segunda-feira, 1 de abril de 2013

Vêm aí os maçaricos

Alongava-se o tempo passado na Neriquinha. E quanto mais se prolongava, o tempo, mais lenta parecia a marcha dos dias, não obstante a irritante constância dos ponteiros do relógio.
Quando fomos largados naquele minúsculo recanto das inóspitas terras-do-fim-do-mundo, dizia-se que, dentro de um ano, mais coisa menos coisa, seríamos transferidos para um lugar mais aprazível, já que parecia difícil aceitar a possibilidade de um ser humano viver por muito tempo em local tão desolado. E acreditava-se que assim fosse. Constava ter sido isso que aconteceu com a companhia anterior. Afinal, não teria sido bem assim; viemos a saber, mais tarde, terem penado mais de catorze meses aguardando ansiosamente que os fossemos render. Ainda me lembro da alegria esfuziante daquela rapaziada quando nos viram chegar atordoados perante o inesperado, ao fim de uma atribulada e interminável viagem que teve o seu epílogo na derradeira etapa, encafuados dentro da barriga do Nord Atlas desde a cidade do Luso à Neriquinha num indescritível voo sobre a savana.
Largaram-nos ali, desamparados, sem consciência do que nos esperava e sem qualquer noção do que nos rodeava. A paisagem à volta, pelo menos num primeiro relance, mostrava-se assustadoramente selvagem, numa estranha simbiose com a desolação das instalações que, plantadas no meio daquele deserto, compunham o aquartelamento militar que, a partir de então, nos havia de servir de morada.
Fomos mandados instalar naqueles barracões decrépitos e por ali andámos, habituando-nos ao que havia até quase não se dar por nada. Algum tempo passado e o pouco que se tinha já era conforto bastante face à agressividade de tudo o mais.
Gastou-se rapidamente o mês e pouco que restava de 1971, arrastámo-nos à torreira do sol e inclemências da savana durante todo o ano de 1972 e penetrámos em 1973 convencidos de que a nossa missão na Neriquinha estava perto do fim. Quando se completou um ano a calcorrear aqueles percursos areentos, a ideia de que faltava pouco para o adeus àquela vida de provação começou, embora sem grandes certezas ou alaridos, a assentar praça na cabeça de cada um. É verdade que não se viam sinais de que isso estivesse para breve, mas o incontido desejo de sair dali era mais forte, levando-nos ao autoconvencimento de que assim seria. Por mim, preferia acreditar estar por dias, a mudança.
O facto é que o tempo foi passando sem que a tão desejada notícia chegasse. O segundo natal passou disfarçado no meio de um calor de derreter, seguindo-se os dias, um a um num lento calvário sem fim à vista. Ao décimo quinto mês deixámos de pensar no assunto e já só alguns se entretinham a contar os dias.
A partir daí deixei de pensar nisso; não valia a pena, não adiantava nada e era por demais óbvio que o tempo, esse, continuaria a arrastar-se pastoso, rotineiro, monocórdico e entediante apenas entrecortado pelas visitas semanais do “Nord” e pela sempre desejada animação, materializada naquela espécie de epifania protagonizada pelo pequenino avião do Barros trazendo-nos, duas vezes por semana, o sagrado correio acondicionado dentro daquele pequeno saco de lona cinzenta.
