sábado, 1 de maio de 2010

O NOSSO PRIMEIRO

Creio que não será difícil imaginar a quantidade de problemas administrativos que uma companhia, ou qualquer outra unidade militar, enfrenta no dia-a-dia. Imagine-se agora essa companhia num teatro de guerra e acrescentem-se as dificuldades inerentes. Condimente-se o bolo com a ausência de vias e meios de comunicação e ao facto de me estar a reportar a um tempo em que o computador era peça de ficção.
Aposto que a grande maioria do pessoal da 3441, incluindo oficiais, sargentos e praças, nunca chegou a aperceber-se plenamente da complexidade e dimensão das minudências de natureza administrativa e financeira que em cada dia tinham de ser resolvidas.
Para tudo havia uma dotação, um limite financeiro, uma verba com a correspondente burocracia plasmada à saciedade nas NEP’s, nos códigos, regulamentos, circulares, ordens e instruções produzidas na retaguarda pelos guerreiros do ar condicionado.
Para tudo havia um impresso, um modelo, um formulário um relatório. E tudo tinha de bater certo, ao centavo, o débito igual ao crédito. Até as munições eram contadas, sendo exigidos relatórios rigorosos a justificar cada bala disparada. Um mundo de burocracia capaz de dar cabo dos nervos e fazer a cabeça em água a qualquer um.
Para dar conta de tudo isso, só os profissionais da tropa, que sabiam decorado de trás para a frente e salteado, todas as regras, todos os prazos e datas-limite. Conheciam os impressos, o número de vias e respectivas cores. Sabiam quando e para onde deviam ser remetidos: era uma exemplar disto para o comando no Cuito Cuanavale, um exemplar daquilo para o comando da Zona Militar Leste, outro para a manutenção militar no Luso, um original de qualquer coisa para o quartel General, a requisição de qualquer peça para o serviço de material. Enfim o paraíso da burocracia.
Eram tarefas com que o Capitão teria de lidar. Ele era o responsável máximo pela ordem e cumprimento daquele mundo de confusão. Só que o nosso pertencia à primeira leva de capitães milicianos, comandantes que o exército recrutou à pressa esgotado que estava o quadro dos formados na academia. O nosso capitão era, assim, um perfeito ignorante (sem ofensa) dessas andanças sobre as quais, quanto muito, teria aprendido umas luzes durante o pouco tempo que levava de tropa. E isso punha-o à mercê do primeiro-sargento que lhe calhasse. Numa companhia, o primeiro-sargento era uma espécie de chefe de secretaria, contabilista, tesoureiro e escriturário-mor, autêntico mangas-de-alpaca que dominava esse mundo de papéis e burocracia. E isso não era muito bom. Os sargentos, profissionais da tropa, não tinham lá muito boa fama. Eram conhecidos na gíria por, chicos. Aliás, chico era todo aquele que, uma vez acabado o serviço militar obrigatório resolvia ficar, continuando agarrado à farda e às exigências da disciplina militar. Dizia-se então que:
- Meteu o chico.
Um chico, naquele tempo, era sempre alguém que trazia colado à pele um acervo de epítetos mais ou menos soezes, ou pelo menos, maledicentes. O chico era um lateiro, um retrógrado boçal, agarrado ao dinheiro, capaz da maior das vilanias por meia dúzia de tostões. Se o rancho não agradava, a culpa era do sargento que, para poder gamar algum, cortava na carne (mais cara) e aumentava a quantidade de massa e feijões (mais baratos).
O chico, naturalmente mal-humorado, fazia exigências só para chatear, para compensar o seu complexo de inferioridade. Por oposição, era um autêntico lambe-botas, excessivamente subserviente perante qualquer um que tivesse patente superior à sua.
O sargento chico era, em suma, alguém que, se não tinha o proveito, da fama não se livrava. Se ficou na tropa era porque se queria encher, enriquecer à custa dos outros. Era como se exibisse um estigma, um rótulo colado à pele que catalogava a classe, embora durante o tempo em que fui militar (três anos e uns mesitos) tenha encontrado muitos que não encaixavam nesta definição.
Imagino assim os temores que o capitão Cabrita terá sentido no princípio da sua espinhosa missão, ao concluir que estaria nas mãos do primeiro-sargento, ainda sem saber se lhe saíra em sorte um dos bons ou dos outros.
Mas o Cabrita devia ter uma estrelinha cintilante que o amparou durante a sua efémera missão de garante do cumprimento das mil e uma normas do injuntivo regulamento militar. Coube-lhe em sorte um dos bons, direi mais, dos melhores.
Não foi preciso muito tempo para todos perceberem que nos saiu na rifa um dos melhores sargentos do exército português. Ao nosso Primeiro, de seu nome Manuel António Pinto, não se aplicava nenhuma das características condenáveis que se costumavam apontar aos chicos:
Desde logo ficara demonstrado que não era lateiro. É certo que não costumava achar que o rancho era sempre bom. Mas comia e não barafustava, talvez porque, lá no íntimo, tivesse consciência que os escassos vinte e dois escudos e meio por dia que o vagomestre dispunha para alimentar cada homem, compunham um magro orçamento que não permitia lautas refeições, Acredito, contudo que, se assim não fosse, o seu profissionalismo não lhe permitiria a veleidade de refilar da qualidade do que lhe punham no prato.
Comia naturalmente do rancho como todos os outros, ocupando um qualquer lugar na mesa corrida da messe de sargentos, em amena cavaqueira com os jovens que na altura integravam o grupo de furriéis da companhia.
