domingo, 11 de janeiro de 2009

O ataque ao Mugamba

O dia amanheceu sem novidades. Na verdade, pouca coisa acontecia no Rivungo, para além dos dias se sucederem às noites e estas aos dias. Cada novo dia era igual ao anterior, pastoso, quente, com a temperatura a ultrapassar os 40 graus. As fartas chuvadas, gotas grossas que se evaporavam ao primeiro contacto com o chão sobreaquecido, constituíam uma bênção que apaziguava o efeito das escaldantes ferroadas dos agressivos raios solares. As cantáridas, exibindo a sua cintilante cor verde metálica, quase preto, abundantes na época das chuvas, vagueavam sobre a areia endurecida pela borrasca, aproveitando a fresquidão momentânea do solo, acasalando num indolente e quase estático ritual, permanecendo o macho por longo tempo sobre a fêmea, fazendo jus ao poder que se dizia possuírem. Constava que as suas asas, secas e transformadas em pó, constituíam um afrodisíaco poderoso. Contudo, nunca me apercebi que alguém tivesse sequer tentado experimentar. Por um lado, era perigoso. O pequeno escaravelho segregava um líquido corrosivo que provocava uma queimadura na pele, difícil de sarar. Por outro lado, afastados da civilização e já só retendo uma imagem remota do que era uma mulher branca, a última coisa de que se necessitava era de algo com tal efeito estimulante. Tanto mais que o agradável perfume de mulher, era ali substituído por um odor anti-afrodisíaco que refreava o ímpeto e aconselhava ao recato.
A calma reinante foi abruptamente interrompida pela chegada apressada do Chefe França. Vinha acompanhado do administrador Litenda e de um elemento da população, nitidamente ofegante. Era um mensageiro enviado pelos agentes da Polícia de Segurança Pública destacados no Mugamba, com a missão de comunicar que o Kimbo tinha sido atacado por um grupo de turras.
Nestes casos, competia à tropa sair em perseguição dos atacantes.
- Dar-lhes caça … aniquilá-los!
Sentenciou o Litenda.
No meu ainda pouco conhecimento dos meandros da guerra, pensei para comigo que pouco ou nada haveria a fazer. O mensageiro só saíra do Mugamba quando a sarrafusca acabou, a distância era considerável e o percurso a pé demorado. Mesmo considerando a resistência daquela gente e a facilidade com que percorriam a pé grandes distâncias, era claro que já havia decorrido muito tempo.
- O mais certo é já estarem bem longe!
Alvitrou o chefe França.
No entanto, a estratégia da perseguição teria de ser cumprida. Era preciso que o inimigo soubesse que não podia repetir a graça. Dar-lhes caça e mostrar que estávamos ali, era o mínimo que se podia fazer, caso contrário, tornavam-se atrevidos e ainda acabavam por nos bater à porta.
Em menos de um nada, encontrava-me em cima de um unimog, que acelerava roufenho e saltitante pela arenosa e sinuosa picada que levava ao Mugamba, na vã tentativa de recuperar o imenso tempo que já decorrera desde o ataque. Comandados pelo próprio alferes Fausto, seguia mais de metade do efectivo militar do Rivungo. Haviam sido distribuídas, à pressa, rações de combate para dois dias, o alferes munira-se de um conjunto de cartas militares do terreno, carregáramos o armamento disponível e assim nos lançámos no encalço do inimigo que se atrevera a quebrar a monotonia de um dia que amanhecera quente, mas sossegado.
Levámos mais de uma hora a percorrer a distância que separava o Rivungo do Mugamba, um pequeno kimbo, no meio da mata, cujo isolamento apenas fora minorado porque a picada que vinha da Neriquinha, forçada a um desvio, obrigava as colunas de reabastecimento a por ali passarem. Era constituído por uma escassa dezena e meia de cubatas de capim, dispostas de forma irregular num descampado, cuja população, maioritariamente de etnia ganguela, se dedicava a actividades de subsistência – agricultura rudimentar, criação de meia dúzia de vacas e caça artesanal.
A protegê-las (o termo parecia-me um pouco exagerado), dois agentes da PSP, que por ali sobreviviam, sem terem para onde ir e sem nada para fazer, para além de assistirem ao indolente passar do tempo, tarefa bem mais monótona e menos interessante do que a da tropa. Pensava eu que, tal como nós, estavam ali porque para ali tinham sido enviados. Destacados em missão de soberania. Apercebi-me depois que, muitos deles eram voluntários. Razões económicas ditavam a opção. O vencimento era significativamente superior ao que auferiam na cidade. Logo, se ali estavam, é porque consideravam valer a pena o sacrifício.
O posto da PSP, residência e sede da autoridade, não era mais do que uma cubata de capim, paredes de paus a pique e chão de terra batida, maior do que as demais, mas apenas possuindo uma ampla divisão, onde jaziam duas pequenas enxergas cobertas por uma rede mosquiteira, ornamento fundamental para que um ser humano ali pudesse dormir sem ser devorado pela chusma de mosquitos. A um canto, uma pequena mesa onde descansavam alguns tachos e um petromax para iluminar as noites.
A construção era protegida por uma barreira de terra com cerca de um metro de altura e meio metro de espessura, amparada por duas fileiras de troncos enterrados na vertical, constituindo uma espécie de muralha artesanal a rodear a frágil barraca. A passagem para o interior fazia-se por uma única entrada, a lembrar burladeros em praça de toiros. A sua eficácia ficou demonstrada ao confirmar-se que um tiro de G3, disparado a curta distância, não trespassava a barreira.
Foi esta rudimentar fortificação que, a meio da noite, foi atacada, tendo estado debaixo de fogo durante duas horas, apenas defendida pelos dois elementos da PSP secundados por três ou quatro auxiliares, recrutados entre a população local, ripostando ao fogo inimigo com o escasso armamento disponível: duas G3 e algumas espingardas Mauser.
Resguardados atrás da frágil, mas eficaz muralha, disparavam sobre os atacantes, com comedimento, apontando para um alvo indefinido, apenas orientados pelos fogachos dos disparos inimigos. A reserva de munições não era grande e não era fácil avaliar quantos eram os atacantes, nem até onde estariam dispostos a ir. Ripostavam tiro a tiro, não obstante as G3 permitirem rajadas curtas, o mesmo não se podendo dizer das Mauser que, não sendo armas automáticas, por aí se ficavam. Cada tiro dado implicava a preparação manual para o próximo, naquele repetitivo movimento de culatra atrás, culatra à frente, enquanto houvesse munições.
Aos primeiros alvores da madrugada cessou a fuzilaria. Ou porque se lhes esgotou as munições, ou porque a escuridão deixara de os proteger, os atacantes desapareceram tão de repente como haviam chegado, deixando ilesos os até então sitiados.
Com as devidas cautelas, saíram da fortificação, procurando avaliar o resultado da escaramuça num reconhecimento pelos arredores. Os atacantes haviam-se entrincheirado atrás da cerca onde a população, durante a noite, guardava a sua reduzida manada de gado. Os animais estavam mortos. Apanhadas entre dois fogos, foram dizimadas pelas balas dos beligerantes, tanto de um lado como do outro.
A contenda não vitimou ninguém. Nem um único arranhão em quem quer que fosse. Também não visou a população. Contudo, foi esta que sofreu o maior prejuízo. Ficou sem o seu mais valioso bem patrimonial e principal símbolo de riqueza. As vacas.
Quanto aos dois agentes da PSP, fomos encontrá-los abalados e com a moral em baixo. Descontraíram com a nossa chegada, mas nunca mais dormiram tranquilos durante o resto do tempo que durou a sua missão naquele pedaço esquecido de fim de mundo.

