terça-feira, 1 de junho de 2010

O pôr-do-sol na savana

África, na sua inexplorada imensidão, é um mundo selvagem e hostil. Os seus grandes desertos não são locais que sirvam para dar abrigo ao ser humano. Dos poucos que por ali vivem apenas recordo os pequenos e irrequietos bosquímanes que desenvolveram o seu metabolismo adequando-o às exigências de tão inóspito lugar.
O bocado de fim de mundo que constitui a província angolana do Cuando Cubango, é composto na sua maior parte por uma savana encalacrada entre os dois grandes desertos africanos: o imenso Kalahari e o caseiro deserto de Moçâmedes.
Dois dos maiores rios angolanos deram o nome à província: o Cubango que nascendo no centro do território delimita a província a oeste, estabelece boa parte da fronteira com a Namíbia e acaba por morrer fundindo-se no enorme pântano do Okavango depois de percorrer cerca de 1.600 quilómetros e o Cuando que empresta parte do seu curso para definir a linha de fronteira com a Zâmbia, indo desaguar no Zambeze depois de atravessar a Faixa de Caprivi, território namibiano que constitui um dos mais conhecidos "cabo de frigideira" (panhandle) da geografia mundial.
A Neriquinha e toda a área de actuação da 3441 confinavam a leste com as margens deste rio e seus inúmeros afluentes, parecendo-nos o local mais remoto de todo o imenso território angolano. Por alguma razão alguém apelidou o Cuando Cubango de Terras do Fim do Mundo, como ainda hoje é conhecido.
Era um ambiente hostil que intimidava quem por ali aportava e só aos poucos e poucos, à medida que cada troço de picada, cada chana, cada recanto mais escondido se ia tornando familiar, fomos sendo capazes de apreciar a beleza selvagem e indescritível que todos os dias se exibia provocadora perante intrusos que dificilmente aceitariam ali viver de livre vontade.
Ainda assim, mesmo passado mais de um ano de por ali deambular nas frequentes operações de controlo do inimigo, sentia sempre um certo desconforto toda a vez que uma nova missão me levava para além das zonas já conhecidas, não obstante a semelhança entre cada recanto percorrido.
Uma noite de chuva diluviana ou um dia atormentado por trovoadas aterradoras acompanhadas de relâmpagos que se anunciavam como disparos de roketes, rachando árvores como se abertas de uma assentada por gigantescos machados invisíveis, compunham visões feéricas que pareciam querer amedrontar quem ousava profanar aquelas paisagens apenas molestadas pelas forças da natureza.
No entanto, todo aquele mundo de ninguém tinha a sua faceta simpática. Não era difícil olhar para tudo o que nos rodeava e encontrar pormenores de beleza indescritível, desde a imponência real da grande palanca preta, da elegância das gazelas passando pela ferocidade de búfalos com cara de poucos amigos até ao desajeitado galope dos gnus para só falar de alguns dos elementos que compunham a rica fauna que diariamente desfilava perante os nossos olhos.
Dependendo da sensibilidade de cada um, até o colorido da mais pequena flor que se abria ao sol depois das primeiras chuvas, pincelando de cores múltiplas a paisagem agreste, no meio de capim verdejante, oferecia um contraste de beleza no meio daquela imensidão de mato que, durante a época seca, alimentava queimadas gigantescas num afã destruidor de tudo transformar em negro até as primeiras chuvas voltarem a pintar de verde toda a paisagem.
Contudo, o grande actor, imponente e castigador que por ali se exibia durante todo o ano, era o sol. Depois de infernizar a vida de todo o ser vivente que se atrevesse a pisar o seu palco, recolhia-se ao fim de cada dia em espectáculos impossíveis de descrever, numa autêntica explosão de cor, pintando quadros diferentes sempre que se recolhia, desaparecendo de seguida como se se enterrasse na linha do horizonte.
É verdade, o pôr-do-sol na savana era sempre um espectáculo que me deslumbrava a cada fim de dia.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