Esgotada a imaginação para vencer tão desinteressantes dias, fui ocupando o tempo com rotinas já mais do que rotinadas, com aquela certeza de que a sandes de paio do pequeno­‑almoço teria de ser acompanhada de duas cervejas, o mesmo acontecendo ao almoço e ao jantar, sem contar com as que eram necessárias nos intervalos para mitigar a sede e amenizar o calor, já que a água não sabia bem e a cerveja não era cara.
Já perdera a conta aos jogos de cartas com que ocupava os tempos mortos, especializei-me em bisca, tornei-me perito em king e dei umas voltinhas pelo rami com umas passagens pela canasta sem esquecer as entediantes paciências e os duelos de crapô, que ali não havia lugar para esquisitices.
O facto é que tudo já me era familiar: identificava os cheiros fortes e característicos da savana, já conhecia de cor a música desordenada das grossas pingas de chuva embatendo com violência no telhado de zinco da camarata, habituara-me às sistemáticas mudanças da paisagem que as chuvas diluvianas pintavam de múltiplos tons de verde para de seguida irem sendo teimosamente repintadas de ocre com pinceladas de negro acinzentado das queimadas à medida que a época seca se instalava.
Mais dois meses e depois outro foi tempo suficiente para se perceber que, quando chove, não pede licença e que quando a chuva se vai, instala-se um duelo permanente entre o intenso e sufocante calor do dia e o cacimbo que durante a noite cobre as matas com um manto branco de gélida neblina, obrigando a procurar o conforto do cobertor acrescentado à roupa da cama por precaução.
Passados que estavam dezoito meses, já havia considerado perdida a guerra que movera contra os percevejos embora planeasse regar de novo a cama com gasolina e pegar-lhe fogo. Da primeira vez que utilizei essa estratégia consegui liquidar todos os que se albergavam nos recantos do catre, mas logo voltaram outros. Eram combativos e resistentes aqueles bichos mal cheirosos e peçonhentos.
E quando, mais uma vez, me dedicava à meticulosa operação de remendar os pequenos buracos da rede mosquiteira, tentando perceber como raio tinha aquele insaciável mosquito conseguido ultrapassar a barreira que eu julgava intransponível, caiu a tão desejada notícia: os maçaricos vinham aí.
A boa nova, embora há muito esperada, não deixou de ser surpresa. É que ela não foi antecedida de especulações ou sururus que o permitissem antever; aquela notícia chegou sem se fazer anunciar, como aliás quase tudo na tropa. Os segredos militares não se cingiam apenas àquilo que era de facto reservado. As ordens chegavam quando as hierarquias assim o entendessem e aquela, sendo uma boa notícia, não deixava de ser uma ordem:
- Preparem-se para a rendição.
Ordem ou não, isso foi coisa que nem preocupou ninguém. O que importava é que vinha aí o fim do nosso calvário e isso era o mais importante. Aposto que, nesse mesmo dia, muitos começaram a arrumar as suas tralhas; fazer as malas, como se costuma dizer.
Por mim, lembro-me bem, cancelei os projectos que mentalmente tinha agendado. Quem aí viesse que pegasse fogo à cama se quisesse livrar-se dos percevejos e que arranjasse uma rede mosquiteira nova e sem buracos, se não quisesse ter aquele teimoso mosquito a zunir-lhe aos ouvidos a noite inteira.
Afinal, vinham aí os maçaricos. Tudo o mais deixou de ter importância.

