terça-feira, 1 de abril de 2014

A CARTA DE CONDUÇÃO

Naqueles tempos, não havia acesso aos facilitismos que caracterizam os dias de hoje e não me refiro sequer à evolução tecnológica de que quase todo o ser pensante modernamente usufrui. Para dar um exemplo comezinho, ocorre-me citar o telefone; fazer um simples telefonema de Angola para Lisboa era quase ficção, coisa difícil. Quando muito um telegrama, via Marconi, então transmitido recorrendo aos pipiipi’s que representavam os pontos e traços do velhinho código Morse. Ou seja, comunicar com a família, só mesmo recorrendo à escrita bem arrumadinha no curto espaço disponível dum simples aerograma. Telegrama só em caso de extrema urgência e, ainda assim, era preciso poupar nas palavras e omitir os artigos definidos, os indefinidos, as preposições e outras miudezas da escrita.
Eram de facto outros tempos. E as diferenças eram muitas. Umas mais insignificantes, outras mais radicais e outras ainda diferentes por razões diversas. Veja-se, por exemplo, a carta de condução; hoje, qualquer miúdo com dezassete anos, já está habilitado com a licença adequada à condução da máquina de que mais gostar. Naqueles tempos, conduzir era coisa que ocupava os sonhos de muitos mas, simultaneamente, era algo que não estava nos planos mais imediatos da maioria. E eu não era excepção. A primeira vez que experimentei tal coisa foi ao volante de um unimog, dos pequenos, nas picadas arenosas que sulcavam os longes por onde andámos. Mas aí, a coisa era simples; desde que conseguisse engrenar uma velocidade, o pequeno pincho andava quase sozinho. A profundidade do sulco da picada mantinha-o no caminho e a ausência de trânsito dispensava o conhecimento dos artigos do código da estrada. Assim sendo, eram muito poucos os encartados da companhia. É claro que os condutores da tropa não entram na contagem. Alguns destes tinham apenas carta militar, atribuída pelo exército, após umas aulas mal-amanhadas frequentadas na escola de condução militar.
Mas, vamos ao que interessa. Ali bem pertinho, na pequena povoação do Caxito, havia uma escola de condução e isso bastou para motivar uns tantos a tirar a carta! Não fui eu, de certeza, quem primeiro se lembrou de tal coisa mas, decidi inscrever-me. E mais uns quantos também. Não recordo exactamente de quem, mas o Morais, que me acompanhou desde as primeiras lições, era um deles e, pelas razões que motivam esta história, o soldado cozinheiro Lourenço era um dos outros.
O Lourenço era um homem sui generis. Aprendi a conhecê-lo no Rivungo, quando ali cheguei pela primeira vez e me apresentei à grande chana do rio Cuando. Foi o cozinheiro que nos calhou em sorte e ainda hoje estou para saber porque raio foi o homem escolhido para, sozinho, tratar dos tachos e dar de comer à malta para ali destacada, enquanto na Neriquinha ficava toda a equipa, para mais orientada pelo Cabo Ribeiro que se sabia ser o único com experiência na função.
Para além de ser cozinheiro de fracos recursos, era um cromo. Bom tipo, certamente mas se, naqueles primeiros tempos de mata, não tivesse tido a preciosa ajuda do velho Máquina, negro ganguela nascido nas profundezas da savana, mas bastante habilidoso nos temperos, estaríamos bem tramados e creio bem que passaríamos o tempo a mastigar salsichas com massa e massa com salsichas entremeada com um ou outro acepipe gorduroso aprendido na escola de culinária militar daqueles tempos. Aquele seu trejeito fungoso à mistura com o discurso fanhoso não augurava nada de bom, pelo menos no que se refere à confecção de comida de jeito. Mas safou-se bem e tenho a certeza de que aprendeu muito com o Máquina. Isso e o facto de ser boa pessoa, talvez seja a explicação para não ter recebido, ao longo do tempo que tratou da janta do pessoal, reparos de maior. Caiu no goto da malta, é o que é. Todos o tratavam com bonomia à mistura com um ou outro apodo inspirado na sua bisonha figura e peculiares trejeitos, incluindo a forma como metia os pés para dentro ao andar. Pois bem, este homem que, para além do mais era pouco dado às coisas da cultura, também resolveu tirar carta de condução. Não sei quais seriam os seus planos para o futuro, mas foi assim que aconteceu.
As lições de condução não constituíram grande problema. Na vila do Caxito apenas havia uma rua. Em boa verdade era a estrada que, vindo de Luanda e depois de passar pela Fazenda Tentativa, atravessava a urbe em direcção a norte. O trânsito era escasso, não havia cruzamentos nem rotundas e tão pouco subidas e descidas, o que significa que as lições práticas não eram um problema para os instruendos mas, em compensação exigia muita imaginação do instrutor que procurava tudo o que pudesse ajudar no treino de todas as manobras impostas pelo regulamento. Lembro-me que, para praticar o ponto de embraiagem, dado tudo ser plano por ali, recorria-se a uma pequena rampa de terra que, em resultado do nivelamento da estrada aquando do seu asfaltamento, dava acesso à picada que, num plano inferior, dali nascia em direcção ao interior da mata. Era suave, a rampa, bastante curtinha, mas era o único declive que havia nas proximidades. Quanto ao mais, o instrutor metia dois alunos no carro, um conduzia até à Fazenda Tentativa, fazia aí a inversão de marcha e o outro fazia o percurso inverso de regresso à escola.
Assim sendo, para o Lourenço, as lições foram correndo sem grandes problemas e, aos poucos, lá foi conseguindo fazer tudo direitinho. O problema era o código. Fixar todas aquelas regras era complicado. Bem se esmerou a estudar pelo manual mas a coisa não estava fácil e isso via-se, durante as aulas teóricas, especialmente porque não conseguia encaixar na pergunta do instrutor aquilo que, com tanto denodo, estudara na noite anterior. É verdade que os manuais incluíam uma variedade considerável de perguntas e respostas correspondentes mas, ali, perante o instrutor, era difícil encaixar na pergunta a resposta certa.
Mas o Lourenço não se intimidou. Decorou o manual de ponta a ponta, afinou bem a coisa e dentro de algum tempo tinha tudo memorizado ao mais ínfimo pormenor; agora nada podia falhar. Mas, perante uma pergunta concreta, tornava-se difícil rebobinar tudo o que memorizara, acontecendo por vezes escolher a resposta destinada a pergunta diferente. Foi então que encontrou a solução radical. Para não se enganar, decorou, de forma encadeada, cada pergunta e a respectiva resposta. A partir daí nunca mais se enganou. Perante uma pergunta e independentemente de como o instrutor a formulava, o Lourenço respondia sempre da mesma forma: papagueando, repetia a pergunta tal como estava no manual e acrescentava-lhe a resposta correspondente.
Não me lembro se alguma vez, percebendo mal a questão, rebobinou a pergunta errada e se com isso, também errou a resposta. Mas sei que fez o exame e passou à primeira.

