quarta-feira, 1 de junho de 2011

GASTRONOMIA

Não sei como é hoje. Naquele tempo, alimentar tropas era uma tarefa complicada. A verba era escassa, a janta nunca estava ao gosto de todos, a variedade não abundava, a imaginação dos cozinheiros escasseava e a falta de jeito da grande maioria agravava tudo. Eram homens formados à pressa, escolhidos com base em critérios que nunca cheguei a perceber. Creio que poucos deles alguma vez tivessem ido além do estrelar um ovo. A verdade é que a tropa transformava pedreiros, carpinteiros, jardineiros e afins em cozinheiros temporários que, após cumprido o serviço militar voltavam às suas actividades iniciais.
Se transportarmos tudo isto para a realidade da Neriquinha as coisas pioravam. A cozinha não ajudava, o combustível era lenha colhida na mata, os tachos eram negros e grandes e o calor tornava a tarefa do cozinheiro um martírio. A agravar tudo isto, os ingredientes escasseavam, a ração era parca e nem pedras havia que permitisse confeccionar a sopa da dita. Na verdade a variedade do rancho oscilava ente a massa com carne e a carne com massa substituída de tempos em tempos por feijões. Bifes, nem vê-los e o peixe era indesejado. De vez em quando, lá vinham umas salsichas, uma feijoada com uma ou outra rodela de chouriço barato, umas ervilhas enlatadas e pouco mais. Ah! havia ainda a dobradinha. O ingrediente chegava seco, desidratado, em forma de pequenos pedaços parecidos com flocos que inchavam quando postos de molho. Dobradinha com feijão ornamentada com uma colherada de arroz, era assim um dos petiscos que permitia desenjoar da massa mas que não nos livrava dos feijões que engrossavam o molho com aspecto amarelado de cola líquida condimentada com o chouriço estrategicamente misturado para dar gosto e onde os mais gulosos ensopavam o pão deixando muito pouco para os putos que ajudavam na lavagem dos pratos.
O culpado de tudo isto, dizia-se, era o Vagomestre. O Morais, sendo o furriel responsável pelos “comes” levava com as culpas de tudo. Se a comida não agradava maldizia-se o Morais e se os feijões estivessem rijos alguma culpa teria de ter. E quando, perante o ram-ram repetitivo da ementa, lhe perguntávamos o que teríamos para o almoço, respondia invariavelmente:
- Surpresa!
Na verdade, a tarefa do vagomestre não era fácil: apenas dispunha de uma verba de vinte e dois escudos e meio para alimentar diariamente cada homem. De facto, servir três refeições diárias por apenas vinte e dois e quinhentos era obra a exigir dotes de prestidigitador, tanto mais que os ingredientes não estavam disponíveis. Supermercados não existiam, nem perto nem longe e o reabastecimento tinha uma periodicidade mensal através do MVL proveniente de Serpa Pinto que em viagens que levavam mais de uma semana, nos trazia os secos considerados suficientes para um mês (batatas, arroz, massa, dobradinha desidratada, enlatados e outros) e os molhados, naturalmente constituídos por vinho de péssima qualidade e cerveja a rodos. Tudo o mais que pudesse ser apelidado de “frescos” vinha do Luso trazido pelo Nord Atlas nas suas visitas semanais (verduras, carne, peixe congelado, ovos e pouco mais).
O que valia ao vagomestre (e a nós todos) era a abundância de caça que naturalmente arredia das matas próximas, obrigava a calcorrear chanas afastadas à procura da melhor peça. Uma boa caçada permitia compensar o magro orçamento e garantir bifes para o almoço, já que a carne vinda semanalmente do Luso era demasiado cara apenas chegando para misturar com a massa, com o arroz ou para compor um guisado pobre com batatas.
Mas, carne de caça… é carne de caça. Nada que se pareça com um naco de vitela ou uma costeleta de porco que uma simples pedrinha de sal transforma em pitéu. Carne de caça é adocicada, desagradável, enjoativa e torná-la comestível exigia tempo, marinadas prolongadas, empenho e imaginação do cozinheiro o que, devo confessar, não abundava por ali. A não ser que se tivesse a sorte de caçar uma palanca ou então uma gunga. A carne de gunga era a única que uma vez cozinhada se assimilava a vaca e o animal era tão grande que os dois lombos eram suficientes para servir uma refeição de bifes a toda a companhia.