SENTINELAS

Naquelas paragens havia uma importante preocupação diária - a segurança.
A hipótese de um ataque ao aquartelamento não era ficção e não podia nunca ser encarada com leviandade. Aliás, o ideal seria pautar o nosso comportamento considerando como altamente provável a ocorrência de um ataque. Erro seria admitir o contrário, mesmo sabendo que isso não acontecera com as companhias que nos antecederam. E todos levavam isso a sério como ficou demonstrado certa vez, por alturas da visita do segundo comandante do Batalhão, episódio já anteriormente descrito pelo Cabrita.
Assim, era imperioso que uns se encarregassem da segurança dos outros, especialmente enquanto dormiam. Sim, alguém tinha de ficar permanentemente acordado, tarefa que competia, em primeira linha, aos praças de acordo com a escala de serviço. Em segunda linha, ao sargento-de-dia, cuja missão era velar por quase tudo o que se passava no aquartelamento no espaço de 24 horas, incluindo as rondas nocturnas por todos os postos de sentinela procurando garantir que ninguém dormia no posto.
Relativamente ao serviço de sargento-de-dia e considerando que éramos cerca de uma dúzia, a tarefa era mais suave. Doze dias de intervalo entre cada serviço garantiam pelo menos onze noites de sono sem interrupções. Mas no que toca aos praças, a coisa era bem mais penosa.
Ao longo dos quatro lados que definiam o perímetro da cerca de arame farpado que delimitava o local, haviam sido construídos frágeis postos de sentinela empoleirados sobre quatro paus e protegidos por chapa ondulada. Não me recordo de quantos eram. Só sei que garantiam a vigilância em todas as direcções.
Durante o dia, apenas eram escaladas duas sentinelas, uma cobrindo o lado da pista e outra garantindo segurança à parte de trás que confinava com a mata que, por razões de segurança se procurava manter desbastada de forma a garantir uma faixa desmatada de cerca de 100 metros, mais coisa menos coisa, entre limite do arame farpado e a orla da mata.
Durante o dia, o calor intenso transformava em martírio as duas horas de cada quarto de sentinela, fazendo com que alguns procurassem um pouco de sombra no chão por debaixo do posto.
Contudo, à noite era muito mais penoso. O frio no tempo do cacimbo, o desconforto de um homem só no meio da escuridão enquanto outros dormiam e o desejo do conforto de uma enxerga, tornava quase em castigo o trabalho de garantir a segurança dos demais. Ainda para mais, durante a noite, era preciso reforçar a vigilância colocando um homem em cada um dos postos existentes. E como a rendição ocorria a cada duas horas, por cada posto eram necessários homens suficientes para garantir o reforço desde as oito horas da noite até às oito da manhã do dia seguinte. Ou seja, seria necessário a quase totalidade do efectivo de um grupo de combate para assegurar a vigília.
Ora uma companhia apenas tem quatro grupos de combate e como um estava em permanência no destacamento do Rivungo, isso significava que em média cada homem teria de estar de sentinela, à noite, pelo menos de três em três dias.
O pior era quando um dos grupos era destacado para uma das frequentes operações que constituíam a nossa principal missão naquelas bandas, passando dois, três e por vezes quatro dias a deambular pela mata.
Os que ficavam teriam de garantir a segurança, agora mais premente, dada a redução dos efectivos. Feitas as contas, era quase certo que os que ficavam tinham garantido um quarto de sentinela, noite sim, noite sim, pelo menos enquanto durasse a operação.
Numa dessas alturas, competindo a segurança ao meu grupo de combate e tendo eu acabado de afixar a escala de sentinelas que elaborara com muito cuidado, sou interpelado por um dos soldados que, tendo estado de reforço na noite anterior se revoltava ao ver o seu nome de novo na escala para a noite seguinte.
Procurei explicar que, estando quase dois pelotões na mata, isso iria acontecer também no dia seguinte e que o mesmo se passava com os outros. Não havia alternativa, conforme parecia claro de acordo com as listas constantes da folha de papel que exibia.
Mas nada o convencia. Que não podia ser! Alguém estaria de certeza a ser beneficiado e isso só poderia significar que eu tinha qualquer mala-pata contra ele.
Tentei acalmar o homem, expliquei que não, mostrei as escalas anteriores e procurei que percebesse que não havia solução.
Não convencido e com ar nitidamente agastado, virou costas e com um gesto de resignação, desabafou.
- O meu furriel é que sabe ... você é que leu os livros!
E, retirou-se remoendo impropérios, não sei se a mim, se à sua sorte.

