segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Serviços e serviçais

Tropas, longe da família, precisam de alguém que lhes trate da roupa. Pelo menos naquele tempo era assim e penso que as coisas ainda não mudaram; haverá sempre que encontrar alguém para lavar a roupa, passar a ferro, coser botões, remendar rasgões e cuidar um pouco de tudo aquilo que, até então, era tarefa das mães de mancebos que, de repente, se viam privados desses luxos. E não era preciso procurar por elas. No início de cada recruta, apareciam nas imediações do quartel oferecendo o serviço aos recém-chegados.
Durante a minha recruta, nas Caldas da Rainha, uma velhota que vivia no centro da cidade, tratava-me da roupa e por uns cobres a mais disponibilizava um quarto lá para as águas-furtadas onde, num ou noutro fim-de-semana, pernoitava apenas pelo prazer de fugir daquela sensação de prisão que o quartel transmitia.
Em Tavira, para onde me mudaram acabada a recruta, foi-me recomendada uma senhora que, por um valor que lhe permitia compor o orçamento familiar, de tudo se encarregava, também disponibilizando um quarto onde, aos fins de semana, pernoitava fugindo ao rigor da disciplina do quartel e sem acréscimo de preço. Nunca houve problema com roupa lavada e passada. Bastava deixá-la no quarto que um ou dois dias depois aparecia lavada, engomada, cheirosa e arrumadinha em cima da cama. Só era preciso marcá-la com uma sinalefa qualquer para que não aparecesse misturada com a do camarada do lado. Ainda hoje guardo um lenço de mão, velhinho, muito usado e quase transparente pelo uso, exibindo as duas cruzes vermelhas bordadas num canto a recordar-me esses tempos.
O facto é que a tropa mudou-me para o Algarve, mas não notei grande diferença quer na forma quer no serviço prestado. Apenas uns quantos pormenores os distinguiam, sinal evidente de que onde existissem estruturas militares se instalara uma rede organizada que oferecia serviços a clientes que mudavam de três em três meses.
Quando cheguei aos confins do território angolano, largado como simples desterrado no meio de nada, nem me ocorreu pensar em procurar quem me tratasse das roupas. No Rivungo, onde passei os primeiros três meses da minha longa estada na imensa savana africana, foi sem surpresa que uma mulher, digna representante da etnia Ganguela e com filho ensacado às costas e tudo, me foi indicada pelo moço da messe para, a troco de uma bagatela, me tratar da lavagem da roupa. Sim que quanto a coser botões e tratar dos remendos se encarregaria o Máquina, de forma prestimosa, competente e gratuita. Afinal o homem trabalhava para nós e não se sentia confortável a cobrar extras por tão pouco. Quanto à mulher, apenas sei que esfregava a roupa sobre um bidão tombado numa curva do rio, já que por ali nunca ninguém se lembrou de arranjar um tanque apropriado e pedras não havia.
Quando me mudei para a Neriquinha, passados três meses no Rivungo, rapidamente me apercebi que ali as mulheres não lavavam roupa. Estavam demasiado ocupadas nas suas tarefas de cuidar da lavra, das lides domésticas, de bater o pilão na demorada tarefa de transformar grão em farinha, de colher lenha na mata e transportá-la à cabeça pelos sinuosos carreiros num vai e vem diário, na preparação da parca ração que constituía a alimentação de gente habituada a pouco, no cuidar dos filhos - dos mais pequenos que os crescidotes já cuidavam de si. A verdade é que as mulheres não tinham por hábito ultrapassar a linha do arame farpado que separava o kimbo da área ocupada pela tropa.
Mas não os putos, especialmente os crescidotes, entre os doze e os quinze anos. Na sua maior parte, ocupavam-se em tarefas as mais variadas. Onde houvesse algo em que pudessem ajudar, lá estavam eles, incansáveis, sorridentes, prestáveis, uns mais atrevidos que outros. Faziam tudo o que lhes pediam a troco de uma refeição a horas certas, mais rica do que o pirão com nada, amassado em tachos mal lavados, negros de fumo pelo tempo que passavam sobre um lume avivado à força dos pulmões de quem tinha por missão manter o chama viva, mesmo os mais pequenitos.