...Continua em "A perseguição"...

16 comentários:

Rui Moio disse...

Por favor Egídio Cardoso a quantos quilómetros ficava Mugamba da fronteira? Em que ano é que ocorreu o ataque à aldeia?
Pergunto ainda se se lembra do nome do líder terrorista que chefiava a zona. Teria sido o Kenha do MPLA?
Numa operação realizada em 1972, na região de Mavinga, da qual fiz parte, as nossas tropas eliminaram o Kenha, comandante terrorista na zona sul. E, com isto, creio, ganhámos definitivamente a frente leste, à excepção da guerrilha da UNITA que se circunscrevia a uma pequena bolsa a norte do Luso, controlada pelas nossas forças. Estou convencido que, com a morte do Kenha devido a ferimentos recebidos em combate, foi eliminado o último reduto terrorista do leste de Angola.

Egidio Cardoso disse...

O Mugamba era uns dos três kimbos localizados ao longo da picada que ia da Neriquinha ao Rivungo. A fronteira com a Zâmbia, era definida pelo rio Cuando, do qual distaria cerca de 20 e poucos quilómetros.
Não posso precisar o mês, mas o ataque ocorreu no ano de 1972, talvez nos primeiros meses do ano.
Dos líderes do MPLA não tenho a mais pequena recordação. Admito que o então comandante da Companhia (Pedro Cabrita) possa saber algo sobre o assunto.
Quanto à operação de Mavinga, recordo uma, de grande envergadura, em que a minha companhia esteve envolvida por essas alturas e na qual morreram 15 elementos do grupo de GE’s da Neriquinha. Essa história está descrita no Livro “Capitães do Vento” da autoria de Pedro Cabrita.

