sábado, 1 de setembro de 2012

MARABUNTA

É frequente ouvirem-se referências a África que reflectem fobias por bichos. Não exactamente os de grande porte que constituem a sua rica fauna, mas aqueles, os muito pequeninos que se movimentam pelos cantos mais impensáveis, sejam eles rastejantes, voadores ou aquáticos.
Tive oportunidade de confirmar que a savana do sueste angolano é rica em insectos e outros bichos, muitos dos quais eu nunca antes havia visto. E todos eram especiais, próprios daquelas matas. Mesmo os que pensávamos já conhecer eram diferentes, fosse pelo tamanho, ou pelas suas peculiaridades, comportamentos e características. Por exemplo, gafanhotos são gafanhotos em qualquer parte do mundo, não obstante possam apresentar-se sob múltiplos aspectos. Os que por ali esvoaçavam pareciam-me sempre diferentes; no mínimo mais coloridos. As moscas, para além de existirem aos milhões, variavam em tamanho cor e feitio, desde as muito grandes e multicolores até às mais pequeninas e cinzentas. Surgiam do nada, zumbiam como satélites à volta da cabeça e entravam pelo nariz e boca, sugadas pelo simples respirar. A verdade é que infestavam as matas tornando-se especialmente irritantes no auge da canícula, exactamente quando os pulmões, carenciados de ar pelo efeito do calor e do esforço, mais sofregamente bombeavam o oxigénio necessário.
Depois eram os mosquitos, muitos. Parecendo todos iguais, eram diferentes, congregando várias estirpes que nos infernizavam a vida com as suas ferroadas. Proliferam e multiplicam-se nos lodaçais das inúmeras chanas pantanosas que caracterizam a savana do Cuando Cubango e, mal caía o lusco-fusco, levantavam-se em bandos, zunindo à nossa volta à cata de sangue quente e nem as roupas os detinham. Nas matas, trespassavam a dureza do camuflado e na caserna havia sempre um ou outro que conseguia furar a protecção da rede mosquiteira. E acreditem que bastava um para nos lixar a noite.
Depois vinham as espécies rastejantes, onde se contavam as mais exóticas centopeias, escaravelhos multicolores e outros bicharocos estranhos que se passeavam por entre a roupa, mal nos estendêssemos pelo chão procurando recobrar as forças consumidas em caminhadas sobre as areias quentes e soltas que caracterizam o solo de tão inóspitas paragens. Certa noite, enquanto dormia, algures num ponto qualquer da mata, uma dessas criaturas, certamente peçonhenta, entrou-me no ouvido. Inconscientemente devo ter-me coçado. O facto é que, no dia seguinte, uma estranha dor não me largava. A visita que fiz ao enfermeiro, após o regresso ao conforto da Neriquinha, permitiu descobrir uma infecção extensa. Ainda hoje não sei exactamente que bicho me picou, mas lembro-me perfeitamente do estrago que causou e das dores que tive de aguentar enquanto o Pinto, o furriel enfermeiro, procedia a uma desinfecção meticulosa, escarafunchando o ouvido até ter a certeza que tudo ficara desinfectado, tratado e limpo.
Havia ainda as sanguessugas que se escondiam em qualquer lugar onde corresse água, coisa que por ali não faltava, as carraças que se desprendiam do gado, os percevejos, as pulgas, a matacanha, pequenas larvas que, dizem, se infiltravam sob a derme e toda uma variedade de ácaros, opiliões e outros seres estranhos que provocavam micoses, irritações, comichões e alergias várias. Enfim, seres impróprios para coabitarem com o ser humano.
Falta ainda falar das formigas. E por ali havia muitas e para todos os gostos. Algumas estranhas, na sua maior parte inofensivas, mas outras não. Havia-as pequeninas como todas as que conhecemos, outras um pouco maiores e ainda as grandalhonas, cada uma calcorreando afanosamente os carreiros que conduziam ao seu mundo escondido algures nas entranhas da terra ou no interior de um qualquer tronco caído. Por exemplo, a salalé, formiga alada de tamanho significativo era, no meu entender, um bicho espantoso. Construía morros cónicos de dimensão considerável, cuja altura chegava a ultrapassar dois metros, autênticas fortalezas capazes de resistir a todas as intempéries ou ataques; derrubar um morro de séléle, implicava o uso de picareta e um tiro de G3, mesmo que a pouca distância, não o conseguia trespassar.
Por sorte, eram todas inofensivas. Bem, todas, excepto umas vermelhinhas cuja enorme cabeça, agarrada a um abdómen visivelmente menor, lhes conferia um aspecto caricato e ameaçador. Não recordo o nome por que eram conhecidas mas, sempre que as via, lembrava-me da marabunta que deu nome ao filme de Byron Haskin no qual Charleton Heston lutava contra hordas de formigas assassinas.
