Nas Mabubas havia miúdos, como em qualquer lugar. Uns pretos, outros brancos, uns quantos mais reguilas que outros, uns mais pequenos e outros mais crescidotes, mas todos alegres, vivaços, umas vezes rindo outras chorando, mas felizes e irrequietos como naturalmente são os miúdos. Perante a sua natural algaraviada, veio-me instintivamente à memória a imagem dos putos da Neriquinha: todos eles pretos, nus, descalços, sujos, ranhosos e deserdados da sorte, mas igualmente alegres, irrequietos e felizes com a vida que tinham, até porque não conheciam outra.
Qualquer coisa lhes servia para preencher o seu imaginário mundo de fantasia, os seus entreténs e brincadeiras; os da Neriquinha com meios mais limitados e estes, os das Mabubas, naturalmente com acesso a outras coisas, variando os passatempos em função do que, quer uns quer outros, conseguissem arranjar. Aqueles, lá nos confins da savana, via-os brincar com as pequenas coisas que encontravam na mata, aos quais, aos poucos, foram juntando os artefactos que, com a chegada da tropa, foram aparecendo como novidades a que naturalmente não resistiam. Em contraponto, estes, os das Mabubas, embora não desdenhando coisas semelhantes, acrescentavam-lhe os brinquedos comprados nas lojas a que tinham acesso e que, lá nos confins do território, não existiam.
Mas vamos ao que interessa. Para um miúdo, qualquer coisa, mesmo que insignificante ou inútil, serve os propósitos de uma brincadeira: de uma meia fazem uma bola, uma lata dará um potente carro, a imaginação fará de um qualquer pau uma poderosa excalibur e uma simples caixa de cartão pode perfeitamente fazer a vez de um castelo. Nas Mabubas, um dos putos entre os demais, resolveu fazer isso mesmo. Encontrou uma caixa de cartão suficientemente grande, imaginou-a o seu castelo e meteu-se lá dentro entretendo-se, no seu mundo de fantasia, a congeminar planos de governo e estratégias de defesa de torreões virtuais.
Não sei se apenas se meteu dentro da caixa no exacto lugar onde a encontrou ou se decidiu ser aquele o melhor local para instalar a fortaleza, ali, mesmo no meio da rua, mais ou menos antes da curva que antecedia o último troço que levava ao paredão da barragem, por alturas das oficinas auto.
O trânsito era raro, quase inexistente. Os carros, militares ou civis, apenas eram utilizadas quando fosse estritamente necessário, onde não se incluía cirandar pelo povoado e, talvez por isso, a natural irresponsabilidade infantil daquela como de todas as crianças, não encerrava, naquele caso, um perigo iminente. O mais certo era fartar-se da brincadeira e, mais cedo do que se poderia pensar, abandonaria a fortaleza de cartão antes que um carro, por qualquer razão inesperada, por ali circulasse. E mesmo que tal viesse a acontecer, o tamanho da caixa era suficientemente grande para poder ser avistada ao longe por qualquer condutor. De facto, estar a brincar no meio da rua, naquela rua, não era perigo que causasse alarme ou preocupação de maior.

Naquele fim de dia, ao volante do Land Rover, o senhor Tomé regressava exactamente da central depois de lá ter passado toda a tarde na sua função de responsável máximo pelo perfeito funcionamento de toda aquela maquinaria. Subiu a encosta, atravessou o paredão e sem pressa, que o tempo não urgia, galgou o pedaço de rua que subia até à curva onde o miúdo se entretinha fora das vistas de quem por ali passasse.
Para o senhor Tomé, aquilo que se lhe deparou não passava de uma simples caixa de cartão, um pouco grande, mas não mais do que isso. Mentalmente questionou-se sobre o local pouco próprio para alguém largar tal coisa. Certamente estaria vazia, terá pensado, admitindo, por simples razão de lógica, que qualquer coisa a empurrara para ali. Provavelmente o vento, não obstante não se lembrar de o ter sentido soprar em todo aquele tórrido dia que nenhuma aragem fizera refrescar.

Contudo, quase no último momento, quando faltava para aí uma escassa meia dúzia de metros para o embate, uma espécie de sexto sentido, um sinal, um quase impulso gritado silenciosamente pelo seu bom senso, fê-lo rodar ligeiramente o volante levando a carripana a passar de lado quase roçando a caixa, mas sem lhe tocar.
