quinta-feira, 1 de outubro de 2009

OS PRIMOS


Durante a guerra colonial, em Angola, as partes beligerantes contavam com apoios vizinhos. No Sul, o exército português tinha o apoio quase incondicional da África do Sul, enquanto o MPLA contava com a Zâmbia.
A ajuda sul-africana tinha várias vertentes. Na Neriquinha víamo-la nos rótulos da ração de combate e de forma intensa na participação da sua força aérea, sempre que uma qualquer operação implicasse o envolvimento de helicópteros.
Mesmo não se estando por dentro dos meandros das negociações ou do pedido de apoio, a ideia que ficava é que não olhavam a meios. Sempre que fosse preciso, uma esquadrilha de Alouette III surgia com os aparelhos que fossem considerados necessários. Nós só entrávamos com o combustível. JP1 era coisa que não faltava na Neriquinha, e a logística militar encarregava-se de não descurar o abastecimento.
Chamávamo-los de “os primos”. Da origem do nome não conheço pormenores. Aliás, penso que o baptismo não foi da autoria da 3441. A designação já vinha de trás e era a forma como todos se referiam aos vizinhos do Sul.
- Prá semana temos cá os primos! Dizia-se sempre que se avizinhava uma operação em maior escala ou a ser levada a cabo em zonas mais afastadas e inacessíveis por terra.
Eram sempre bem-vindos. Traziam animação e quebravam a monotonia doentia do ram-ram estupidificante.
Parqueavam na pista, para lá do arame farpado, obrigando a um reforço adicional das sentinelas com mais dois ou três homens posicionados estrategicamente dia e noite, zelando pela segurança dos aparelhos. Fosse quem fosse o escalonado, barafustava sempre.
- Porra! Calha-me sempre a fava!
Para mim eram dias fantásticos. Perdia a noção do tempo seguindo todos os passos da criteriosa e quase religiosa sequência dos cuidados com a manutenção, autênticos mimos que dispensavam àquelas máquinas extraordinárias. Deliciava-me a tentar entender como funcionavam. Acessoriamente, desenferrujava o mal sabido inglês escolar.
É claro que isso só acontecia quando eu não participava na operação em curso. Nessa altura apenas os via à chegada, durante o voo e à partida. Não acompanhava o frenesim em terra mas, sendo um dos transportados, dava para ver como manobravam aquelas coisas, para além de desfrutar da sensação de um voo que não se assemelhava ao de qualquer avião. Pairava-se no ar, podia-se voar alto ou baixinho e pousar onde se quisesse. Até dava para ir à caça. Já imaginaram caçar de Helicópetro? Normalmente apanhavam-se duas peças que se transportavam dependuradas, uma em cada estribo. Assim garantiam o equilíbrio do voo.
A tripulação era sui generis. Embora simpáticos e de certa forma, compinchas, o seu comportamento denunciava os tiques da realidade política da África do Sul onde então vigorava um regime de apartheide com uma segregação racial levada a sério. A facilidade com que os portugueses conviviam com os negros era coisa estranha para o seu entendimento.
- you do like negros! Indeed.
Esta espécie de desprezo racial ficou demonstrada quando, certa noite, após o jantar, na sequência de um quase ritual alcoólico, ofereceram uma cerveja ao rapaz negro que ajudava na messe. O que a princípio parecia simpatia, não era mais do que uma atitude deliberada de o embebedar. Com a ajuda de um funil que lhe colocaram à força na boca, foram despejando cerveja após cerveja, directamente para a garganta do infeliz. Só a nossa intervenção livrou a horrorizada vítima das mãos dos três militares que o seguravam.
- Just Joking. Justificaram-se no meio das risadas.
A relação destes homens com o álcool era uma das suas imagens de marca. Durante todo o dia e enquanto durasse a sua actividade, nunca ingeriam uma simples gota de álcool. Apenas bebiam refrigerantes desde a gasosa à laranjada, mesmo às refeições, o que nos parecia estranho, já que, sendo o vinho, zurrapa, duas cervejas era o mínimo que qualquer um bebia ao almoço, com a devida excepção de um ou outro abstémico. Mas os Sul-Africanos, nem isso. Nem água bebiam. Apenas laranjadas e coisas assim, revelando a disciplina rígida de quem tinha a responsabilidade de pilotar helicópteros ou fazer a sua manutenção.
Mas, ao fim do dia, arrumados os aparelhos, feita a sua criteriosa manutenção, cobertas com lona todas as suas partes sensíveis e concluídas as tarefas de que estavam incumbidos, recolhiam aos balneários, substituam os fatos-de-macaco camuflados por roupa civil e apareciam um após outro na messe. Faziam-se acompanhar invariavelmente por garrafas de um brandy produzido na África do Sul.
O intragável brandy Richelieu deveria ser a sua bebida preferida. Traziam sempre caixas daquilo e bebiam-no desalmadamente.
Aliás, era impressionante a quantidade de álcool que aqueles odres ingeriam no bocado de noite que mediava entre o fim do jantar e a hora de recolher. Numa autêntica bagunça feita orgia alcoólica, bebiam o Richelieu puro ou misturado com cerveja em proporções iguais. Confesso que nunca pensei que se pudesse misturar brandy com cerveja e menos ainda naquelas quantidades.
Tinham técnicas eficazes para se embebedarem depressa e bem. Uma delas era a referida mistura. Outra passava por uma espécie de prova de habilidade e concentração onde também alinhávamos. Um grupo, de seis ou sete, sentava-se à roda de um mesa, cada um com uma garrafa de cerveja vazia. O objectivo era passar a garrafa ao seguinte, recolher a que nos era deixada pelo anterior e passá-la de novo ao seguinte, tudo ao ritmo de uma canção sem letra, comandada pelas batidas do fundo da garrafa na mesa. Importava ter atenção ao ritmo e ao facto de, a cada duas passagens de garrafa, não a largar, voltar atrás e depois à frente e só então largá-la para o seguinte. Quem se enganasse teria de beber uma cerveja.
Claro que, quanto mais nos enganávamos, mais se bebia e quanto mais se bebia mais nos enganávamos, num ciclo vicioso de onde só se saía caindo para o lado.
Por volta da meia-noite estavam todos tão bebidos que chegávamos a duvidar que no dia seguinte os helicópteros levantassem. Uns cambaleavam até à cama e outros eram levados pelos mais resistentes. Mas o facto é que se levantavam cedo, frescos, lúcidos e prontos para a tarefa de transportar tropas para os locais da operação, em segurança e com um sentido de responsabilidade e disciplina notáveis, como se nada tivesse acontecido no dia anterior. É que nem falavam nisso.
Na noite seguinte voltavam ao mesmo, repondo o stock de Richelieu e infligindo baixas significativas no nosso stock de cerveja.
Tudo acabava quando, cumprida a missão, carregavam tudo nos helicópteros e voavam em formação rumo a sul, prometendo voltar. Na operação seguinte voltavam. Alguns eram os mesmos, outros não. Contudo o comportamento não se alterava: refrigerantes durante o dia e excesso de álcool à noite. Até as caixas de Richelieu pareciam as mesmas.