Certa vez, ali para os lados da Neriquinha Velha, tive oportunidade de verificar a ferocidade destes pequenos seres. Caminhávamos ao longo de uma extensa chana no cumprimento de mais uma das várias operações em que participei. O calor era, digamos, suportável mas, ainda assim, acima dos trinta graus o que, conjugado com o elevado grau da humidade do ar, fazia com que o céu parecesse pesar sobre os ombros, tornando ainda mais penoso o caminhar. Não retenho exactamente qual era o objectivo da acção, mas suponho que, como tantas outras, se destinava a percorrer determinado itinerário numa qualquer missão de patrulhamento. Iniciáramos a caminhada bem cedo palmilhando chanas e matas durante toda a manhã. No momento, seguíamos pela chana evitando o terreno areento da mata onde as botas se enterravam dificultando a marcha e exigindo o redobrar do esforço. Ainda assim, todo o grupo já estava de rastos, exausto, com os músculos dormentes e já descoordenados a obrigarem a uma paragem.
Deixámo-nos cair por ali, cada um no local onde se encontrava, aproveitando a fresquidão da erva verde e da refrescante humidade da chana que, no momento, talvez porque o céu estivesse encoberto, nos pareceu mais agradável do que a sombra das árvores próximas. Retiraram-se dos sacos as latas da ração de combate que se foram abrindo ao som do surdo tilintar das facas de mato cortando o metal e, sem pressa, o petisco sensaborão foi sendo mastigado juntamente com as côdeas do pão duro, cozido na véspera e já esborrachado pelo peso de tudo o que cada um enfiara no saco.
As latas vazias, cheirando a molho ou untadas de óleo, foram sendo depositadas em pequenos montículos, já que a regra impunha que fossem enterradas de modo a não ficarem visíveis sinais da nossa passagem. Mas isso ficaria para quando se iniciasse a marcha, coisa que não levaria mais do que um ou dois minutos já que que o terreno de areia solta tornava a tarefa fácil. Por enquanto, com o estômago composto, preguiçávamos jacentes sobre as ervas, alguns dormitando num quase inútil exercício de preparar o corpo para a inevitável e extenuante caminhada que duraria até ao anoitecer.
A princípio, ninguém deu importância, mas o facto é que se avistou uma das tais temíveis formigas e logo a seguir outra e mais outra. Era bicho que já se conhecia e a cor vermelha associada ao tamanho da cabeça dissipava qualquer dúvida que pudesse existir. E isso significava manter distância das suas ferozes pinças. Sabia-se que tinham o hábito de subir pelas pernas e morder quando se sentiam apertadas e creiam que não eram simples picadinhas; quem estivesse sentado, levantar-se-ia de um salto caso fosse vítima de uma só dessas picadas. Inicialmente, a maioria do pessoal não deu pela sua aproximação; uns dormitavam e outros simplesmente preguiçavam estendidos. Só uns quantos, mais atentos ou despertados por um ferroada inopinada, se aperceberam dos bichos, não lhes dando, contudo, muita importância; simplesmente procuraram afastar-se do seu caminho que notoriamente apontava às latas abandonadas pelo chão.
Mas, sem que nos dessemos conta, o cenário foi-se alterando e, ora um ora outro, começou a sentir o efeito das picadas, ao ponto de alguém ter de despir apressadamente as calças para melhor sacudir uma meia dúzia delas que, subindo pelas pernas, atingira zona sensível. O facto é que ali já não era possível estar. O descanso foi abruptamente interrompido e a debandada foi geral. Arrumaram-se as coisas afastámo-nos uns metros da posição em que estávamos, e mudámo-nos para a orla da mata, longe das formigas, aí permanecendo até que se esgotasse o tempo que havia sido definido para o descanso.
 Chegada a hora, ajeitaram-se os equipamentos e fizeram-se os últimos preparativos para o reinício da caminhada. Faltava apenas enterrar as latas tarefa que não ficara esquecida. Aproximámo-nos do local onde as deixáramos. Surpreendentemente estavam completamente tomadas pelas formigas formando uma espécie de massa compacta qual cobertura viva e fervilhante de milhares de bichos em frenesim. Conhecendo-se a sua ferocidade, não era aconselhável mexer-lhes. Ainda se alvitraram duas ou três soluções mas ninguém se atreveu a esboçar uma qualquer tentativa de aproximação. A decisão não podia ser outra, abandonar o local o mais depressa possível deixando as latas para as formigas.
Daquela vez, ficou por cumprir uma das regras impostas pela segurança; as latas não foram enterradas.
Ao cair da noite, chegado o fim da operação, quando já quase ninguém se lembrava do sucedido, ainda julguei sentir uma ferroada nas partes baixas. A savana é, sem dúvida, um local hostil mesmo que apenas com a contribuição de pequeninos seres.