sábado, 1 de maio de 2010

O NOSSO PRIMEIRO

Creio que não será difícil imaginar a quantidade de problemas administrativos que uma companhia, ou qualquer outra unidade militar, enfrenta no dia-a-dia. Imagine-se agora essa companhia num teatro de guerra e acrescentem-se as dificuldades inerentes. Condimente-se o bolo com a ausência de vias e meios de comunicação e ao facto de me estar a reportar a um tempo em que o computador era peça de ficção.
Aposto que a grande maioria do pessoal da 3441, incluindo oficiais, sargentos e praças, nunca chegou a aperceber-se plenamente da complexidade e dimensão das minudências de natureza administrativa e financeira que em cada dia tinham de ser resolvidas.
Para tudo havia uma dotação, um limite financeiro, uma verba com a correspondente burocracia plasmada à saciedade nas NEP’s, nos códigos, regulamentos, circulares, ordens e instruções produzidas na retaguarda pelos guerreiros do ar condicionado.
Para tudo havia um impresso, um modelo, um formulário um relatório. E tudo tinha de bater certo, ao centavo, o débito igual ao crédito. Até as munições eram contadas, sendo exigidos relatórios rigorosos a justificar cada bala disparada. Um mundo de burocracia capaz de dar cabo dos nervos e fazer a cabeça em água a qualquer um.
Para dar conta de tudo isso, só os profissionais da tropa, que sabiam decorado de trás para a frente e salteado, todas as regras, todos os prazos e datas-limite. Conheciam os impressos, o número de vias e respectivas cores. Sabiam quando e para onde deviam ser remetidos: era uma exemplar disto para o comando no Cuito Cuanavale, um exemplar daquilo para o comando da Zona Militar Leste, outro para a manutenção militar no Luso, um original de qualquer coisa para o quartel General, a requisição de qualquer peça para o serviço de material. Enfim o paraíso da burocracia.
Eram tarefas com que o Capitão teria de lidar. Ele era o responsável máximo pela ordem e cumprimento daquele mundo de confusão. Só que o nosso pertencia à primeira leva de capitães milicianos, comandantes que o exército recrutou à pressa esgotado que estava o quadro dos formados na academia. O nosso capitão era, assim, um perfeito ignorante (sem ofensa) dessas andanças sobre as quais, quanto muito, teria aprendido umas luzes durante o pouco tempo que levava de tropa. E isso punha-o à mercê do primeiro-sargento que lhe calhasse. Numa companhia, o primeiro-sargento era uma espécie de chefe de secretaria, contabilista, tesoureiro e escriturário-mor, autêntico mangas-de-alpaca que dominava esse mundo de papéis e burocracia. E isso não era muito bom. Os sargentos, profissionais da tropa, não tinham lá muito boa fama. Eram conhecidos na gíria por, chicos. Aliás, chico era todo aquele que, uma vez acabado o serviço militar obrigatório resolvia ficar, continuando agarrado à farda e às exigências da disciplina militar. Dizia-se então que:
- Meteu o chico.
Um chico, naquele tempo, era sempre alguém que trazia colado à pele um acervo de epítetos mais ou menos soezes, ou pelo menos, maledicentes. O chico era um lateiro, um retrógrado boçal, agarrado ao dinheiro, capaz da maior das vilanias por meia dúzia de tostões. Se o rancho não agradava, a culpa era do sargento que, para poder gamar algum, cortava na carne (mais cara) e aumentava a quantidade de massa e feijões (mais baratos).
O chico, naturalmente mal-humorado, fazia exigências só para chatear, para compensar o seu complexo de inferioridade. Por oposição, era um autêntico lambe-botas, excessivamente subserviente perante qualquer um que tivesse patente superior à sua.
O sargento chico era, em suma, alguém que, se não tinha o proveito, da fama não se livrava. Se ficou na tropa era porque se queria encher, enriquecer à custa dos outros. Era como se exibisse um estigma, um rótulo colado à pele que catalogava a classe, embora durante o tempo em que fui militar (três anos e uns mesitos) tenha encontrado muitos que não encaixavam nesta definição.
Imagino assim os temores que o capitão Cabrita terá sentido no princípio da sua espinhosa missão, ao concluir que estaria nas mãos do primeiro-sargento, ainda sem saber se lhe saíra em sorte um dos bons ou dos outros.
Mas o Cabrita devia ter uma estrelinha cintilante que o amparou durante a sua efémera missão de garante do cumprimento das mil e uma normas do injuntivo regulamento militar. Coube-lhe em sorte um dos bons, direi mais, dos melhores.
Não foi preciso muito tempo para todos perceberem que nos saiu na rifa um dos melhores sargentos do exército português. Ao nosso Primeiro, de seu nome Manuel António Pinto, não se aplicava nenhuma das características condenáveis que se costumavam apontar aos chicos:
Desde logo ficara demonstrado que não era lateiro. É certo que não costumava achar que o rancho era sempre bom. Mas comia e não barafustava, talvez porque, lá no íntimo, tivesse consciência que os escassos vinte e dois escudos e meio por dia que o vagomestre dispunha para alimentar cada homem, compunham um magro orçamento que não permitia lautas refeições, Acredito, contudo que, se assim não fosse, o seu profissionalismo não lhe permitiria a veleidade de refilar da qualidade do que lhe punham no prato.
Comia naturalmente do rancho como todos os outros, ocupando um qualquer lugar na mesa corrida da messe de sargentos, em amena cavaqueira com os jovens que na altura integravam o grupo de furriéis da companhia.
Por outro lado e em evidente contradição com a maledicência, era uma pessoa pacífica culta e educada, para além de bem-humorado. Todos o respeitavam, não por temor, ou porque o exigisse. Respeito, merecia-o naturalmente e todos lho reconheciam.
Era um homem maduro, na casa dos quarenta anos, mais ou menos o dobro da idade da maioria dos furriéis que compunham o corpo de sargentos da companhia. Sendo apenas o camarada mais velho e sem querer exagerar, era como se fosse nosso pai, ou se se quiser, um irmão mais velho, bem mais velho.
Sábio, sabedor, ponderado e dotado de bom senso em quantidade generosa, a sua opinião avisada foi, aos poucos, sendo considerada importante, necessária, quase obrigatória.
- Oh meu primeiro! O que me aconselha…?
Perante a pergunta, respondia sempre com voz pausada, carregando nos esses a denunciar a sua origem nas frias terras altas da Guarda.
Se entendia que não deveria aconselhar, recomendava:
- Você é que tem de decidir.
E rematava com o seu sotaque beirão:
- Pense bem que há-de encontrar a resposta.
Passava o dia na secretaria, tratando da papelada, controlando os orçamentos e dali apenas saía para o almoço e no fim do expediente, percorrendo, no seu passo lento e seguro, o caminho de tabuinhas que separava a secretaria da messe. Ao fim do dia, sentava-se junto a nós entrando na conversa e contando estórias antigas. Ria-se com gosto das brejeirices que apimentavam factos passados da sua juventude e partilhava connosco as suas alegrias, pelo menos algumas. Lembro-me do seu indisfarçável contentamento ao divulgar, entusiasmado, após o regresso de férias, que tinha comprado um carro novo. Para ele o modesto Citroën Ami 8 que comprara era um carrinho muito bom, uma maravilha. Ficava assim demonstrada a sua natural e não cultivada modéstia.
Não obstante o Cuando Cubango ser abundante em caça, nunca vi o primeiro-sargento sair para a mata com esse objectivo, muito embora, por uma questão de necessidade se fizessem frequentes incursões de caça. Contudo, fazia questão de integrar um pequeno grupo que, incluindo o capitão, o médico e mais um ou outro, se entretinha, após o jantar e a coberto da noite, a apanhar uns quantos coelhos que habitavam no terreno tangencial à pista no lado norte.
Utilizando um velho Jeep Willis de três velocidades e que consumia cinquenta litros aos cem, percorriam a pista até ao fim, trazendo no regresso quatro ou cinco coelhos que, encadeados pelos faróis, se deixavam apanhar. O petisco que com eles se fazia e a que o primeiro não resistia, era um autêntico regalo para papilas gustativas adormecidas pela comida sensaborona do rancho.
E assim, durante algum tempo, quatro ou cinco coelhos eram diariamente sacrificados, até que, não sei se porque deixou de ter piada, se porque a ninhada se mudou para outras paragens ou se foi simplesmente dizimada, foi dado por findo o entretém.
Quanto ao mais e como é bom de ver, o Primeiro era um homem rigoroso no cumprimento dos seus deveres. Mas não era apenas exigente consigo. Sem que alguém alguma vez o tenha ouvido reclamar ou exigir rigor no comportamento, sabíamos que gostava que todos se comportassem com zelo e lealdade, de acordo com as regras. Disso se apercebeu o furriel das transmissões, que fora designado para gerir a cantina.
Foi demitido dessas funções, simplesmente porque as contas apresentadas, ou não o convenciam ou não estavam de acordo com os procedimentos que ele considerava os correctos. Nunca soube exactamente o que terá feito o furriel para assim ser demitido, já que a lisura profissional do primeiro-sargento Pinto nunca lhe permitiu divulgar. Simplesmente me comunicou que tinha proposto ao capitão que, a partir daquele momento, seria eu a lidar com as coisas da cantina.
Das razões de facto, provavelmente só o capitão teria sido informado. Homem leal, discreto, solidário e íntegro, o capitão podia ter a certeza que se houvesse algo que só a ele devia ser dado conhecimento, mais ninguém o saberia.
Era também um bom coração, um amigo que se preocupava com os sentimentos dos outros. Ainda hoje recordo a forma cuidada que usou para me comunicar o desfecho trágico do acidente que matou o Gonçalves. Demonstrando que a sua perspicácia não se confinava às coisas da secretaria, apercebera-se que a relação de amizade que me unia ao Gonçalves era forte. É claro que sabia sermos conterrâneos mas, ainda assim, saberia que essa não seria a principal razão que nos tornara amigos. Sendo um dos primeiros a ter tido acesso à mensagem que, transmitida via rádio a partir do Rivungo, anunciara a desgraça, aprestou-se, pessoalmente, a comunicar-me, com cuidado mas sem grandes rodeios, que não mais veria o meu amigo e companheiro.
Na altura não medi bem o alcance do gesto. Tomei-o como sendo apenas o mensageiro da desgraça. Só mais tarde me dei conta que isso revelara muito da sua personalidade de ser humano. Preocupado com os sentimentos dos outros, fez questão de me pôr ao corrente do facto antes que a notícia corresse os quatro cantos do aquartelamento como sussurro funesto ameaçando a tranquilidade e os sentimentos de cada um.
É notório. Eu gostava do nosso primeiro. Ainda hoje gosto. É sempre com indisfarçável alegria que o revejo ano após ano por ocasião dos nossos encontros anuais. Comparece sempre que pode, especialmente se o local do encontro não for muito longe. A idade já não lhe permite grandes caminhadas. Mas gostamos de o encontrar de boa saúde. Tenho a certeza que esse é o sentimento de todos.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Encontro do Batalhão - Fátima

