso e de cores garridas estrategicamente entrelaçada e firmemente ancorada
na estrutura metálica, plástico que, cedendo sob o peso do corpo, oferecia o
conforto necessário. Mas, isso permitia que, no intervalo entre as voltas da
fita, bocados do rabo e das costas, ficassem à mercê da voracidade do
mosquitame, perante a nossa impossibilidade em ripostar.
Era uma luta desigual já que, um ou outro que, com uma
palmada certeira, se conseguia esborrachar, pouca ou nenhuma brecha fazia
naquele exercício de milhões constantemente renovado, não obstante contarmos
sempre com a ajuda adicional de um pequeno pelotão de osgas que se entretinham patrulhando
a parede do alpendre da messe, emboscando as melgas mais distraídas. Com uma destreza
impressionante e em avanços subtis, aproximavam-se dos insectos que por ali
pousassem e num movimento tão rápido quanto um piscar de olhos, como se
impulsionados por uma mola, precipitavam-se sobre a minúscula presa que,
engolida, desaparecia como num passe de mágica.
Não tenho a certeza, mas creio que chegámos a atribuir nomes
a algumas delas: bichos que, vá -se lá saber porquê, continuam a ser
considerados, por muita gente, como repugnantes, eram, naquele sítio, encarados
como animais de estimação. O facto é que, na messe, era rigorosamente proibido molestar
osgas, mas imperativo liquidar melgas que, ainda assim, nos atacavam por baixo,
ferrando o bocado da nádega que espichava por entre as fitas plásticas do
assento da cadeira.
Pois é, o seu atrevimento não tinha limites e nem
respeitavam autoridades ou hierarquias; desde que tivessem oportunidade de
ferrar a aguilhão sugador, faziam-no sem pedir licença.
Certa vez, lá na sede do batalhão instalada num casarão de
traça colonial implantado à sombra dos palmares da Fazenda Tentativa e gozando
da frescura viçosa propiciada pela proximidade dos seus extensos canaviais, o
comandante queixava-se perante a oficialada
presente, como que se insurgindo contra as vorazes melgas que se atreviam a
molestar tão distinta patente.
- Picam-me as pernas mesmo por cima das calças! - Desabafava
com estupefacção.
Entre o grupo estava o major Tamegão, militar de carreira vindo
do curso de sargentos que, já de idade avançada, atingira o posto base dos
oficiais superiores do exército e que, desempenhando as funções de segundo
comandante responsável pela burocracia administrativa do batalhão, cumpria
então a última comissão da sua vida. Para se perceber melhor a cena, convém salientar
que o major, espécie de cabo arvorado com galões, era um exemplo de cromo que
ainda hoje alimenta o anedotário que anima qualquer encontro de quem com ele
privou. Era um homem sui generis, exibindo uma figura física nada harmoniosa que faria as delícias de
qualquer caricaturista: baixo, largo e desproporcionado, usava sempre calções
que deixavam a descoberto as pernas curtas e enfezadas que pareciam suportar com
dificuldade o resto do corpo, dando maior dimensão ao aspecto ridículo da sua
figura, sem desprimor pelo homem que, verdade seja dita, não fez inimigos por
ali.
Reagindo ao desabafo do comandante, o Tamegão tentou uma
laracha, ripostando:
- A mim não!
A sua evidente falta de jeito para fazer humor, levou a que ninguém
tenha percebido que tentava fazer piada e a prova é que o comandante, não
entendendo o motejo, olhou directamente o major e muito sério questionou:
-Ora essa senhor major! As melgas não o picam?
O Tamegão, ensaiando um sorriso forçado numa vã tentativa de
conferir significado ao seu fraco sentido de humor, apontou para a parte das pernas
não coberta pelos calções, e respondeu:
- A mim, picam-me directamente na pele.
- A mim, picam-me directamente na pele.
2 comentários:
A descrição do perfil da horda de mosquitos que nos fizeram a cabeça em água durante aqueles cerca de 780 dias está tão perfeita, que tive a leve sensação de voltar a escutar aquele zumbido característico, prenúncio de uma noite em branco, ou garantia de vários pruridos no dia seguinte, cujo hábito, lá mais para o fim, nos retirava a preocupação de os emboscar e cortar-lhes as voltas.
Já nem o próprio paludismo que transportavam de forma gratuita nos preocupava, até porque para alguns "... antes os 40 de febre, que 4 dias na mata...!"
Enfim, o mosquito era, de facto, um outro aliado do inimigo, contra o qual as nossas armas eram ainda mais reduzidas e ineficazes.
Só lembrar que no mato nem a rede mosquiteira nos conseguia defender daquele inimigo. Quem não se lembra daquele som perfurante a trazer-nos à memória o som igualmente "inimigo" da broca do dentista... Depois era só esperar que poisasse para uma bofetada sadomasoquista até à próxima investida. E do outro inimigo, felizmente nada...
Excelente texto, óptimo tema, mesmo que de más memórias...
Abraço
Eu estava presente quando essa cena aconteceu, numa das vezes (muito poucas) em que fui levar correio ao Comando. Ao ler esta perfeita descrição, quase que me senti ali, em sentido, á espera de uma resposta do comandante Rui Mendonça.
Enviar um comentário