12 comentários:

Pedro Cabrita disse...

Já nem me lembrava destes "familiares"...
A descrição do Cardoso é perfeita.
Apenas uma ou outra achega.

A designação de "Primos" não era uma alcunha ou nome inventado por alguém. "Primos" era mesmo um nome de código criado pelas autoridades, a fim de não chamar à atenção, embora a sua presença fosse do conhecimento, quer do inimigo, quer dos países envolvidos.
Se bem se lembram, nenhuma aeronave tinha inscrita qualquer designação ou número de matrícula. No caso de serem abatidas não havia indício da sua procedência. Esquemas...

Também referir que aquele apoio tinha dois objectivos:

1- Eles sabiam que quando a guerra estivesse perdida para nós, ela iria cair-lhes lá em casa, como veio a acontecer. Pelo que, enquanto se mantivesse viva por ali, eles tinham sossego.

2- Nessa perspectiva, aquele envolvimento era, ao mesmo tempo, um treino numa guerra e num terreno que importava conhecer.

Lembrar também que a África do Sul era um país muito rico.
Aquele empenhamento era uma gota de água no seu orçamento.

Para termos uma ideia das disponibilidades orçamentais e bélicas recordo um curto episódio que ocorreu na N'riquinha.

Um dia, quando estavam lá estacionados num apoio a uma operação, tivemos um problema com o gerador e a produção de frio, nomeadamente gelo.

O major sul africano nem pestanejou; mensagem rádio para a África do Sul e, passadas duas ou três horas, chegavam um avião com três caixas de armazenamento de gelo, o qual veio a conservar o gelo por três dias.

Enfim; estava uma Companhia portuguesa inteira com problemas de frio e aqueles onze militares tinham gelo vindo de mais de um milhar de Km duas horas depois de o pedirem.
Guerras e guerreiros...