Como provavelmente a maior parte já se deu conta, este ano gerou-se um conflito de organização de encontros, que estamos a procurar resolver a contento de todas as partes.
O companheiro João Águas, da C. Caç. 3442, vinha manifestando há mais de um ano o propósito de promover um encontro a nível do Batalhão. Uma organização complexa, mas que o J. Águas se propôs levar em frente.
Ocorre que, por motivos que não importam agora avaliar, não foi possível promover uma conciliação de propósitos de modo juntarmo-nos ao evento organizado pelo João Águas. Por esse motivo, todos terão recebido duas cartas: uma para Chaves e outra, mais recente, para Fátima.
Assim e para atalhar caminhos, importa agora informar que se tentou resolver o impasse, mas sem sucesso.
Assim; mantém-se marcado o evento para Chaves.

Mas, se alguém quizer ir a Fátima, o evento vai permitir, pela primeira vez a reunião das quatro companhias do batalhão 3857 onde estará o 2º comandante do batalhão, Ex- Major Caetano (hoje general).

O encontro será no dia 29 de Maio no Largo da Cruz Grande (lado direito do Santuário de Fátima) onde será celebrada missa por alma dos falecidos do batalhão.

O almoço terá lugar no restaurante TRUÃO, a 5 Km na estrada de Minde.

As inscrições para o encontro deverão ser feitas até ao dia 15 de Maio:

- Por SMS para o 96 582 34 91 – com o seguinte texto: “C.Caç. 3441 – Nome do participante (x pessoas)”
- Directamente para os telefones: 96 582 34 91 (João Águas de Faro) ou 96 793 56 48 (Carlos Almeida de Vila Real)
- Por email – mailto:joaoaguas@gmail.com ou carlosacalmeida@hotmail.com - indicando sempre o Nome, Companhia e nº de pessoas.