Por outro lado e em evidente contradição com a maledicência, era uma pessoa pacífica culta e educada, para além de bem-humorado. Todos o respeitavam, não por temor, ou porque o exigisse. Respeito, merecia-o naturalmente e todos lho reconheciam.
Era um homem maduro, na casa dos quarenta anos, mais ou menos o dobro da idade da maioria dos furriéis que compunham o corpo de sargentos da companhia. Sendo apenas o camarada mais velho e sem querer exagerar, era como se fosse nosso pai, ou se se quiser, um irmão mais velho, bem mais velho.
Sábio, sabedor, ponderado e dotado de bom senso em quantidade generosa, a sua opinião avisada foi, aos poucos, sendo considerada importante, necessária, quase obrigatória.
- Oh meu primeiro! O que me aconselha…?
Perante a pergunta, respondia sempre com voz pausada, carregando nos esses a denunciar a sua origem nas frias terras altas da Guarda.
Se entendia que não deveria aconselhar, recomendava:
- Você é que tem de decidir.
E rematava com o seu sotaque beirão:
- Pense bem que há-de encontrar a resposta.
Passava o dia na secretaria, tratando da papelada, controlando os orçamentos e dali apenas saía para o almoço e no fim do expediente, percorrendo, no seu passo lento e seguro, o caminho de tabuinhas que separava a secretaria da messe. Ao fim do dia, sentava-se junto a nós entrando na conversa e contando estórias antigas. Ria-se com gosto das brejeirices que apimentavam factos passados da sua juventude e partilhava connosco as suas alegrias, pelo menos algumas. Lembro-me do seu indisfarçável contentamento ao divulgar, entusiasmado, após o regresso de férias, que tinha comprado um carro novo. Para ele o modesto Citroën Ami 8 que comprara era um carrinho muito bom, uma maravilha. Ficava assim demonstrada a sua natural e não cultivada modéstia.
Não obstante o Cuando Cubango ser abundante em caça, nunca vi o primeiro-sargento sair para a mata com esse objectivo, muito embora, por uma questão de necessidade se fizessem frequentes incursões de caça. Contudo, fazia questão de integrar um pequeno grupo que, incluindo o capitão, o médico e mais um ou outro, se entretinha, após o jantar e a coberto da noite, a apanhar uns quantos coelhos que habitavam no terreno tangencial à pista no lado norte.
Utilizando um velho Jeep Willis de três velocidades e que consumia cinquenta litros aos cem, percorriam a pista até ao fim, trazendo no regresso quatro ou cinco coelhos que, encadeados pelos faróis, se deixavam apanhar. O petisco que com eles se fazia e a que o primeiro não resistia, era um autêntico regalo para papilas gustativas adormecidas pela comida sensaborona do rancho.
E assim, durante algum tempo, quatro ou cinco coelhos eram diariamente sacrificados, até que, não sei se porque deixou de ter piada, se porque a ninhada se mudou para outras paragens ou se foi simplesmente dizimada, foi dado por findo o entretém.
Quanto ao mais e como é bom de ver, o Primeiro era um homem rigoroso no cumprimento dos seus deveres. Mas não era apenas exigente consigo. Sem que alguém alguma vez o tenha ouvido reclamar ou exigir rigor no comportamento, sabíamos que gostava que todos se comportassem com zelo e lealdade, de acordo com as regras. Disso se apercebeu o furriel das transmissões, que fora designado para gerir a cantina.
Foi demitido dessas funções, simplesmente porque as contas apresentadas, ou não o convenciam ou não estavam de acordo com os procedimentos que ele considerava os correctos. Nunca soube exactamente o que terá feito o furriel para assim ser demitido, já que a lisura profissional do primeiro-sargento Pinto nunca lhe permitiu divulgar. Simplesmente me comunicou que tinha proposto ao capitão que, a partir daquele momento, seria eu a lidar com as coisas da cantina.
Das razões de facto, provavelmente só o capitão teria sido informado. Homem leal, discreto, solidário e íntegro, o capitão podia ter a certeza que se houvesse algo que só a ele devia ser dado conhecimento, mais ninguém o saberia.
Era também um bom coração, um amigo que se preocupava com os sentimentos dos outros. Ainda hoje recordo a forma cuidada que usou para me comunicar o desfecho trágico do acidente que matou o Gonçalves. Demonstrando que a sua perspicácia não se confinava às coisas da secretaria, apercebera-se que a relação de amizade que me unia ao Gonçalves era forte. É claro que sabia sermos conterrâneos mas, ainda assim, saberia que essa não seria a principal razão que nos tornara amigos. Sendo um dos primeiros a ter tido acesso à mensagem que, transmitida via rádio a partir do Rivungo, anunciara a desgraça, aprestou-se, pessoalmente, a comunicar-me, com cuidado mas sem grandes rodeios, que não mais veria o meu amigo e companheiro.
Na altura não medi bem o alcance do gesto. Tomei-o como sendo apenas o mensageiro da desgraça. Só mais tarde me dei conta que isso revelara muito da sua personalidade de ser humano. Preocupado com os sentimentos dos outros, fez questão de me pôr ao corrente do facto antes que a notícia corresse os quatro cantos do aquartelamento como sussurro funesto ameaçando a tranquilidade e os sentimentos de cada um.
É notório. Eu gostava do nosso primeiro. Ainda hoje gosto. É sempre com indisfarçável alegria que o revejo ano após ano por ocasião dos nossos encontros anuais. Comparece sempre que pode, especialmente se o local do encontro não for muito longe. A idade já não lhe permite grandes caminhadas. Mas gostamos de o encontrar de boa saúde. Tenho a certeza que esse é o sentimento de todos.