Se me lembrar de mais algum pormenor volto cá para enfeitar estas memórias que nos estão agora a aflorar aos sentidos.

Já agora; todas estas perspectivas dos sul africanos foram sacadas por mim e pelo dr. Lacerda numa monumental bebedeira que enfiámos ao major de ligação que vinha sempre com eles...
Depois de bem bebido deitou tudo cá para fora... Até um ou outro segredo militar...

Abraço

P. Cabrita

Gabriel Costa disse...

O segredo para curar as monumentais bebedeiras era um comprimido, muito usado pos todos os pilotos aviadores, incluindo a aviação da comercial, chamado PROHEPS. Era um coice de cavalo e meia hora depois de ingerido, os sentidos ficavam todos alerta. Era usado pelos americanos no Vietnam, e foi produzido nos laboratórios dos EU para esse mesmo efeito: acordar os entidos e trazer todas as sensibilidades fisicas á flor da pele.
Recordo-me bem de ter ajudado a arrastar, literalmente, alguns para as instalações da FAP, onde os 2 cabos especialistas do Radio Farol NRQ, tinham de compartilhar com eles a camarata. Normalmente, eram tipos muito bem constituídos e pesados, pelo que, para os deslocar, só por arrasto.

septuagenário disse...

Sigo este blog, porque fala de uma região que palmilhei de 1970/74, 1966 e 1964.

Sou o septuagenário que esteve junto do cilindro de pedra que estava na pista da N´riquinha.

Tambem vi alguns helicópteros com palancas penduradas por cabos.

Vi quase tudo o que os editores do blog viram. Tanbem vi tempestades e o Branco Ló e dezenas de sobas.

Mas, há muitas coisas que não vi. E ando há procura de gente que tenha visto o que eu vi, mas tambem algo que eu não tenha visto.

E como conheço este blog atravez do "Luis graça e camaradas da Guiné" uma terra que tambem levou alguns anos da minha vida, venho pedir uma opinião dos editores e militares que frequentam o V/blog, isto se alguem achar normal o que exponho:

Como vocês passaram as passas nessas terras longinquas que são vizinhas de umas terras, embora da outra margem do Cuando, onde sofreu o grande escritor Lobo Antunes, e devido eu ter entrado numa polémica no blog da Guiné, por causa de algo que L. Antunes declarou num livro UMA LONGA VIAGEM COM ANTONIO LOBO ANTUNES,
PAG.391, que resumindo diz: os militares da sua unidade, para serem transferidos para uma zona menos violenta, era-lhes atribuida uma pontuação, em que uma espingarda aprendida era tanto, o inimigo morto outra, vivo outra e aí...o mais grave, entravam homens mulheres e crianças.

Amigos editores e leitores, não querendo que v/ entrem em qualquer polémica com isto, pedia-vos que lessem o post 5058, e os diversos comentários, e se acham lógico que algum batalhão podesse trabalhar a sangue frio daquela maneira.

A transcrição vem completa nos comentários. É curta.

Como penso que tal afirmação diz respeito a toda a gente que andou por lá, e que existiu WIRIAMU em Moçambique as violencias de 1961,mas desta estirpe parece-me muito "original", chego a pensar se era por ser nos Cus de Judas!

Posso ler a resposta no v/ próprio blog.

Obrigado,

Antº Rosinha

antoniorosinha@gmail.com

Pedro Cabrita disse...

Olá Caro Antº Rosinha.
Pensei que o tínhamos perdido. Se tiver paciência dê por aqui uma volta e tome nota de mais algumas questões que foram colocadas sobre N'riquinha, ainda naquela linha em que vínhamos trocando conhecimentos e algumas histórias.

Quanto à sua questão, antes do mais agradecia que me localizasse melhor o post 5058 que estará incluído nalgum blogue que não conheço.

Quanto à situação que coloca, embora enquanto comandante da companhia nunca me tivessem colocado esse tipo de catálogo para pontuar a acção na guerra, sei que, na verdade, ele existia e compreende-se a manha dos nossos generais. Eles sabiam que o "burro" só andaria para a frente com uma cenoura bem à frente dos olhos.