Quando ficou lado a lado, olhou instintivamente para dentro da caixa. O miúdo, sentado lá no fundo, entretido com as suas brincadeiras, mirou-o com um sorriso gaiato como se lhe dissesse: - gostas do meu castelo?
O sangue, como que se lhe gelou nas veias, o coração quase parou para de seguida sair disparado num bater alucinado de quem acaba de apanhar o maior susto da sua vida. Parou perto de nós, saiu do carro lívido e com voz trémula, titubeou: - Quase matava o miúdo!
Não foi nada comigo, mas ainda hoje, evito passar por cima de qualquer coisa que me apareça no meio da estrada.
6 comentários:
Boas memórias e melhor prosa que nos traz o Egídio.
Bom texto.
Meu abraço
PC
A esta altura, qualquer pequeno episódio de que me lembre, serve para compor uma cronica. A inspiração do momento faz o resto.
Ainda tenho umas quantas de reserva.
Um abraço.
Se bem me lembro... esta estória coincide integralmente com o que retenho na memória sobre um menino, com cerca de ano e meio, que já calcorreava a rua e o pouco que falava era para por-se em bicos de pés em frente ao balcão do café para pedir um "baleizão".
Lembro a sua pele morena de "cabrito" e a sua mãe adoptiva que o criava com imenso amor!
(ainda sabes o que é um "baleizão"?)
É sempre com grande prazer que leio as "nossas" memórias.
Abraço,
Morais
Já não me lembrava: mas o nome, escrito, reavivou-me de imediato a memória. Um BALEIZÃO era um gelado, quase só gelo com açúcar com um pau espetado por onde se segurava. Na altura era chamado de "sorvete".
Boas recordações.
Incrível texto e viagem às igualmente bonitas memórias da minha família. A minha avó sempre me descreveu esses tempos, como os melhores anos da vida dela e da família - o meu avô, Carlos Alberto Poupa, estava a contrato com a empresa de cerâmica. Estas estórias tao felizes que cresci a ouvir - dos vossos serões animados, das amizades que trouxeram, do sentimento de vida leve, fizeram-me sempre sonhar e imaginar as vidas deles por la.
Assim que tive uma oportunidade, em 2018, fui visitar as Mabubas. Estive nas vossas ruas, nas vossas casas e na gigante barragem e espetacular miradouro! Foi um choque imenso para o qual me tentei preparar - tinham-me deixado claro que nada seria mais como “voces” me pintavam! Ainda, aquela lágrima caiu… fechei os olhos e quase imaginei a família e amigos ali, quase vos conseguia ouvir e sentir ali naque preciso momento.. quando abro novamente os olhos vejo uma enorme árvore carregada de mangas sem fim, la no alto!! Um local que aparentemente “guarda” a entrada para a travessia da barragem, surge no meu campo de visão.. começámos a falar sobre a ocupação chinesa na direccao da barragem, no fundo, um bocadinho das últimas estórias que ali aconteceram depois da vossa partida. No decorrer da conversa, o simpático indivíduo fisgou-me a olhar impressionada para todas aquelas mangas com ar delicioso, la no alto; pega um pau, e pega-me a manga mais saborosa de sempre! De alguma forma estar ali, comer aquela manga.. foi incrível! Mágico! Senti que também ali tive o meu momento de felicidade nas vossas Mabubas, no vosso paraíso.
A minha mãe e a minha tia são essas bonitas catraias, que já o meu avô dizia de peito feito e sorriso na cara que as suas “meninas” eram as as meninas mais bonitas!
Obrigada pela memória e pelas fotos de que desconhecíamos a existência - momentos bonitos que ficam
Um bem haja de toda a família Poupa,
Joana, a neta! :)
Olá Joana.
Estou para aqui a puxar pela memória. Não é fácil, afinal já lá vão quase cinquenta anos. Os Poupa eram de Aveiro. Certo? Se for o caso, tinham duas filhas, muito novas: A Fernanda e a Zinha, embora a memória teime em dizer-me que havia uma terceira, mais pequenota de que não recordo o nome. A casa dos seus avós ficava mesmo em frente à nossa messe, no outro lado da rua. É bonito confirmar que são os últimos dessa geração a reagir aqui às histórias que fui escrevendo. Na verdade, a nossa passagem (da tropa) por ali, foi fugaz; a dos que ali viviam, não. Criaram ali os filhos, e tiveram que arrancar a contragosto, as raízes mas, como fica demonstrado, passaram as memórias aos seus descendentes.
Um bem haja.
Egídio Cardoso
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