10 comentários:

Gabriel Costa disse...

Mais uma vez...5 estrelas. Com a chagada dos maçaricos, veio o prenúncio das Mabubas.
Há uma fotos sensacionais, que tem alguém (não sei se não serei mesmo eu) em que se vê a festarola e o arraial popular que foi a chegada dos maçaricos que nos renderam. Lembro-me do Braga (Azevedo)vestido de mulher e um outro (Comandos?) com uma câmara de televisão ás costas. Vê se encontras que melhorava o artigo.
Abraço

Egidio Cardoso disse...

Essas fotografias ficarão mesmo a matar no próximo episódio, aquele em chegam os maçaricos.
Espero que o Morais tenha essas fotografias, porque se fores tu, não há hipótese.

Um abraço

Anónimo disse...

Bela crónica sobre os "bons malandros" que fomos!

Interessante é a quantidade de pormenores que vais guardando e transpondo para a narrativa (esta palavra está muito "in") a forma como íamos iludindo a passagem do tempo. Recordo também o Mota no seu esforço de nos iniciar no jogo do "bridge". Até ficámos a "dar uns toques". Claro que nas Mabubas o jogo de cartas passou à história.

Vou mandar as fotos para o próximo texto.

Araço

Morais

Egidio Cardoso disse...

Até me admiro como consegui reter tanto pormenor por tanto tempo.
Ah! O bridge. Sim o Mota iniciou-nos nisso e lembro-me que chegámos a jogar noite dentro. Mas isso foi nas Mabubas.
Lá chegaremos

Pedro Cabrita disse...

Belo texto. O Egídio está a refinar.
Não sei se a comparação se adequa mas faz lembrar o vinho tinto a envelhecer no casco de carvalho americano; cada trago que se vai tirando a qualidade melhora a caminho da perfeição.

Claro que com este revisitar das nossas memórias outras nos assaltam. Apenas dois ou três apontamentos relacionados.
Mosquitos e percevejos.
Mas a mim saiu-me ainda um outro animal rastejante, que não afloraria à imaginação mais fértil.
Uma noite, quando me dirigi ao quarto para me deitar, não acendi a luz à entrada porque o quarto era logo ali a pouca distância. Senti no entanto que no escuro ia pisando algo crocante… Voltei a trás e acendi a luz. O chão estava pejado de pequenos animais que se movimentavam ligeiros mal sentiram a luz acesa. Não os identifiquei de imediato, nem estava habituado a tantos visitantes nocturnos do género. Baixei-me e observei melhor. Eram dezenas; eram escorpiões. E aquela foi uma noite de caça aos escorpiões e uma noite de insónia, sempre na dúvida de se os teria apanhado todos.

O frio.
África é sinónimo imediato de calor. Calor tórrido, e bem o provámos. Mas o que muitos têm dificuldade em acreditar é que o cacimbo interior em África é gélido. Não tínhamos aparelhagem para medir a temperatura, mas recordo que em Mavinga, ali ao nosso lado, foram registados 4º negativos que a rádio anunciou logo pela manhã. Fiquei com esse registo que, com alguma dificuldade, tenho relatado a amigos meus que me olham de lado quando o refiro.

A rotação.
O Egídio tem razão. A notícia da nossa rendição foi abrupta e praticamente de surpresa. É verdade. Mas lembram-se certamente quantos boatos correram quanto aos locais para onde constava que iríamos rodar. Maquela do Zombo e Moçâmedes, são duas das que me recordo. Não sei donde surgiram nem como surgiram. Alguém terá tido “informação privilegiada” e colocado as notícias a circular. E dessa não poderei ser acusado. O nosso 1º Sargento Pinto bem me perguntava se sabia de alguma coisa. Ao que lhe respondia invariavelmente:
- No dia em que eu souber de certeza para onde vamos anunciarei de imediato.
E assim foi. Daí o “… Preparem-se para a rendição…!”

P.C.

Egidio Cardoso disse...

Meu caro Cabrita.
Quanto à qualidade do texto e a ser como diz, parece que bem se pode dizer que se aprende a escrever, escrevendo.

Temperatura: Como bem sabemos as grandes amplitudes térmicas (diferença entre o dia e a noite) são próprias dos climas desérticos, como era o caso. Lembra-se de Mavinga e eu lembro-me que, numa operação lá para os lados da Neriquinha Velha, quando o sol começou a despontar, as gotas do orvalho nas ervas estavam transformadas em pequenas esferas de gelo.

Quanto às bocas sobre os locais de destino, não sei se sabe, mas Maquela do Zombo foi o local para onde rodou a companhia que nós rendemos (a C.Caç. 2778) e por isso a minha convicção de que essa hipótese fora alvitrada quando chegámos a Angola.
Não fomos para lá. mandaram os velhinhos para os compensar como aconteceu connosco ao nos colocarem nas Mabubas.
Enfim, malhas que o destino tece.

Anónimo disse...