8 comentários:

Pedro Cabrita disse...

Mais um excelente texto do Egídio e um repositório de algumas teias da nossa memória que, mesmo tratando-se de bicharada incómoda, nos aflora sempre um sorriso nostálgico, passados que vão 40 anos.

Duas breves recordações em forma de complemento.

Não mais esqueço aqueles mosquitos da operação efectuada no célebre "Esquadrão", quando à noite nos procurávamos proteger com o cachecol mosquiteiro (um equipamento que servia para as duas funções; cachecol para o frio e rede mosquiteira) e os ouvíamos a perfurar a rede e entrar mesmo em busca de poiso e ferradela sanguinária...
O som que ainda me chega fazia lembrar uma broca de dentista, o que arrepiava duplamente; a perspectiva de uma ferradela e a recordação pouco agradável do dentista..., ainda por cima em local onde a recordação do dentista não seria expectável.

A segunda recordação reporta-me às matas dos Dembos (Norte de Angola) onde estagiei durante 4 meses antes de assumir o comando da companhia.
E a lembrança é mesmo da terrível formiga vermelha cabeçuda que era ainda maior e mais feroz que aquelas encontradas no Leste.
Tendo em conta a densidade das matas do norte as caminhadas eram sempre efectuadas em fila por entre silvas, mata densa ou capim.
Sempre que os primeiros da fila detectavam no chão um carreiro de formiga vermelha que atravessava o trilho avisavam a coluna da sua localização
Todos avisados, a passagem sobre o carreiro era feita em corrida rápida no sentido de evitar que alguma formiga tivesse oportunidade de se agarrar às botas.
Manobra infrutífera.
Dez a vinte por cento dos militares eram mesmo atacados sem que se entendesse como era possível as formigas apanharem boleia nas botas e a seguir penetrarem na calça do camuflado, apertada em baixo com um cordão, precisamente para evitar tais incidentes.

Em segundos (literalmente em segundos) as ditas formigas subiam pelas pernas acima e só paravam onde estas se juntam e por ali ficavam ferradas com uma tal gana que me lembro de muita gente de calças na mão e cuecas a meia haste num sofrimento atroz.
A ferradela era de tal sorte que o premiado, procurando livrar-se de tão feroz inimigo, conseguia arrancar o corpo do animal, mas a cabeça e as pinças ficavam bem cravadas em pele tão sensível e aparentemente tão apetecida pela formiga vermelha africana... Feitios... diria o Solnado...