O problema é que a caça não resolvia tudo. No tempo das chuvas era difícil apanhar alguma coisa de jeito e o pessoal começava a ficar farto, torcendo o nariz a certas variedades como o guelengue (óryx) ou o caixote (Gnu) animal desajeitado cuja carne tinha um sabor nada agradável. O orçamento, esse, continuava curto e qualquer pequeno deslize tornava-o deficitário obrigando ao racionamento e a refeições de massa com pouca coisa ou a arroz espapaçado com estilhaços de frango.
Contudo, havia ainda um recurso. A população local dedicava-se à criação de gado, naturalmente gado vacum. O problema era convencê-los a venderem. Entre os ganguelas, a riqueza definia-se pelo número de mulheres que cada um possuía e mulheres adquiriam-se com vacas. Meia dúzia delas dava para comprar mais uma mulher que podia ser usada para trabalhar nas lavras, cuidar das plantações de milho, nos afazeres do dia-a-dia e conferir estatuto. Naquela sociedade poligâmica, quanto mais mulheres e maior a manada, maior a importância do proprietário.
Para agravar a situação, o dinheiro não lhes dizia nada. Não precisavam dele. Era coisa inútil. Bastavam-se com o mínimo necessário para comprar um ou outro utensílio, uma ou outra alfaia, uma ferramenta, uns panos para as mulheres e pronto. Andavam descalços, vestiam pouca roupa e sobreviviam com culturas de subsistência.
Era aqui que entrava o P. Costa. Sendo o furriel responsável pelo “Chiado” estava habituado a negociar com a população a venda das utilidades e futilidades que se vendiam no barracão assim eufemísticamente apelidado. A verdade é que era o único que se dispunha a deslocar-se às pastagens, escolher a rês, negociar o preço e trazer o animal estrategicamente abatido com um tiro certeiro e que, uma vez na Neriquinha, o cabo Ferreira se encarregava de desmanchar e converter em bifes.
Certo dia, o P. Costa foi incumbido de mais uma dessas missões: convencer o ganadeiro a vender um dos seus animais. Fiz parte do grupo a que se juntaram os dois cabos da Força Aérea que nunca antes tinham tido o ensejo de passar além do arame farpado. O local escolhido foi a Neriquinha Velha, ali pertinho, nas cercanias das margens do Kuando, distância que levou cerca de uma hora a vencer.
Saltámos da berliet e seguimos o P. Costa que caminhou decidido pelas lavras contornando um morro de formigas salalé demonstrando conhecer bem o caminho. Acercou-se do único homem visível nas redondezas, cumprimentou, fez uma ou duas perguntas de circunstância e foi directo ao assunto.
A resposta meio evasiva do dono do gado, não parecia lá muito animadora. Era claro que o homem não estava interessado em vender o que quer que fosse. Mas as negas do homem não pareciam convencer o P. Costa que já esperava a reacção, passando de imediato à discussão do preço. Na verdade, discussão não houve já que os valores avançados se ficaram apenas pelas ofertas do comprador:
- Mil escudos! Tá bem?
Como resposta, um tímido e negativo abanar de cabeça, ao mesmo que tempo que balbuciava um…
- Não furriel.
Mas o P. Costa insistia, subindo a oferta
- Então, fica por mil e cem.
Para de seguida questionar de forma conclusiva.
- Então qual é a que vamos levar?
E sem dar tempo ao outro para responder, levou a arma ao ombro e com um tiro certeiro prostrou o animal que o seu olhar conhecedor já havia seleccionado.
Carregámos a vaca inerte enquanto o homem, agradecendo com tímidos acenos de cabeça, recebia as notas que compunham o preço, sem prestar grande atenção ao dinheiro. Para mim parecia claro que aquele dinheiro pouco lhe interessava. Na verdade acabara de ficar mais pobre
No caminho de regresso, olhando o corpo morto do animal, apenas pensava que finalmente teríamos rancho melhorado. Talvez uns bifes a que certamente faltariam as batatas fritas. Mas nunca me ocorreu pensar que não havia veterinário para garantir que aquela carne estava em condições de ser consumida.
Fiávamo-nos apenas na experiência que se supunha ter o Cabo Ferreira. Ao abrir o animal certamente saberia ver isso.