Tendo em conta que o dito catálogo não existia oficialmente (pelo menos nunca o vi) embora funcionasse na hora de fazer contas, eu acredito que ocorresse igualmente uma contabilidade com homens, mulheres e crianças, mas essa tinha uma outra perspectiva. Essa não era uma captura mas sim uma recuperação de elementos da população que era retirada ao inimigo e ficava sob o nosso controlo.
Se bem se recorda, a guerra teve uma deriva nessa área, quando os "inteligentes" perceberam que, melhor que andar aos tiros pela mata, era tirar-lhes o pão da boca. Pão da boca aqui representado pela população que fazia as lavras, construía as cubatas e fazia uma espécie de patrulhamento nas áreas enquanto tratava das culturas que alimentavam a guerrilha.

Ora, neste sentido, cada elemento da população recuperada (era este o termo usado) e não capturada, teria muito provavelmente uma contabilidade para a tal listagem de prémio que daria direito a um qualquer remanso numa paragem paradisíaca das muitas em que Angola é pródiga. Já agora, olhe que isso connosco não funcionou. Não capturámos armas; apenas recuperámos alguns elementos da população. E na rotação... melhor que Mabubas a 60 Km de Luanda, seria difícil. Talvez nessa altura o sistema já não funcionasse. Mas sei que também funcionava o peso do comandante do Batalhão. E o nosso parece que tinha mesmo algum peso... e muita história...

Em 1970, nos Dembos, participei mesmo numa operação (operação VINDE A NÓS! ... ainda me lembro o nome...) cujo objectivo era deixar camisolas e outros objectos "de luxo" (de autêntico luxo para aquela gente que vivia no mato e unicamente daquilo que o mato lhes dava) no sentido de as atrair e convencer a deixar os guerrilheiros.
Muita gente se apresentou, sendo posteriormente alojada em aldeamentos preparados para o efeito.

E é o que se me oferece dizer meu Caro Rosinha.
Eu entendo o seu melindre quanto à contabilidade de seres humanos para o efeito em causa.
Mas, na verdade, não era bem nesse sentido que ele funcionava, conforme procuro esclarecer.

Com os meus cumprimentos e um abraço

P. Cabrita

septuagenário disse...

Pedro Cabrita,

Se vir ao lado direito da página deste blog, encontra em leituras recomendadas, um pouco abaixo de Pag. Web de Pedro Cabrita, o blog "Luis graça&camaradas da Guiné" e ao clicar neste aparece cada post com uma numeração que já vai em mais de cinco mil: O post a que me refiro é o "Guine 63/74 5058.

Embora o assunto não tivesse nada a ver com Lobo Antunes, um dos editores mencionou o tipo de imagem com que a nossa geração vai ficar para a história, e nos comentários eu mencionei o livro sobre o Lobo Antunes.

Um dos comentadores transcreve na integra as palavras do escritor.

E a coisa pareceu-me tão "feia", que a ser real, não tem nada a ver com a interpretação de Pedro Cabrita.

Eu tambem fui furriel milºem 1961 e 1962 no Norte de Angola e sei distinguir o que é precipitação e premeditação.

E eu não creio que um comandante de batalhão ou de companhia tivesse o sangue frio de promover procedimentos que o escritor relata.

Claro que alem do que lá vem comentado já houve outras trocas de comentários por fora.

Cumprimentos

Antº Rosinha

Pedro Cabrita disse...

Caro Antº Rosinha.

Já li tudo aquilo que lá está escrito e o sentido é, de facto, outro.
Na verdade, há por ali muitas coisas, no mínimo, estranhas. Não é fácil opinar com alguma segurança sobre as afirmações de Lobo Antunes (L.A.). E o mais estranho é ele dizê-lo apenas agora.

Ninda, onde esteve L.A., tem duas curiosidades afins comigo e com a minha Companhia.
Como sabe, Ninda ficava a norte de N’riquinha e, se não estou em erro, a sua área de intervenção confinava mesmo com a minha. Entre elas havia apenas uma zona cor-de-rosa demarcada no mapa, área de implantação da mosca de sono, como sabe.
A segunda afinidade decorre da circunstância do período em que Lobo Antunes esteve em Ninda, corresponder ao período em que estive na N’riquinha; ou seja, fomos uma espécie vizinhos afastados, ainda que a alguma distância, territorialmente falando.

Li numa noite o “Cus de Judas”. Não resisti e eram 6 da manhã quando terminei. Tudo porque as descrições me remoeram as memórias e eu “voltei” à N’riquinha naquela noite. Nem cheguei a dormir. Às sete levantei-me para ir trabalhar.
Tanto quanto a minha memória recorda do livro, nada, absolutamente nada, daquilo que afirma agora vem lá no livro, cuja essência decorre em Ninda.