Rui Moio disse...

Obrigado Egídio Cardoso pela pronta resposta e pela informação da operação em Mavinga que talvez tenha sido aquela em que participei. Estou ansioso por ler o livro "Capitães ao Vento" do Pedro Cabrita.
Na operação em que fiz parte estivemos acampados a 60 quilómetros a sul de Mavinga e, no regresso, acampamos à beira do rio, em Mavinga e, também, por uns dias, nas imediações do Dima (antiga kunjamba), à beira da estrada que liga Mavinga ao Cuito Cuanavale.

Egidio Cardoso disse...

Sim, conheci o DIMA, passei lá uma noite (Maio/73). Era um destacamento enquadrado por um grupo de combate da companhia de Mavinga. Até então, eram atacados com frequência, quase sempre de noite. Talvez um dos piores sítios para se estar no leste de Angola.

Gabriel Costa disse...

Caro Cardoso:

Creio que o RUI MOIO estará a falar do Kuenho, que era irmão do Fulai Mojuto, comandante do nosso Grupo de GE's, Este, o Fulai, foi morto na Chana da Quirongosa, perto de Mavinga, na operação onde morreram os tais 15 GE's adstritos à nossa Companhia.
O Kuenho, que já tinha sido dado como morto pelo Major Victor Alves (que esteve na Nerinha antes de nós), foi morto mais tarde...dizem... e pode ter sido na operação de que fala o RUI MOIO.
Um abraço
Gabriel

Gabriel Costa disse...

Não é Nerinha...mas N'RIQUINHA!!!

Rui Moio disse...

Agradeço ao Gabriel Costa a preciosa informação prestada.
Já não conseguia lembrar-me do nome da chana onde acampámos; foi na chana da Quirongosa!
Quando a nossa coluna (da operação) chegou a Mavinga ouvi de camaradas da companhia aí aquartelada que uns tempos antes teriam sido mortos vários GE's. Tinha na minha memória que me teriam falado em 8 mortos. Afinal foram 15.
Agora fiquei a saber um pouco mais sobre a história do Kuenha, nomeadamente que seria um indivíduo da zona pois era irmão do comandante do grupo de Ge's Fulai Mojuto que integrava o grupo dos 15 Ge's mortos pelo in.

Ironia do destino: o Comandante Kuenho é nome de várias escolas em Angola e de uma rua em Luanda e o Fulai Mojuto continua a ser um nome desconhecido de todos nós!

Egidio Cardoso disse...

Obrigado Gabriel.
Na verdade, a minha memória já não chegava lá. Só a referência ao facto do Kuenho ser meio irmão do Fulai Monjuto, me reavivou a memória.
Já agora, relendo Pedro Cabrita em "Capitães do Vento", verifico que teriam sido apenas 13 os GE's mortos e desses, só quatro seriam do grupo da Neriquinha.
Lembro-me bem do Fulai. Tenho uma fotografia dele, tirada no Kimbo da Neriquinha, junto com três furrieis: Gabriel Costa, P. Costa e Pinto. Que aproveito para juntar agora, no fim do post.

Pedro Cabrita disse...

Caros Companheiros

Tenho andado um tanto arredio deste alfobre de recordações, nas quais mergulho sempre com inusitado prazer e alegria. Agora que me aposentei, achava eu que iria ter tempo para tanta coisa para que arranjava sempre desculpas de não fazer, quando ainda no activo. Contudo, continuo a não ter tempo disponível como imaginava. Não deixa de ser bom sinal. É sinal de que estou ainda vivo e me mexo.
Caí aqui hoje e vejo-me deliciado com este remontar ao passado que tanto dos diz e nos une.
Antes do mais um abraço muito especial ao Egídio pelas excelentes prosas que nos vai deixando por aqui e o reavivar de tempos que nos dizem tanto e nos hão-de marcar para todo o sempre.
Quando comecei a ler os comentários, achei que teria que fazer algumas correcções. Mas vejo que já foram detectadas as imprecisões e corrigidas.
Emocionei-me com a foto do Fulai. Fiquei sem nenhuma.
Tinha por ele uma admiração enorme. Era um guerreiro e um chefe sem paralelo. Uma espécie de Rambo que não sabia pronunciar a palavra "não", quando lhe era proposta uma operação difícil, ou um percurso a percorrer num tempo "impossível".
Fulai Monjuto perdurará sempre na memória do meu pedestal de admiração pela nobreza de carácter e dedicação sem reservas a uma causa que, afinal, era mais a nossa causa que a dele.
Fulai Monjuto jamais figurará em nome de rua, ou de nada, porque, apesar da dimensão enorme da sua estatura como homem, terá abraçado a causa errada e entregue a própria vida em nome daquilo em que acreditou.
Fulai Monjuto merecia, isso sim, figurar numa qualquer rua de Portugal e assim perpetuar a memória de um guerreiro que acreditou neste país, mesmo que, volvidos 500 anos, a única coisa que tivemos para lhe oferecer foi uma guerra onde viria a perder a vida. Quem sabe se não deveríamos propor isso mesmo. Basta que alguém se interesse e mova os cordelinhos necessários. Uma boa tarefa para a ainda C.Caç 3441…
Em todo o caso, o seu nome ficará inteligivelmente gravado na enorme avenida da minha memória, onde preservo a lembrança daqueles por quem nutri toda a minha admiração, seja qual for o sentido da opção de vida que tomaram. O crédito que me fica é a do carácter do homem, não das suas convicções.
Sempre disponível para abordar temas daqueles tempos, gostaria de saber quem este companheiro Rui Moio.
Relativamente às operações que se referem, são duas perfeitamente distintas.
A operação onde morreram os GE’s foi um desastre onde o Rui Moio não terá participado. O pessoal envolvido na operação era todo GE e, além dos mortos, a quase totalidade dos restantes abandonou armas e equipamento, chegando muitos a Mavinga praticamente sem o fardamento sequer. A operação que refere é uma outra que obteve êxito.
Espero que esta incursão seja o início de um ou outro contributo.
O Gabriel também anda muito preguiçoso…

