sábado, 1 de junho de 2013

A RENDIÇÃO

Agora já não havia dúvidas. Ali estavam os “mikes”, novinhos, branquinhos, recém-chegados do “puto” com os camuflados ainda a cheirar a tinta fresca e prontinhos para tomar o nosso lugar. Ainda não estavam todos, apenas a primeira leva, mas já o suficiente para se fazer a festa.
Os dias que se seguiram foram de verdadeira euforia. Bem, euforia para nós, que estávamos de partida, já que o semblante dos recém-chegados tendia mais para uma circunspecta e apreensiva sisudez, denotando apreensões e preocupações que a cerveja, a correr às dúzias, ia minimizando à medida que dissolvia arrelias e angústias.
Não sei como nos arrumámos todos naquele espaço formatado para um número limitado de homens, mas o facto é que, durante quase uma semana, a convivência entre veteranos e maçaricos foi sendo comandada pela sobranceria dos velhinhos que, ancorados na experiência de dezoito meses de savana, se arvoravam em donos da quinta, em contraponto com a quase subserviência dos novatos aturdidos pela aridez hostil que nos rodeava
Camuflados descoloridos e coçados contrastavam com as cores fortes daqueloutros recém-estreados; galões, puídos pelo tempo e quase disfarçados nos ombros dos velhinhos, impunham a sua autoridade aos novinhos, em folha, exibidos por oficiais e sargentos acabadinhos de formar. A descontracção de quem há muito se fartara da tropa e conhecia o meio, em contraponto com a postura militar dos novatos que só o tempo, as agruras do clima e os espinhos da missão se encarregariam de amolecer num processo lento de distanciamento e esquecimento das regras impostas na instrução, em nítido contraste com a crua realidade do teatro de operações que, dentro de pouco tempo, haveriam de experimentar.
Os dias que se seguiram, numa simbiose entre a euforia de uns e o “lá terá que ser” de outros, foram de transição, cumprindo-se a cíclica transmissão do testemunho, numa repetição, quase fotocopiada, do que acontecera dezoito meses antes.
Nessa altura, como agora, cumprindo os formalismos impostos, foi passada a responsabilidade por aquelas instalações com tudo o que por ali havia; eram os equipamentos, as viaturas e os geradores, mais os tachos e as marmitas, sem esquecer os stocks de comes, o armazém dos bebes, os medicamentos, os unguentos e os xaropes, as caixas disto, os pacotes daquilo e toda uma multiplicidade de pinchavelhos, parafusos, insignificâncias e sei lá mais o quê. Até a responsabilidade pelas antenas de rádio exigia recibo. Só faltou fazer a entrega do ar grosso e sobreaquecido que ali se respirava. E tudo foi conferido, certificado, contado e recontado, verificado e confirmado, garantido e acertado. E de tudo foram passadas guias e recibos, tudo assinado e arquivado, em duplicado e triplicado, ficando os velhinhos livres de responsabilidades, que assim foram passadas para cima dos ombros dos maçaricos.
Paralelamente e com a mesma sintonia, decorria uma outra passagem de testemunho. Esta, de natureza declaradamente informal, ia decorrendo sem compromissos, sem guias ou recibos, ao ritmo da roda da cerveja que escorregava gargantas abaixo. Transmitiam-se conhecimentos, passavam-se experiências e recomendavam-se cuidados:
- Olha que as chanas são traiçoeiras!
Chamava-se a atenção para o poder esgotante da areia seca das picadas e suas peculiares artimanhas, explicavam-se as manias do cacimbo e a intensidade das chuvas diluvianas que se lhe opunham, falava-se da abundância de caça, da pose majestática das palancas, das características das gungas, da graciosidade dos songues e do galope desajeitado dos guelengues e dos caixotes. Explicava-se a cultura daquelas gentes, as peculiaridades dos seus múltiplos temores e superstições, as minudências e particularidades dos seus hábitos e tudo o mais que se foi aprendendo com o tempo. Tudo foi entregue, incluindo os putos que lavavam a roupa, algumas mulheres do kimbo e ainda os percevejos das camas, as moscas sarnentas e as melgas que não nos largavam por nada deste mundo.
Aos poucos, à medida que iam sendo passadas responsabilidades, cortavam-se ligações, libertavam-se tensões e alimentavam-se expectativas de melhores dias. Mentalmente dizia-se adeus a tudo aquilo que foi o nosso mundo, o nosso cantinho de aconchego precário durante aqueles meses de provações e sacrifícios. Todas as agruras daquela espinhosa missão se transformaram, num ápice, em passado e, com isso, perderam toda a sua importância e significado.
Por agora, o futuro imediato estava logo ali, ao virar da folha do calendário. Finalmente tinham chegado ao fim as caminhadas pela savana arenosa, as noites passadas ao relento e a exposição às frias noites do cacimbo. Não mais se acordaria debaixo de chuva diluviana e era certo o adeus definitivo às chanas lamacentas, aos quartos de sentinela, às rondas nocturnas e às incursões ao kimbo à procura do prazer fugaz do colo de fêmeas andrajosas e até a sempre desejada visita bissemanal do pequeno avião do Barros, deixou de interessar - o dia santo do correio perdera o seu sagrado significado na certeza de que os sempre esperados aerogramas azulinhos, trazendo notícias de casa, seguir-nos-iam para onde quer que fossemos sem terem de percorrer tanto caminho para nos encontrar. O lugarzinho que nos esperava, diziam, era bem mais aprazível e declaradamente pertinho da civilização.
Dez de maio do ano de 1973. O tão esperado dia chegou, finalmente. O almoço foi servido e engolido, mais do que degustado. A ansiedade interferia com o apetite e a aproximação da hora da partida apressava toda a gente. Foi um rebuliço de carregar sacos e malas, um corre‑corre para as viaturas, como se todos tivessem medo de perder a boleia que nos haveria de tirar dali para fora. Reservei um lugar na cabine de uma MAN e arrumei as tralhas sobre a carroçaria onde muitos já se haviam acomodado.
Duas horas da tarde, mais minuto menos minuto, iniciou-se a marcha, lentamente, uma viatura atrás da outra, iam saindo daquele quadrado de areia delimitado a arame farpado. Para trás ficava tudo aquilo que fora o nosso mundo nos últimos dezoito meses da nossa existência.
De tudo o que pertencia à Neriquinha apenas levámos connosco: o Dango, puto que, encontrado na terra de ninguém lá para os lados do esquadrão, foi apadrinhado pela companhia, o Candela, um puto barrigudo que, tendo aportado à Neriquinha no último Natal na sequência de uma operação qualquer, conquistara, com a sua simpatia, o carinho de todos, a gata chaninha que ninguém quis abandonar e uma gazela bébé que, indefesa, fora apanhada na mata e imediatamente convertida em mascote.
Pela primeira vez saíamos da Neriquinha para não mais voltar. Aquela viagem teria um só sentido. Nem adeus disse. Para quê? Aquela terra não era minha. Apenas estava ali de passagem.
Finalmente deixávamos de ser metecos em terra estranha. Outros acabavam de tomar o nosso lugar.