Sem querer entrar em polémicas, deixo no ar apenas algumas dúvidas.
Além disso, deixava também um breve desafio a algum ex-combatente bem documentado sobre a guerra (que os há e bem apetrechados) no sentido de procurar saber o número de baixas exactas deste Batalhão. Os 150 mortos, assim à partida, afigura-se-me um número elevado de baixas naquela zona. Não questiono por falta de dados concretos; mas seria um bom ponto de partida para aquilatar da “memória” de L.A.

1ª Questão
Vamos admitir a pontuação de que fala L.A. relativamente a armas, inimigos aprisionados ou mortos. Essa contabilidade existia, ainda que não de modo oficial, digamos assim. Era uma forma de entusiasmar a tropa a fazer a guerra da forma mais eficaz e atribuir um prémio aos mais empenhados.
Mas, tanto quanto me recordo, um guerrilheiro ou membro da população vivos valiam muito mais que mortos. E isso porque permitia recolher informações por vezes preciosas sobre o inimigo. Ora, assim sendo, a história de matar crianças, mulheres e homens, porque mortos valiam mais pontos, não corresponde à verdade. Ou uma falha de memória, ou uma fabulação favorecida por algum ambiente propício.

É bem provável que L.A., na qualidade de escritor, se tenha metido por veredas metafóricas, ou expressões de sentido lato, que, como é seu hábito, normalmente não esclarece, deixando ao leitor o trabalho de o desvendar.
Esta expressão “… quando estavam mortos valiam mais pontos, então não fazíamos prisioneiros…”, pode pretender uma de duas, ou ambas as coisas.
Uma é a referência encapotada à circunstância propalada de que a tropa especial (comandos, fusos e paras) não fazia prisioneiros, “porque só atrapalhavam…”.
A outra pode estar a querer denunciar que aquela tropa, onde ele se incluía, tendo em conta os pontos, chegava de uma operação e debitava: “… Fizemos cinco mortos!”; como estes “vivos” nunca terão existido… não faziam prisioneiros… e os mortos valiam pontos.
Não sei se me entende? Nas operações os mortos propalados nunca foram coisa muito exacta; quer para um lado, quer para o outro.
Mas matar por matar em busca de pontos parece-me um absurdo e, ou muito me engano, ou L.A. prepara-se para mais uma obra de ficção com África em pano de fundo.

(... segue no post seguinte)

Pedro Cabrita disse...

(cont.)

De referir ainda que L.A. se coloca no centro de um todo, “nós”.
Ora ele era médico; logo, jamais deu um tiro ou pisou terreno fora do arame farpado. Daí se tornar necessário fazer uma leitura mais abrangente das suas palavras, as quais, como alguns de nós sabe, nem sempre são de fácil entendimento ou alcance.

Noutros trechos da mesma entrevista (suponho que entrevista, porque não conheço) é clara a personificação que L.A. faz de estados de espírito, que por certo observou em muitos militares, quando sob a pressão da guerra e essencialmente a morte de camaradas. “… Ter talento ou jeito para matar sem remorsos… matar… matar… e o pior é que não sinto culpa…”.
Isto afigura-se-me por demais óbvio. L.A. nunca matou ninguém, nem ajudou a matar. Naquilo que se lê ele apenas personifica estados de alma que foi registando naqueles militares que, perante a morte de camaradas, se transtornavam e cometiam as maiores atrocidades apenas por vingança. Isso aconteceu um pouco por todo o lado… e eu vi…!

2ª Questão.
O comandante de companhia era Melo Antunes. Um homem de esquerda. Muito provavelmente um militar com muito pouca vontade de fazer aquela guerra contra um “inimigo” ideologicamente pouco natural. Bastará respigar um breve trecho da sua biografia:
“… A sua inquietação intelectual leva-o a Marx e outros “autores malditos” da literatura proibida pelo regime que acabarão por deixar uma marca indelével no seu pensamento e acção. Uma ousadia que, a curto prazo, tem um elevado preço: uma ameaça de expulsão da Escola do Exército e um “exílio” nos Açores…”

Como vamos aceitar este estado de coisas na companhia de um Melo Antunes? Como vai este homem permitir uma tal conduta?

3ª Questão
Porquê este silêncio com mais de 30 anos de L.A.? Um espírito inquieto sempre em busca de algo troante que o conduza a um galarim literário, que, na opinião de alguns, já merece?
Uma entrevista não é propriamente um texto elaborado, rebuscado e corrigido.
Por outro lado, L.A. preocupa-se pouco com o que diz, ou dele dizem. Nesta, como outras artes públicas, o importante é que digam.