4 comentários:

Pedro Cabrita disse...

Corroborando e reforçando tudo quanto o Egídio Cardoso aqui refere, deixo também a minha homenagem ao 1º Sargento M.A. Pinto, transcrevendo trechos do livro "Capitães do Vento":

.../... Manuel António Pinto era o seu nome e espero que o seja por muitos e bons anos. Militar exemplar, o 1º Sargento Pinto dominava como poucos a sua função. A par da sua inexcedível competência era um homem educado e cumpridor.
Um dia, quando vim de férias pela primeira vez, pediu-me que desses cumprimentos seus a um Major que estava colocado naquela altura no QG em Luanda, caso eu por lá passasse. Passei e não deixei de procurar o Major a fim de lhe transmitir o recado. Recordo ainda hoje, palavra por palavra, a expressão que este usou quando lhe disse ao que ia.
- Você tem o 1º Sargento M. A. Pinto como seu militar? Então deixe-me dizer-lhe, meu caro, que você tem, provavelmente, ao seu serviço o melhor 1º Sargento do exército português!
Que melhor definição que um elogio desta dimensão proferido por um militar de carreira. De facto, o Sargento Pinto conseguia juntar ao binómio competência/honestidade uma invulgar capacidade de trabalho e uma excelência notável de organização a ponto da Companhia receber regularmente rasgados elogios do comandante Rui Mendonça pela administração rigorosa e competente que evidenciava em toda a contabilidade. Alguns colegas seus chegaram a ser enviados pelo comandante à N’riquinha para frequentarem uma espécie de estágio na arte de bem administrar uma Companhia. O que naturalmente envaidecia o Pinto, embora a sua humildade o impedisse de o exteriorizar. O próprio comandante, sempre que por ali passava não deixava de subtilmente lhe colocar algumas questões de forma a não deixar entender a sua subalternização aos conhecimentos e competência do 1º Sargento Pinto.
Ele foi quem primeiro entendeu o meu problema e a minha guerra com a coisa da administração militar. O episódio conta-se em poucas palavras mas julgo que valerá a pena.
No final de cada mês era norma o 1º Sargento apresentar uma espécie de relatório de contas relativo à administração da Companhia. Fazia parte das normas. Documentação para assinar, livros de registos e as questões em que era necessário tomar decisões. Eu olhava aquela papelada entendendo pouco ou nada daquilo que estava a ver. Sem quaisquer pruridos, o que não entendia perguntava e procurava aprender. A maior parte das questões que eu colocava eram, na sua maioria, estou em crer, ingénuas e por vezes talvez absurdas, sendo mais que notório que eu não entendia a maior parte das coisas que me mostrava ou dizia o Pinto. Cada mês que passava eu sentia que me encontrava nas mãos do 1º Sargento, qualquer que fosse o destino que elas me quisessem dar.
Ao terceiro mês de verificação de contas, rigorosamente em dia certo, o Sargento Pinto, pedindo delicadamente licença para entrar no meu gabinete, como sempre fazia nem que lá entrasse vinte vezes por dia, depositou toda aquele amontoado de mapas, livros e documentação sobre a minha secretária, para que eu desse início à verificação das contas. Para mim era mais um momento penoso que não escapou à argúcia do Pinto. Folheei dolorosamente duas páginas e notei algo de estranho no comportamento do 1º Sargento, andando inquieto de um lado para o outro como se estivesse nervoso com alguma coisa que se me escapava. Levantei os olhos da enorme confusão de contas que se multiplicavam à minha frente, qual delas a mais estranha e destituída de sentido para mim, e perguntei:


(continua)

Pedro Cabrita disse...

.../...
O Pinto parou daquele vaivém e, adoptando uma postura respeitosa, ainda que remexendo em algo que não existia na ponta da minha secretária disse:
- Vossa senhoria meu Capitão vai-me desculpar mas escusa de ver as contas com tanta atenção porque se eu quiser enganá-lo, engano-o mesmo!
Recostei-me na cadeira procurando avaliar com precisão o sentido e o peso daquela expressão. Sem que me desse tempo de dizer algo, o Pinto continuou esclarecendo o que pretendia dizer.
- Se o meu Capitão concordasse, eu propunha que vossa senhoria se dedicasse por inteiro à guerra e deixasse as contas comigo.
Não era difícil entender quão oportuna e lógica era aquela proposta. Era escusado continuarmos com aquela hipocrisia, fingindo cada um para seu lado que nada estava a acontecer. O meu desconhecimento sobre aquela área era demasiado óbvia e a guerra era já por si mais que suficiente para eu me entreter e preocupar. O malfadado instinto de conservação não era fácil de manobrar.
Era claro que, colocadas as coisas assim, ainda que o meu conhecimento do 1º Sargento Pinto fosse ainda muito superficial naquela altura, não me parecia haver ali espaço para uma manobra com objectivos menos claros. Se me quisesse pregar alguma, era lógico que aquele não seria o melhor caminho deixando-me de sobreaviso e em suspeição. Meditei poucos segundos. Fechei o livro e disse.
- Meu caro! Aceito isso! Em qualquer circunstância eu serei sempre o responsável, pelo que prefiro que seja você a propor-me o jogo, do que andar eu às cegas a tentar descobri-lo.
A conversa foi longa e foi ali mesmo que teve início uma grande amizade e uma confiança mútua que perdura até hoje. Confesso que me senti a celebrar um acordo civil, porque, no cumprimento rigoroso daquilo que ordenavam as regras militares, aquela disposição de intenções não era muito consentânea com aquelas. Só que as coisas não mudaram muito. Logo naquele mesmo dia, quando eu pensava que me ia ver livre daquela confusão documental, ele fez questão de me fazer uma exposição detalhada da situação da Companhia em termos administrativos, exemplificando-me cada ponto com os lançamentos que trazia nos livros. Ou seja, o que afinal pretendia com a sua proposta era apenas aliviar-me da preocupação; não, retirar-me o conhecimento das contas. No futuro, haveria uma exposição livre onde seriam apresentados os problemas para que em conjunto debatêssemos as soluções. O que deixava de haver era uma inspecção para passar a ocorrer uma exposição do quadro de situação e a busca das melhores soluções. Rigorosamente no último dia de cada mês o Pinto lá estava à porta com a escrita debaixo do braço, perguntando sempre se era a altura certa para podermos ver as contas. Havia questões que me cabiam a mim decidir porque eram opções reservadas ao Comandante da Companhia. Mas mesmo essas eu não deixava de solicitar a opinião experimentada e lúcida do Pinto, para depois tomar a decisão que me parecia mais acertada. Neste contexto, a resposta era rigorosamente sempre antecedida de um preâmbulo que se constituiu para mim numa espécie de imagem de marca que guardo com enorme carinho e que se fazia ouvir sempre com aquele sotaque das terras de Viriato, que cultivava com orgulho. Dizia então.
Salvo melhor opinião… E lá se seguia o seu parecer, que no fundo ele sabia que era profissional e conhecedor.