7 comentários:

Pedro Cabrita disse...

Excelente texto Egídio.
Parabéns.

Abraço

Pedro Cabrita

Egidio Cardoso disse...

Obrigado.
Às vezes sai, assim, sem custar muito. Noutras, a coisa custa.

Um abraço.

Anónimo disse...

Não há dúvida, este estará entre os melhores e mais inspirados textos que já teclaste!!!

Ainda bem que não enveredaste pela prosa lamechas e pouco verdadeira da partida de outros cronistas!

Uma recordação que a narrativa me trouxe à memória:
A "baixela" das messes era constituída por pratos e copos de pirex incolor e foi comprada à companhia que rendemos e passada por idêntico preço(?) aos "maiques". Depois do almoço do dia da partida estava a dita arrumada na prateleira da messe quando desabou estrondosamente. Creio que nada se salvou e valeu a circunstância de já estar liquidada a quantia acordada para e sua cedência.

Abraço

Morais

Egidio Cardoso disse...

A minha memória está mesmo danificada. Não me lembro desse episódio.

Anónimo disse...

Só mais um pormenor:

Cerca de metade da companhia seguiu via Nord no dia em que chegou o primeiro contingente. Não recordo qual o itinerário que tomaram (pode ser que alguém dê a informação em falta). Assim, o espaço disponível foi chegando para arrumar o pessoal. Os restantes, em que me incluo, saíram em "coluna" conforme relatas. Esperamos pela epopeia que já terás na forja.

Morais

A.R. disse...

Excelente, como sempre. Cumprimentos

Egidio Cardoso disse...

Obrigado. A ver vamos, se os temas que se seguem ajudam na inspiração