Resumindo, eu não daria muita importância ao conteúdo intrínseco desta entrevista.
Não queria empregar o termo delírio.
Mas apetece-me dizer que L.A. pode não estar bem… ou cada vez mais o seu pensamento e a sua escrita se tornam difíceis de compreender para o comum dos mortais.

Com cordialidade

P. Cabrita

PS
Parece-me, contudo, importante referir que se cometeram muitas atrocidades nos 13 anos de guerra. O que aqui digo não pretende limpar nada. Já muito se escreveu sobre isso, mas provavelmente estamos longe, muito longe, de toda a verdade.
Já agora, será possível indicar-me a data desta entrevista?

septuagenário disse...

Pedro Cabrita,

Compreendo em geral a sua opinião sobre o L.A. e que talvez não olhe a meios para atingir certos fins.

Assim como olho para tudo o que se possa ter passado nos 13 anos de guerra, muitas coisas haverá para contar.

Como vivi, profissionalmente a vida em Africa, e vi muita coisa, nada destes assuntos me passam ao lado. Desde a guerra, ter trabalhado com "negros contratados",conviver com os comerciantes do mato, conviver com chefes de posto e os seus cipaios e a régua, dar recruta a soldados indígenas na tropa, e vê-los calçar botas pela primeira vez na vida deles, falar com sobas que não sabiam uma palvra de português e eram feiticeiros, povoações que ficaram ao lado dos Governadores, por exemplo o reinado do major Branco Ló que tinha tudo do lado dele, e como ainda fui passar 13 anos na Guiné como "cooperante", já viu como é dificil "engolir" afirmações como esta de L.A., até porque arrasta muita gente (oficiais e soldados) sem lhe pedir o testemunho.

P. Cabrita, esta história é públicada no livro UMA LONGA VIAGEM COM ANTONIO LOBO ANTUNES (pag. 391) de João Céu e Silva, da Porto editora, embora L.A. tenha outra editora, e está nas livrarias e hipermercados, há pouco tempo. Tem mais algumas referências à guerra mas poucas e sem novidades.

Por enquanto é só, mas acho que no blog da Guiné não fica por aqui. Se houver continuação comunico.

Um abraço,

Antº Rosinha

Anónimo disse...

Em Moçambique,eram os Rodésianos que nos apoiavam com os Hélis.As maneiras de ser e o modo-operan_
dis era muito próximo do dos Bo_
ers.Ainda havia um pormenor,eram
acampanhados por Pisteiros,mili_
tares brancos altamente treina_
dos,curioso alguns eram Portugue_
ses.Eles sisudos e pouco comunica_
tivos,só falavam Inglês para não
darem nas "vistas"mas pela cara
"topa-mo-los"Alguns deram a mão á
palmatória,eram sargentos Pisteiros
do exercíto Rodésiano.A última ope_
ração que fize-mos em conjunto,foi
em Dezembro poucos dias antes do
Natal."voa-mos" 15 a 20 minutos,le_
va-mos três dias para regressar à
Companhia.
C.N.

Anónimo disse...

Gostaria de saber o nome da localidade aonde estas fotos dos "Primos" foram tiradas. Obrigado

www.angola3441.blogspot.com disse...

Estas fotografias foram feitas em 1972, em N´Riquinha, Kuando-Kubango, Angola. Era um uma esquadrilha de helis Alouette III, Sul-africana, que actuava no Leste de Angola em apoio ao exército português. As aeronaves eram identificadas apenas por uma letra, visível na carlinga do heli, de modo a não comprometer a sua actividade. Normalmente, o heli canhão que acompanhava as operações, pertencia à esquadrilha "Os Saltimbancos", sedeada no Luso, Moxico.

Egidio Cardoso disse...

Este blog contém histórias da nossa estada, entre os anos de 1971 e 1973, num local designadodo por N'Riquinha (ou Neriquinha) situado entre as localidades de Rivungo e Mavinga na província angolana do Cuando Cubango.
Era então uma pequena base militar delimitada apenas por uma cerca de arame farpado ao lado da qual existia uma pista onde aterravam pequenos aviões.
Ao longo do blog poderá encontrar muitas mais fotos do local e arredores.
Actualmente apenas ali existem restos das ruínas do aquartelamento que poderá ver no Google Earth.