(continua)

Pedro Cabrita disse...

.../...
O 1º Sargento Pinto viria a transformar-se no meu braço direito e a ele lhe devo uma boa parte dos êxitos que ocorreram naqueles vinte e seis meses e meio de comissão. Essencialmente o facto de não ter ocorrido qualquer problema administrativo, que não raras vezes trazia transtornos e prejuízos pessoais de elevada monta. Que o digam os vários camaradas do meu curso e seguintes que, não tendo a mesma sorte, sofreram na pele mais esta agressão a juntar a todas as outras.
Esta é uma pequena homenagem que lhe devo e que deixo com enorme gosto e prazer.

O Pinto viria ainda a revelar a sua estatura de homem num outro episódio que me marcou e terá selado a nossa amizade para todo o sempre. Havia anos que vinha solicitando a sua saída das fileiras da instituição. Estava cansado com tantas comissões e tinha outros objectivos para si e para os seus. A tropa vinha-o negando sempre. O Pinto não era um elemento que se dispensasse com facilidade. Só louvores contava com dezassete e alguns deles provenientes de altas patentes. Um incompetente teria sido dispensado com algum alívio da instituição. O Pinto pensou em arquitectar um plano que o levaria a sair a mal, já que a bem a sua libertação não parecia ter caminho. Estudados todos os meios, achou que a melhor solução seria cometer faltas no teatro da guerra que o levassem a ser punido e enviado de regresso à Metrópole a fim de se cumprir a pena. E uma delas seria não se apresentar ao serviço no regresso de um dos períodos de férias. Uma espécie de deserção, que em termos militares era uma falta grave punida com pena muito pesada.
As penas por deserção foram condenações forjadas nos tempos idos das guerras convencionais, oferecidas como alternativa a todos aqueles que, em desespero por uma morte certa no campo de batalha, optavam por morrer em nome da sobrevivência e glória dos generais e uma honraria funesta de jazer numa campa encimada por um epitáfio cretino e pouco honroso: “ Morto ao serviço da Pátria”.
Comecei a ficar atrapalhado quando, numa dessas alturas, o Pinto me falhou no regresso na data prevista. Viria a aparecer dias depois no avião civil do correio (pilotado pelo famoso Barros) um Cessna bimotor, tendo pago o bilhete do seu bolso, quando podia ter utilizado o Nord Atlas que semanalmente abastecia a Companhia.
Aliviado, disse-lhe que já estava a ficar preocupado. Contou-me então toda a história, que se resumia ao facto de ter planeado o golpe referido, mas que, à última da hora, achou que eu iria ter muitos problemas saindo prejudicado. Afinal, concluía, eu não tinha nada a ver com aquela sua questão. Daí, à última da hora ter desistido, metendo-se no avião a expensas próprias.
E em boa hora o fez porque, na verdade, em termos administrativos, e o sucesso de todos nós, aquela Companhia era, inegavelmente, o Pinto e esta é uma outra homenagem que lhe deixo com muito goste e alguma emoção.


P. Cabrita

Anónimo disse...

"Vossa Senhoria meu capitão vai-me
desculpar mas escusa de ver as con_
tas com tanta atenção porque se eu
quiser enganá-lo,engano mesmo"É
verdade,esta classe de militares,
foram(são?),em certa medida o sus_
tentáculo da Instituição Militar.
Era corrente naquele tempo a ex_
pressão"o primeiro da secretaria
manda tanto,como o cmdt da unidade"
Passados quarenta anos,com alguma
falta de rigor,lembro-me de uma
situação comigo acontecida,que
atesta bem o rigor, que os tais
"Chicos"exigiam nas suas obrigações
O "extravio" de um hélice de duas
pás, de um motor marítimo fora-de-
bordo,marca Mercury de 40 hp,usados
naquele tempo,nos Infufláveis Zebro
4 e 6,usados pela AP e também por
algumas unidades do exército,como no nosso caso, junto ao Zâmbeze.A
narrativa é longa, não vos quero
maçar com tantos promenores.Quem
me "safou", não sei,se de mais uma
"porradita"ajuntar a outra trazida
de cá,visto o hélice ser classifi_
cado material de guerra e como es_
tavamos em Espólio de fim de Comis_
são,não sei.Como ele ia nesse dia na patrulha estava a par da situa_
ção, tinha feito a participação da
perda do hélice,que jazia algures
no fundo do Zâmbeze.O nosso Amigo
o sr. Coronel João Sena,naquele
tempo por tês meses, no fim da Co_
missão foi meu Comandante de Compa_
nhia,em Mutaràra.

CN