PS
Alguém sabe alguma coisa sobre a intenção de um militar da C.Caç 3442 em juntar todo o Batalhão num almoço de confraternização?

Pedro Cabrita

Egidio Cardoso disse...

Juntar o Batalhão? Confesso que era interessante. Especialmente porque se está a falar de um batalhão cujas companhias ficaram sempre muito distantes umas das outras.
Na verdade, a última vez que nos encontrámos foi a bordo do Vera Cruz, na ida.
De qualquer forma, é a primeira vez que tomo conhecimento dessa intenção.
É que não me lembro mesmo de ninguém de qualquer das outras companhias.

Mas louvo a iniciativa

E. Cardoso

Pedro Cabrita disse...

Fui contactado em tempos por um conterrâneo meu de S. Bartolomeu de Messines que manifestou enorme interesse em juntar o máximo de elementos das três companhias (41,42 e 43).
Tanto quanto sei a 3442, companhia a que ele pertencia, também faz almoços regulares.
Achei que seria uma ideia interessante e, no desconhecimento de quem ficou de organizar este ano, dei-lhe o contacto do Duarte para colher melhores informações e contactar com quem ficou incumbido dessa tarefa para este ano. Não sei de mais nada.

P. Cabrita

Anónimo disse...

oi eu so o luis silva santos o padeiro da companhia 3441 !
um abraço

Egidio Cardoso disse...

Ok, Santos. Bem vindo.
Esperamos que divulgues o blogue entre malta da companhia que conheças.
Ficamos à espera que nos mandes histórias para contar. E fotografias também.
Tudo é útil.
O endereço de mail está disponível clicando nos nomes dos contribuidores do blog. Pode ser o meu.
Um abraço
Cardoso

Hélder Teodoro disse...

Olá a todos, meu nome é Hélder Teodoro, e sou filho de um camarada vosso, aqui deixo o nome do meu pai , António Teodoro, que pertencia á Companhia 3442, Batalhão 3857 sendo o Cmdt , o Sr.Vilhena

Egidio Cardoso disse...

Olá Helder.
Obrigado pela visita.
Lamento mas não conheci o seu pai.
De facto a C.Caç 3442 pertencia ao mesmo batalhão, o 3857. Mas as três companhias que o compunham (3441, 3442 e 3443) ficaram sempre muito distantes umas das outras. Durante o tempo em que estivemos em Angola, nunca nos vimos uns aos outros. Apenas restam as recordações da viagem de ida no Vera Cruz (veja, neste blog a história "A Travessia". Aí fomos todos juntos, mas a viagem apenas durou 9 dias e não deu para fixar o nome de ninguém. Apenas recordo, de facto, o nome do capitão Vilhena como sendo o comandante da 3442.
Contudo se quiser continuar a seguir o nosso blog (o da 3441) poderá certamente imaginar um pouco do que terá sido a vida do seu pai naquele tempo.
Um abraço.
E.C.

Anónimo disse...

Ola Helder, sou o Farinha, o Fuba, da CCS. Conheço muito bem o teu Pai, ó Teodoro, olha o sonoro! Abração para ele e para todos os companheiros de jornada, que só esquecerei quando fechar os olhos! Para todos, longa vida com muita saúde! Até sempre amigos!