Comecei a contá-los: Um ou dois na messe ajudando a servir e transportar os pratos sujos para a cozinha; outros dois ou três na enfermaria ocupados nas limpezas, uns tantos na mecânica, um dos quais, o Vicente, que já quase percebia tanto da função como alguns dos mecânicos encartados; depois mais dois na padaria, uma meia dúzia na cozinha, três ou quatro na horta, mais um aqui outro acolá, enfim, um corrupio de serviçais para tudo o que fosse preciso.
Finalmente, uma chusma deles encarregava-se de tratar da roupa - havia soldados que tinham um puto em exclusivo para lhes tratar de tudo. Estavam dispersos, não se dava por eles, mas todos juntos eram muitos, alegres, vivaços, contentes por terem comida garantida e receberem alguns tostões em troca da prestação de serviços a soldados que a tal nunca tinham sido habituados.
Na camarata dos furriéis havia dois. Faziam as camas, varriam o chão e lavavam a roupa. Sim! Quem nos tratava da roupa eram dois putos imberbes que dividiam entre si os furriéis da companhia: O João a quem de quando em vez o outro chamava de Muhala Cassumbi e o Manjolo que, dada a semelhança fonética, passou simplesmente a ser chamado por Major.
Tratavam com desvelo das nossas roupas, lavando-as nuns tanques lá para os lados do Kimbo e devolvendo-as ao fim da tarde, limpas, impregnadas do perfume fresco do sabão azul e toscamente dobradas. Não vinham passadas a ferro que isso era coisa que ali não havia e, verdade seja dita, tal luxo era totalmente dispensável. Aliás quando volvidos muitos meses saímos daquele exótico lugar para um mais aprazível, até estranhei quando me entregaram a farda lavada, passada a ferro e cuidadosamente dobrada.
Na verdade, naquelas paragens isso era coisa inútil. A roupa sujava-se a ritmo alucinante, apenas importando que fosse lavada amiúde. Tão frequentemente que ao fim de dezoito meses de Cuando Cubango, um dos meus camuflados estava parcialmente transformado em franjas e eram mais os remendos e os pespontos que tecido. E de tudo isso tratava o João, dos dois, o que se encarregava das minhas coisas. Lavava a roupa, punha-a a secar dependurada na cerca de arame farpado que limitava o aquartelamento e quando algo se rasgava ou descosia, munia-se de agulha e linha, sentava-se na borda da cama, e com trejeitos de aprendiz, língua de fora a denotar a concentração e o esforço, remendava tudo, reparava as costuras desfeitas voltando a entregar-me um camuflado de novo pronto para chafurdar na lama das chanas em mais uma andança pela mata, de onde regressava ensebado com a mistura de suor e pó, untado com o molho gorduroso das latas de ração de combate, a exigir uma esfrega prolongada pelas mãos do João.
Um dia, durante uma demorada e extenuante operação lá para os lados do Chiúme, as calças do camuflado cederam totalmente pelas costuras, transformando-as numa espécie de máxi-saia. Regressado ao aquartelamento, comecei a pensar na melhor forma de resolver aquilo. Teria de pegar numa agulha e com paciência e tempo tentar refazer as costuras destruídas. O João levou as calças para lavar e nem me apercebi que, como era hábito, não as entregou ao fim da tarde. Dei com ele, no dia seguinte, de agulha na mão, às voltas com as costuras.
Ainda o interpelei duvidando que fosse capaz de dar conta da tarefa. Descansou-me, com um convincente: - Eu faço.
Nunca mais me preocupei com o assunto, embora aquele fosse, dos dois camuflados que possuía, o que estava em melhores condições. Vinha-o preservando, poupando-o às missões mais desgastantes de forma a chegar ao fim da comissão sem ter de comprar outro.
Quando olhei o camuflado cuidadosamente dobrado em cima da cama, conclui que, afinal o puto tinha dado conta do recado. Desdobrei-o, olhei as costuras e com dificuldade, contive o riso. As costuras estavam de novo unidas e voltavam a ter o aspecto de calças, mas tinham sido remendadas com uns pontos largos, grosseiros, bem visíveis. O João coseu-as como se cose uma saca de serapilheira, com uma total falta de jeito mas denotando uma persistência admirável. Creio que ficou vaidoso por ter sido capaz de tal tarefa.
Com putos assim, quem precisava de mulheres para nos tratar da roupa?