Contamos com a vossa presença

terça-feira, 20 de abril de 2010

A BARBEARIA

Se outra coisa não houvesse, as rígidas regras do atavio militar obrigariam à existência de uma barbearia. Na Neriquinha havia uma, logo ali nas traseiras do depósito de medicamentos localizado ao lado da messe de oficiais.
E tendo de haver uma barbearia, também teria de haver um barbeiro, mas alguém que na vida civil já tivesse exercido a profissão, já que, se bem me lembro, esta especialidade não era ensinada na tropa.
O problema é que, com vinte anos, a experiência de quem quer que tivesse sido profissional da arte, seria pouca ou nenhuma no manuseio de ferramentas mecânicas de cortar cabelo, já que ainda não tinham sido inventadas as movidas a electricidade. E, se as houvesse, de pouco serviriam, já que, electricidade era um bem raro que apenas estava disponível do cair da noite até à hora do recolher e, ainda assim, sujeito aos humores e achaques do pequeno gerador.
Recordo, contudo, que nem toda a gente recorria aos préstimos do barbeiro encartado, cuja especialidade oficial era a de corneteiro, arte para a qual também não revelava jeito especial. Era uma situação igual a tantas outras na tropa. Os estrategas escolhiam quem bem entendiam para o desempenho de ofícios vários sem se preocuparem se os seleccionados tinham vocação ou não. Mas enfim, tudo se passava sem grandes problemas, recorrendo-se amiúde à arte maior do desenrasca. Apenas se barafustava quando o cozinheiro feito à força se revelasse um clamoroso erro de casting o que, para nossa desgraça, acontecia mais vezes do que seria de desejar.
Bem, voltando à barbearia, a verdade é que, ao fim de algum tempo, muitos se aperceberam que o corneteiro, para além de não ter jeito para a corneta, também não tinha para cortar cabelo, transformando a ida à barbearia em sacrifício, agravado pelas mal afiadas ferramentas, rombas de tanto mau trato.
Mas o problema haveria de ser minimizado pelo cabo Vilela. Radiotelegrafista, com jeito para muita coisa, viu-se transformado no homem dos sete ofícios capaz de tudo concertar. Revelando um jeito muito especial para convencer o gerador a não fazer birras, também dava uma perninha em coisas tão díspares como sejam, a arte da fotografia e, está bem de ver, a de cortador de cabelo.
E é assim que a barbearia, pelas mãos do Vilela, saiu do seu cubículo escondido atrás do armazém de medicamentos e instalou-se ao ar livre, perto do balneário, com uma crescente clientela a entregar-se nas mãos do improvisado artista que não perdia a oportunidade de inventar cortes da moda, muito apreciados pelas hierarquias militares.
Como ferramentas, apenas uma tesoura (arranjada não sei onde) e um pente.

sábado, 10 de abril de 2010

Almoço anual de confraternização

Tal como tem vindo a acontecer nos últimos 18 anos, vamos realizar o almoço anual de confraternização dos ex-militares da 3441. É sempre no último sábado do mês de Maio.

Este ano a organização ficou a cargo do João de Sousa (ex- 2º sargento) e por isso será em Chaves.

Local:
Albergaria Borges
(vê na Internet)
Estrada Nacional nº 2
Outeiro Jusão
Chaves

Dia: 29-Maio-2010
Hora: 13 horas

Ementa:

Entradas:
Paté da casa, azeitonas, bolos de bacalhau, rissóis, presunto, camarão.
Carne:
Misto de cabrito e vitela assada no forno e feijoada à transmontana
Sobremesas:
Sobremesas variadas da casa, frutas laminadas (buffet)
Bebidas:
Vinhos maduros e verdes reserva da casa (brancos e tintos), refrigerantes variados, água
Café.

Preço: 25,00€ por pessoa
Para quem quizer ficar em Chaves e dar uma volta pelas redondezas pode pernoitar na Albergaria. O preço do Alojamento é de 40,00€ por casal, com pequeno almoço incluído.

Importante:
Confirmar a presença até ao dia 12 de Maio, para:

João de Sousa
Telefone: 276 327 367
Móvel: 939 577 970

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Férias - O contraste com a civilização