5 comentários:

Anónimo disse...

Telefonar não era assim tão complicado. Na estação central de correios e após uma espera de até uma hora, raramente falhava. A conta não era exorbitante mas, não dava para telefonar todas as semanas.

O Lourenço era o único cozinheiro "encartado" para além do cabo Ribeiro, completando-se a equipa com dois auxiliares de cozinheiro o Oliveira e o "Joãozinho" Andrade. A escolha do que devia avançar para o Rivungo era óbvia e eu nem precisei de ser consultado.

O Lourenço era o cozinheiro das messes nas Mabubas e não se portou mal. Lembro que a alimentação dos graduados, na segunda parte da comissão, continuava a ser igual à dos praças, só que confeccionada à parte.

Recordo muito bem o episódio da carta, especialmente o modo como o Lourenço se desenrascou. Tive a sorte de ser o primeiro a prestar provas e de ter sido eu a servir de cicerone ao examinador, que não conhecia o Caxito. Isto de ser encartado e nunca ter estacionado o carro entre dois é obra!!!

Abraço,

Morais

Egidio Cardoso disse...

Bem, Se calhar estou a ser um pouco injusto para com as qualidades de cozinheiro do Lourenço. Confesso que não sabia que ele e o Cabo Ribeiro eram os únicos cozinheiros encartados.
Talvez a minha memória apenas permita recordar os primeiros tempos no Rivungo, quando ele ainda se iniciava verdadeiramente na confecção de comida para muita gente.
Contudo, faço-lhe justiça: Não obstante a sua figura inspirar pouca confinaça, nunca foi homem de se enrascar e nunca nos faltou comida no prato.
Se calhar vou reescrever essa parte da história

Anónimo disse...

Caxito, povoação que permitiu que obtivessa a carta de condução de ligeiros.Claro, num velho carocha, que também serviu no dia do exame.
Quanto ao código, bem aí, imperou o encornanço e lá deu para passar à fase da condução.
"O pior foi conduzir"Nunca tivera essa possibilidade como tantos outros. Lá fui circulando "naquela avenida c enome fluxo rodoviário" até ao dia do exame. Recordo me do engenheiro que veio de Luanda," calvo,larguinho de cintura, baixinho" que e me disse:o senhor furriel ouça com atenção: vai sair daqui,vai fazer o ponto de embraiagem na rampa que o nosso Cardoso falou; estaciona entre aqueles embondeiros; faz a marcha atrás na mesma rampa e regressa. entendeu??? Sim senhor engenheiro. Lá fui eu,ansioso, trémulo, porque n podia chumbar, porque já faltava pouco tempo para regressarmos e queria trazer o precioso papel. Quando cheguei, após algumas dificuldades, perguntei lhe com algum atrevimento "se tinha passado".Retorquiu:O senhor não sabe conduzir,mas como lhe falta pouco tempo para partir,já não dá para a repetição do exame, porque senão chumbava.Na verdade, eu não sabia conduzir. Quando cheguei, em Coimbra tive que tirar 15 lições, para me adaptar e aprender algo de condução.
Guardo com muito carinho, uma foto da escola de condução no Caxito, como guardo fotocópia a cores da carta de condução emitida em Luanda, que me deram antes de regressarmos e que serviu para trocar por umas autorizações temporárias, até ser emitida nova carta de condução.Recordar é viver.
Um abraço
Figueiredo Pinto

Pedro Coelho disse...

Boa tarde,

Irei Fiscalizar a empreitada (Canal Shangombo-Rivungo). Estou a pesquisar informação sobre o local. (ex:clima, etc...) quem me puder ajudar agradecia, cumprimentos
mail:pedro81coelho@hotmail.com

Egidio Cardoso disse...

Por Razões que ao caso não interessam, rascunhei umas dicas sobre o Rivungo e enviei por mail. É mais adequado.