7 comentários:

Anónimo disse...

A expressão "muhala cassumbi" eram apelidos com que o João e o Major, muito alegremente, se atribuiam mutuamente. Durante uma dessas paródias perguntei-lhes a razão de tal brincadeira, ao que os gaiatos responderam que eram apenas "galinha que rapa no chão". Os putos brincam da mesma forma em todas as latitudes...

Óscar Morais

Egidio Cardoso disse...

Ainda bem que a memória do Morais permite repor aqui a verdade.
Já não sei precisar se é pelos anos que entretanto já passaram se simplesmente nunca me apercebi do significado das palavras "muhala" e "cassumbi".
Bem que eu estranhava o facto de o nome do João ter três palavras e o do Major apenas uma.
Provavelmente o Manjolo era mais enfático na forma como apelidava o João de "galinha que esgravata no chão"

Gabriel Costa disse...

Eram verdadeiros artistas de lavandaria!
Ainda hoje estou para saber como era possível fazerem desaparecer as nódoas de óleo e massa consistente, que apanhava na "ferrugem"!
Estes habilidosos, esfregavam as roupas com uma folha de cacto, que dividiam ao meio, fazendo dela um pedaço de "sabão"! Desaparecia tudo!
Tenho saudades destes putos, carago!

Anónimo disse...

... BORA VÊ-LOS...?!?!?!

PC

Anónimo disse...

Na minha passagem por aquelas bandas - NRiquinha - Os mesmos putos continuaram com a sua prestação de serviços, embora os aqui referidos (Muahla Majolo)não sendo um dos meus "contratados" mas o Xafila. Com eles brinquei e convivi. Permaneciam grande parte do tempo no aquartelamento onde várias vezes até comiam.Eram também o elo de ligação com o nativos do Kimbo servindo por vezes de interpretes e na busca de algo que pudesse ser adquirido pela tropa , ali no aldeamento. Uma das coisas que me fazia confusão era o facto de os miúdos que lavavam as roupas de vários militares, quer oficias, sargentos e até alguns praças. Toda aquela amálguema de camuflados, meias e demais, nunca desaparecia nada ou havia trocas das mesmas. Tudo batia certinho - o seu a seu dono.Tudo bem lavado (dentro do possivel , atendendo às condições existentes)dobrado e colocado em cima da n/cama, que também era "feita" por eles. Se não me falha a memória o "salário" era cerca de vinte escudos semanais.
Abraço E.Cardoso.
Fernando Simões

Anónimo disse...

Excelente texto, a reviver factos passados e nunca esquecidos.
Estive em Moçambique de 1967 a 1969.
Um abraçp
José Monteiro
www.batalhaocacadores1916.co.cc

Egidio Cardoso disse...

Obrigado pela visita ... e pelas palavras.
Como deve ter reparado, o endereço do vosso blog é recomendado no nosso, com link directo.
Quanto às memórias, costumo dizer qua há coisas que nunca se esquecem, especialmente se tiverem sido parte importante das nossas vidas. De facto, a guerra de áfrica marcou diversas gerações de portugueses, onde se incluem a sua, a minha, outras antes das nossas e outras depois.

Um abraço