Incontidos desejos e saudades de quase tudo o que deixara para trás impeliam-me a uma fuga da Neriquinha. Mais de nove meses haviam passado desde que, sem data de regresso agendada, fui largado no meio daquela terra de ninguém para onde não confluíam estradas e aonde ninguém estava interessado em ir a não ser que a isso fosse obrigado. E nem o facto de partilhar aquela autêntica viagem à pré-história com mais 140 homens evitou que, de quando em vez, me sentisse na pele de Robinson Crusoé. Não estávamos numa ilha, mas a ausência de tudo e a inexistência de contacto com o mundo exterior quase me convencia do contrário. Um pequenino avião trazendo correio duas vezes por semana, o Nord Atlas às terças-feiras com os frescos e o MVL uma vez por mês com o reabastecimento de tudo o que não era perecível, eram as únicas visitas a que tínhamos direito.
A nossa vida estava confinada a um singelo quadrado delimitado por uma tosca cerca de arame farpado, onde pouco mais de uma centena de homens fardados ou quase, faziam companhia uns aos outros à medida que o calendário se arrastava penosamente na contagem lenta dos dias. À volta, apenas mata, atravessada aqui e ali por picadas formadas pelos rodados das viaturas que, saindo daquela espécie de acampamento, levavam a lugar nenhum.
Vivíamos assim no meio da natureza selvagem, na sua maior parte nunca tocada e sem nada de permeio. Nem muros nem amarras. Apenas uma frágil cerca de arame farpado nos separava da savana imensa. Sair do perímetro e trilhar aqueles caminhos, implicava riscos a exigir cuidados especiais, obrigando a carregar equipamento de combate, nem que a saída se destinasse apenas a recolher, a pouco mais de dois ou três quilómetros, a lenha necessária para a cozinha ou para aquecer o artesanal forno de pão.
Vivia-se assim uma espécie de claustrofobia em campo aberto que alimentava o tédio e condicionava os comportamentos. Sem terem para onde ir, alguns procuravam enganar o juízo vestindo a inútil roupa civil guardada no fundo das malas e passeavam-se enterrando os sapatos na areia para percorrer os escassos 50 metros que separavam a caserna do barracão onde funcionava a cantina. Tudo apenas pelo prazer de beber umas cervejas com indumentária colorida, em busca de memórias das esplanadas da grande cidade.
Por ali não havia mais nada. As localidades mais próximas resumiam-se ao Rivungo e a Mavinga. Mas estas, ficavam a cerca de 7 horas de viagem por picadas empoeiradas e pouco mais tinham do que meia dúzia de barracões cobertos a folhas de zinco onduladas em tudo idênticos aos da Neriquinha. Tirando isso, as cidades mais próximas eram quase inacessíveis; o Luso, a cerca de uma hora e meia de avião e o Cuito Cuanavale, a três ou quatro dias por picada e que ninguém estava interessado em visitar. Mais longe, a cidade de Serpa Pinto, de onde provinha o MVL.
Ao fim de algum tempo, já ninguém se lembrava que, lá longe, existiam lojas, restaurantes, esplanadas e imaginem lá, café … cremoso, tirado à pressão. As saudades que eu tinha de saborear uma bica bem tirada. E um bife na Portugália empapado em molho de mostarda … e … e tudo o mais.
- Será que em Belém ainda fabricam pastéis de nata? Interrogava-me em diálogo com os meus botões.
- E na Trindade, ainda serviriam búzios? E pregos no pão?
O facto é que na Neriquinha não havia nada disto.
Também não havia ruas, nem carros. Logo, trânsito era coisa de ficção. E o mesmo se podia dizer das regras de trânsito. Prioridades, pisca-piscas, ultrapassagens e tudo o mais, eram coisas inúteis. As três berliets e os quatro ou cinco unimogs que constituíam a frota da 3441 andavam por onde fosse preciso, seguindo as direcções que os condutores entendiam ser as melhores, sem preocupações com regras de trânsito. Aliás pensar nisso até seria ridículo.
Assim, o dia-a-dia, monocórdico e quente, não variava. Dormia-se numa camarata, sempre com as mesmas pessoas por companhia. Já se conheciam os diversos timbres do ressonar de cada um e familiares os seus tiques e manias.
- Lembram-se que o Viola dormia de boca aberta?
Um dia, alguém, não me lembro quem, espremeu para dentro da boca do Viola um tubo inteiro de pasta de dentes. Foi uma risada geral quando, engasgado, acordou estremunhado cuspindo violentamente e raispartando contra todos.
Nas andanças de cá para lá, percorrendo os passadiços de tabuinhas construídos para evitar a areia, cruzávamo-nos sempre com as mesmas pessoas.
Ao almoço e ao jantar, ocupava-se o mesmo lugar, sempre na mesma mesa corrida, com as mesmas conversas e tendo por companhia os mesmos companheiros de pernoita.
Discutiam-se futilidades, que ali as novidades não chegavam ou só vinham de quando em vez nas linhas de um aerograma ou ouvidas num rádio roufenho em emissões para entreter militares, insistindo nas velhas cançonetas do Paco Bandeira:
- Lá longe, onde o sol castiga mais …..
Ocupava-se o tempo, com jogos de cartas ou bebendo cerveja directamente da garrafa, que o copo anulava a tímida fresquidão conseguida ao fim de muitas horas dentro do frigorífico alimentado a petróleo e sem capacidade para o ritmo a que eram esvaziadas.
Alguns dedicavam-se à leitura de revistas retardadas, fora de prazo, enviadas pelo Movimento Nacional Feminino que as recolhia nos monos que entupiam os armazéns da Agência Portuguesa de Revistas. Eram revistas de mexericos ou de fotonovelas que ilustravam foleiros contos de amores e desamores da desgraçadinha do costume.
Jornais, ali não chegavam. Certo dia, não sei donde, nem como, uma edição retardada, com mais de 15 dias, do jornal “A BOLA” aportou àquelas bandas. Andou de mão em mão até ficar amarfanhado, roto, amarelecido, sujo e com nódoas de gordura. Creio que não ficou nada por ler. Ninguém se atreveu a atirá-lo para o lixo, acabando abandonado num canto, ali ficando por muito tempo.
Eu tinha que sair dali. Precisava de respirar outros ares e o mês de férias a que tinha direito vinha mesmo a calhar. O Gabriel regressara há pouco tempo depois de um prolongado mês de férias. Pelo menos foi o que nos pareceu, que a ele passou num quase piscar de olhos. Trazia novas do Puto. Um novo filme que contava a história inédita de um tal de Trinitá e do seu cavalo amestrado. E as novas tendências musicais a anunciar o fim da era dourada da década de sessenta.
O Gabriel parecia empolgado e contagiava toda a gente aniquilando a réstia de indecisão que ainda pairava na minha cabeça. Deram-me o contacto de uma agência de viagens em Luanda que tratava de tudo. Volvidas duas semanas, recebi a resposta. Estava tudo tratado e com viagens marcadas. Agora já não podia voltar atrás. Nem queria. Estava demasiado empolgado para pensar em desistir. Na verdade, creio que se não fosse o cansaço não teria conseguido dormir nas noites que faltavam para a partida. A excitação não deixava.
Só era preciso sair dali, já que a Agência apenas garantia a viagem a partir do Luso. Para lá chegar era preciso contar com a boleia do Nord da Força Aérea, às terças.
E assim foi. Em pouco mais de uma hora de viagem, o Barriga de Jinguba deixou-me às portas da civilização, despejando-me no aeroporto do Luso.
Reservei quarto na Pensão Central, que a viagem para Luanda só seria no dia seguinte e percorri as ruas da vila, sentindo-me na pele do saloio que vem à cidade pela primeira vez.
Sentei-me na esplanada do café e pedi uma bica. Mais de nove meses haviam passado desde que bebera a última. Degustei o café em pequenos sorvos de prazer à medida que, mais parecendo um cata-vento, seguia com o olhar tudo o que bulia. Cheguei a recear ser interpelado por alguém que se sentisse ofendido pelo meu ar embasbacado. Fixava qualquer mulher que passasse seguindo-a de longe até a perder de vista e reagia com sobressalto a qualquer buzinadela mais intensa. Na verdade, sentia-me num mundo novo, não obstante o movimento da pequena vila do Leste de Angola ser inferior ao de qualquer cidade de província. Era um facto, já não estava habituado ao bulício urbano.
Um velho Friendship da TAAG, fazendo escala em Nova Lisboa, levou-me até ao bulício de Luanda, deixando-me no aeroporto mais morto que vivo em consequência da atribulada viagem.
Bonita e aprazível, Luanda era uma grande cidade. Cosmopolita e movimentada, quente e luminosa, com muitas esplanadas e cafés, gente, mulheres, de mini-saia, já que o calor e a moda criada pela bendita Mary Quant puxavam as saias bem acima dos joelhos.
A fome levou-me à esplanada do Amazonas onde matei saudades saboreando uns camarões e um suculento prego no pão, mal passado, como eu gosto e bem acompanhado por umas quantas imperiais, fresquinhas, fervilhantes, acabadinhas de tirar.
Ah! O prazer que foi beber a bica, sentado na Versalhes, lendo o jornal do dia. E a volta pela cidade, sem destino ou rumo, apenas pelo prazer de deambular no meio do frenesim citadino.
Percebi que quem vive na cidade e nunca dela saiu, não tem como perceber o que é viver dia após dia no meio de coisa nenhuma.
Não é assim de admirar que a chegada a Lisboa já não tivesse tido aquele impacto. Apenas estranhei a cor acinzentada da cidade, a luz mortiça e a temperatura amena, quase fria, do mês de Setembro. Em África havia calor, luz, cor, espaço.
Sabem! O tempo deve ter passado mesmo a correr naquele mês de férias. Tirando o facto de ter tirado a barriga de misérias e de me embriagar no perfume de mulher, lembro-me de pouco mais. Retenho contudo o facto de no dia do regresso, ter vestido uma camisola de lã de gola alta. O frio do mês de Outubro em Lisboa, impôs essa indumentária.
Desembarquei assim em Luanda com roupa de Inverno e recordo que me senti sufocar de calor quando saí do avião. O trajecto do aeroporto de regresso à Pensão dos Coqueiros foi infernal. Só desejava que o táxi acelerasse. A camisola fazia comichão pelo corpo todo e o suor escorria copiosamente. Não havia dúvida, estava de novo em África.
Fazia agora o caminho em sentido inverso, sobrevoando aquele imenso território com a sensação de que apenas estivera ausente por muito pouco tempo.
A Neriquinha estava no mesmo sítio. Pelo menos o Nord não teve dificuldades em encontrá-la, aterrando na velha e conhecida pista poeirenta com a desenvoltura do costume.
Desapertei o cinto que me prendia ao assento de lona, agarrei no saco de viagem e assomei à porta preparando-me para descer. Lá fora, as mesmas caras e a azáfama do costume. Nada mudara durante a minha ausência.
Desci os pequenos degraus e olhei em volta como a certificar-me da realidade. A cerca de arame farpado lá estava, no mesmo sítio. As duas pequenas construções que ladeavam a porta de armas continuavam desocupadas. Creio que nunca tiveram serventia. A chana mantinha ainda a mesma cor e a mata circundante parecia olhar-me como se, reconhecendo-me, me desse as boas vindas. Respirei fundo sorvendo o perfume selvagem da savana e caminhei decidido em direcção à camarata onde a minha cama me aguardava, já mentalizado de que ali era o meu lugar. Pelo menos durante mais os próximos meses aquela continuaria a ser a minha morada … o meu canto perdido no meio da imensidão agreste.
Uma semana depois já quase não me lembrava da civilização. Na verdade, sentia-me como se dali nunca tivesse saído. Mulheres brancas, movimento, bicas, pastéis de nata, restaurantes, ruas, casas, prédios, bulício citadino, televisão, jornais, viraram rapidamente coisas de ficção.