Olá EGÍDIO,boa noite.
voltei e visitar este "interessante sítio". É com alguma emoção que estou a recordar esses tempos passados...... Permitam-me uma informação mais precisa relativa ao último comentário. A minha companhia (2778) que a vossa rendeu foi de facto para a zona militar de Maquela do Zombo. Mas, em Maquela ficou instalada somente a CCS. A 2778 foi colocada na Fazenda Costa, que de fazenda apenas tinha o nome. ficava a cerca de 35 Kms de Maquela (também conhecida por "mazela do congo")e tínhamos dois pelotões destacados, um na Quimbata que era um posto de fronteira para a Rep. do Zaire e outro no Mavoio local das minas do cobre (ECA- Empresa do Cobre De Angola).
Numa passagem pelo Google Earth, poderão ver umas fotos que por lá coloquei(jferreira47).
Como é bem visível nessas fotos a fazenda costa era apenas um aquartelamente com umas "casotas" em madeira no meio de nada. Da fazenda haviam umas bananeiras perdidas no meio do capinzal e no vale uma zona de cafezal. O "Sr. Costa", que nunca conhecemos vivia no Zaire e visitava este local 2 vezes por ano, uma para desmatar o cafezal e outra para fazer a respectiva colheita.
A Quimbata era um sítio interessante devido ao movimento de camiões que passavam nos serviços de fronteira para abastecimento ao Zaire dum produto em boa quantidade, peixe seco, proveniente dos lagos das Lundas. Além do n/ pelotão haviam 3 elementos da PSP que tinham a seu cargo o controle de fronteira.
No Mavoio, local das minas de cobre havia uma mina velha que estava encerrada desde 1961(inicio da luta armada), e estava nessa ocasião (1972)a ser aberta uma nova mina sob controle duma empresa Japonesa e a CUF. Maquela que podem ver em algumas fotos, tinha um bom quartel e já tinha uma rua principal com algum comércio, além das "forças vivas" da terra..., Posto administrativo, Correios, Fazenda Pública, Hospital e um Mercado Público, etc.
1abraço
Jrferreira (Ex- Fur. Mec da 2778)

venancio disse...

Sr.JrFerreira,passados 40 anos da sua presença aqui nestas paragens minas do mavoio,estou eu mesmo agora em trabalho de prospeção mineira,tenho algumas fotos da atual mina mavoio

Anónimo disse...

Meu Caro VENÂNCIO
Folgo muito em saber que as minas do MAVOIO, voltam a ter vida própria.
Quando por aí passei de Nov71 a DEZ72, havia a "mina velha", que estava encerrada desde 1961. Dizia-se que tinha sido fechada quando do início da guerra com algumas pessoas lá dentro.....Não sei se verdade ou boato ???

Quando aí chegamos, estava a ser aberta a "mina nova" (foto da boca da mina no Google Earth-by jferreira47). Dizia-se também que o filão de minério era duma qualidade extremamente alta, chegando a atingir valores da ordem dos 37% de concentração.

Actualmente mantém-se somente essa mina ou há mais alguma?
Aquele vale muito verdejante tinha uma paisagem muito interessante naquela época, caso tenha algumas fotos gostaria de ver como está a zona.
Abraço
J.Ferreira
jose.rodrigues.ferreira@sapo.pt
Ex-Furr. mec. da C. Caç. 2778

Manuel Martins da Silva disse...

Gostaria também de ler episódios de guerra, e não só dos 18 meses de férias passados na N'riquinha.
Fui furriel miliciano (40,5 meses obrigatório)em Angola e sou apaixonado por ler histórias guerra no antigo ultramar português. De St. Ant. do Zaire, passando por Luanda, Lobito, Moçamedes, Porto Alexandre, Cossa, Dundo, Portugália, Luso, Malange, Nova Lisboa, Sá da Bandeira, Vila Roçadas, Cuamato, Ruacaná e Pereira d'Eça, por aqui passei. 'E verdade que só não conheço as "Terras do Fim do Mundo" (Cuangar, Dirico, etc.)
Eng. Manuel Martins da Silva - ex-Furriel Miliciano