PS
Depois desta passagem por bicharada tão diversa ficam a faltar as cobras...
E que histórias com as cobras...

Egidio Cardoso disse...

Pois é! Caminhar na mata não era pêra doce. E não apenas pela estafa, dificuldades do terreno e seus acidentes e peso dos equipamentos que tínhamos de transportar.
Aqueles minúsculos seres chateavam mais do que uma manada de búfalos que se atravessasse no caminho.
Em última análise, estes sempre podiam ser enxotados; qualquer tiro, mesmo disparado para o ar, punha-os em debandada. Acertar numa formiga com um tiro de G3 é que é tarefa impossível ... para além de inútil

Gabriel Costa disse...

E os grilos!? Eram enormes e faziam um barulho do caraças. Um dia apareceu um destes "sinatras" a cantarolar esganiçadamente durante horas no nosso dormitório. Foi o Neto que o caçou e jurou que ía comê-lo, por vingança. Tinha para aí 5 ou 6 cm de comprimento e era de cor das nossas cigarras, esbranquiçado. O Neto mirou-o e disse: "P´ra cantares tão mal, tinhas de ser "branco"!". Quanto a comê-lo, nada! Meteu-o pela sanita e puxou o autoclismo.

Anónimo disse...

O teu interessante texto fez-me recordar outra história de formigas:

Uma bela tarde descobri que a chão vermelho da parada na N'riquinha era um imenso formigueiro!

Após uma chuvada e com o
reaparecimento do sol, começa a sair do chão, primeiro uma fiada de formigas de asa, e depois outra e outra, e que voavam para longe ao sabor da brisa. O fenómeno intensificou-se ao ponto de ser já uma nuvem de formigas voadoras! A cena não durou mais que um quarto de hora e no chão ficaram milhares de formigas que, entretanto, perderam as suas asas.

Não devo ter sido o único a presenciar o espectáculo, pode ser que mais alguém se lembre e possa acrescentar mais pormenores ao episódio.

Óscar Morais

Gabriel Costa disse...

Caro Morais
Recordo-me perfeitamente desse dia. Eram centenas de formigueiros, que desataram a lançar formigas de asas ao mesmo tempo. Aquilo formou uma núvem enorme cinzenta que se deslocava num só sentido. Creio que tenho fotos desse acontecimento que mostra o chão coberto de formigas desasadas.

Egidio Cardoso disse...

A minha memória anda a pregar-me partidas. Só me recordei do episódio depois do Morais o referir.
Lembro-me perfeitamente da núvem de formigas, algo que nunca vira e que nunca mais voltei a ver.
Deve haver para aqui algum alçapão a vedar-me o acesso ao arquivo.
Bem como já me começa a faltar assunto sobre a Neriquinha, avivam-me lá o neurónios. Lembrem-me de alguma coisa para contar, caso contrário vejo-me obrigado a partir para as Mabubas.

carlafariapt disse...

Definitivamente o vosso "inimigo" nesta terra inóspita e para lá que quente e húmida era a bicharada, em particular a formigagem!!! ao longo da leitura pelo blog até achei estranho não falarem das tão repelentes baratas, isto porque nesse local há uma conjugação perfeita para as mesmas: calor e humidade... a não ser que não fossem presença assídua por faltar uma outra condição essencial: a sujidade :)
Aquela foto no picaroto terá constituído uma espécie de fuga à bicharada???!!!

Egidio Cardoso disse...

Não seria bem assim: os bichos, todos eles e não apenas estas minúsculas criaturas, eram apenas uma pequena parte dos nossos problemas.
Quanto às baratas, não me lembro, mas certamente que nas matas não havia; são bichos da cidade.
Subir até ao topo do "picaroto" não foi fácil. Mas foi apenas para a fotografia e não para fugir do que quer que fosse.