quinta-feira, 25 de março de 2010

A PADARIA

Já tive oportunidade de me referir, de alguma forma, aos hábitos gastronómicos da população da Neriquinha. Para ser sintético, apenas relembro que não têm qualquer semelhança com os nossos. É que nem sequer há um simples pormenor que se pareça com a forma como nos alimentamos, por mais pequeno que seja.
Uma das iguarias que me atrevo a considerar como fazendo parte dos hábitos alimentares de qualquer ser humano, independentemente da raça ou religião, é o pão. Pão tem que existir, seja lá onde for e a Neriquinha não era excepção.
Correndo o risco de estar a ser atraiçoado pela memória, penso que a equipe de padeiros da companhia era constituída por dois profissionais: O cabo Sousa, entretanto já falecido e o soldado Luís Santos, que actualmente faz a sua vida por terras de França.
Os dois, com ajudas de uns e outros, tinham por missão garantir pão fresco bem cedo pela manhã, havendo outra fornada para o almoço e jantar. Dispunham de um forno artesanal que, bem ou mal, desempenhava a função. Era feito de pequenos tijolos refractários que suportavam bem o calor. A massa que os unia é que não, o que implicava que periodicamente tivesse de ser desmontado e reconstruído como se de um puzzle se tratasse.
Quanto à mesa de tender, uma simples tábua ao ar livre servia muito bem.
O que importava é que a sandes de paio ao pequeno-almoço estava sempre garantida, mesmo tendo de ser empurrada com duas cervejas.