9 comentários:

Carlos Ademar disse...

Vale sempre a pena passar por aqui. Belo texto... mais um. Parabéns.

Gabriel Costa disse...

Lembro-me que, certa vez, o P. Costa comprou uma vaca prenhe e, quando a descarregaram no quartel, em vez de ser abatida, foi deixada junto à pista de aviação, a pastar, onde pariu passados 1 ou 2 dias. Por ali se mateve até chegar a altura de alinhar nas mãos do cabo Ferreira: mãe e filha!

Anónimo disse...

Breve nota àcerca da aquisição de gado à população.
Embora isso acontecesse com pouca frequência, tanto quanto me lembro, essencialmente em comemorações de aniversários, ou outras ocasiões esporádicas, os proprietários faziam questão de ajustar o preço da peça à patente militar...
Por isso mesmo, comprei a "vaca" mais cara de que houve memória na N'riquinha...
Com jeito ainda sou capaz de procurar e encontrar a respectiva "factura"...
Mas também é verdade que a comprei ao melhor negociante da aldeia: o Lupale; que, com ambas as mãos dobradas pelos pulsos à altura do peito, e no meio de risos com todas a piadas e não-piadas que eu dizia, me negava, sorridentemente, qualquer desconto.

Mais uma excelente rememoração do Egídio Cardoso, bem escrita e melhor detalhada.

P.C.

Egidio Cardoso disse...

Ah! O Lupale, essa personoagem misteriosa.
Lidei pouco ou nada com ele.
O seu papel no seio daquele comunidade daria, só por si, um livro.

Anónimo disse...

Por motivos alheios à minha vontade, faltei aos convívios dos três anos anteriores a este, razão pela qual, só neste último, tomei conhecimento da existência do "blog" angola3441. Só posso aplaudir a iniciativa e registar o enorme prazer que me deu a leitura dos textos e a visualização das fotos.
Este artigo desenvolve um dos temas que animou a mesa onde almoçámos um inesquecível arroz de marisco. E veio-me à memória a praxe com que nos brindaram na primeira refeição que tivemos na N'riquinha: Esparguete com rodelas de salsicha, prato que servimos aos "maçaricos" que nos vieram render.
Só uma nota: o cabo cozinheiro, o saudoso Ribeiro, antes da tropa trabalhou na cozinha de um restaurante de renome, à Praça de Londres cujo nome penso ser Versalhes. Muito trabalhador e sensato punha um grande empenho e competência em tudo o que fazia. No final da comissão foi evacuado para o hospital militar e deste para o "Puto". Nunca mais soube nada dele embora alguém me tenha dito que terá falecido.

Óscar Morais

Anónimo disse...

Essa da carne de caça tornva-se horrivel ao fim de umas semanas.

Havia uma maneira de não enjoar, mas isso era preciso adaptação de cozinheiros com sentido proissional e com mestres.

Havia uma maneira de secar a carne que dava uma transformação semelhante ao que acontece com o bacalhau, presunto, e que já não enjôa.

Havia o nosso hábito da batata e do macarrão que era possivel variar com inhame, mandioca, batata doce.

Mas para isso era preciso uma adaptação dos cozinheiros e mesmo uma «africanização» da malta, que só ao fim de alguns anos se conseguia.

Mas está bem analizada essa problemática da gastronomia na N´riquinha.

Cumprimentos

Antº Rosinha

Gabriel Costa disse...

Caro Morais:
Até que enfim que apareces!
Também eu não estive presente este ano (foi o meu pior dia dos últimos anos e andei todo o dia chateado com todo o mundo).Espero que coloques à disposição deste blog o teu enorme acervo fotográfico e que participes na sua feitura! Ficamos à espera!

Gabriel Costa disse...

J+a agora, o nome do Restaurante famoso da Praça de Londres onde o Ribeiro trabalhou, chama-se "A MEXICANA".

Anónimo disse...

Tens razão Gabriel!!! A esta distância foi o nome que me ocorreu!! Também eu já encontrei algumas confusões do género nos livros do E. Aranha e P. Cabrita, bem como nos textos do "Blog". Este exercício conjunto de várias memórias é que é aliciante.
Aquele abraço,
Óscar Morais