sexta-feira, 12 de março de 2010

PERDIDOS...

N´riquinha, 1 de Abril de 1972.
Sábado da Ressurreição, um dia como qualquer outro, perdida que estava já a noção da diferença dos dias, ou o sentido da invocação de alguns deles, quando era a guerra e o isolamento escaldante das Terras do Fim do Mundo que nos marcavam as horas, os dias e os meses por riscar no calendário já meio sebento pregado na parede.
Meio-dia.
Vindo dos lados da Zâmbia, o ruído longínquo de um avião tipo Cessna quebrou por momentos a monotonia daquela manhã, obrigando a um breve esforço de localização e identificação de aproximação, ou não, da aeronave. As visitas eram raras e sempre pelo ar. Mas a expectativa do aparecimento de um qualquer comandante do Batalhão, Zona Militar, ou de Sector em pouso surpresa em “teatros de guerra”, que averbasse mais um “acto de bravura” ao cadastro de um eventual candidato ao 10 de Junho, era uma possibilidade sempre presente.
Em breves segundos se percebeu que a aeronave passava a uns bons quilómetros de distância e não se dirigia à N´riquinha, onde também podia fazer escala para reabastecimento.

O Domingo de Páscoa foi transposto dissolvendo na boca as tradicionais amêndoas doces em forma de elaborados esquemas de imaginação, a que alguns juntavam o sabor distante dos folares da terra, mastigados num quase masoquismo de fantasia, cuja aliança com o sol inclemente que os fustigava de manhã à noite, permitia uma breve sensação de realidade. À noite o rancho haveria de desmontar o cenário, como quem desfaz a tenda de feira e retoma o carreiro insonso das agruras da vida.

9:30 de Segunda-feira.
Um ronco potente, que nos reportava por momentos a sons longínquos provindos dos tempos da 2ª Grande Guerra, avassalou repentinamente as cercanias do aquartelamento, desenhando no céu uma figura canhestra de um cinza baço devassado por décadas de um lustro puxado à mão pela eterna pobreza dos tempos.
Era um velhinho PV-2 Harpoon, troando os seus dois motores de 2.000 HP cada, desenhando figuras em volta do aquartelamento, antes de se enfiar à pista e rolar até à porta de armas, onde se quedava por momentos desaparecido numa nuvem de poeira ruiva e fina, da qual cada um de nós preserva ainda uma espécie de memória de estimação em alguns dos recantos menos perecíveis dos sentidos.
Motores parados, haveríamos de esperar alguns minutos até que a nuvem se dissipasse e tornasse possível a aproximação.
Um pouco inquieto apressei-me e nem esperei que a poeirada se acalmasse em definitivo.
Ainda o piloto finalizava as operações habituais de fim de voo, já eu me quedava junto à asa sorvendo o calor do motor ainda em estalidos metálicos de arrefecimento.
A presença inusitada de um avião daquele tipo na N´riquinha só podia trazer maus presságios, normalmente presentes envenenados para a tropa, para quem já chegavam todas as guerras nas quais nos haviam mergulhado.
Minutos volvidos e já descia o meu amigo Capitão Pêpe no seu impecável fato de macaco azul. A ansiedade era tal que nem entrei pelos habituais cumprimentos. Disparei de imediato na esperança meio rançosa de me enganar no prenúncio.
- Vais-me dizer que vou ser atacado e põem o que resta da Força Aérea à minha disposição…!
Logo após um abraço e alguns sorrisos pela graça, que, no fundo, pouco tinha de engraçada…
- Não. A guerra parece que é outra. É que no Sábado caiu um avião, presume-se que aqui na tua área.
- Caiu um avião? Mas que avião? Aqui só há avião a meio da semana com o correio e o Nord às Terças com os géneros.
- Parece que era um mono-motor de uma empresa de Serpa Pinto que faz transporte de passageiros. Uma espécie de táxi aéreo. As últimas informações dizem que saiu do Rivungo no Sábado para reabastecer aqui, mas desapareceu e não deu mais sinal de vida.
Dando voltas à memória recordei o tal sinal de avião de Sábado sinalizado entre a N´riquinha e a Zâmbia, que conferia com a eventual rota vinda do Rivungo.
- Vais ter que me disponibilizar cama, mesa e roupa lavada não sei por quanto tempo. Isto é coisa para demorar, acho eu. Dentro de algum tempo devem começar a chegar aviões da empresa e outros para ajudarem nas buscas. Será aconselhável que preparem combustível para os necessários reabastecimentos.
- Então vamos começar pela mesa? – alvitrei.
- Não. Olha, ainda é cedo; vou dar por aí uma volta. Tendo em conta a rota, pode ser que ele tenha caído aqui por perto por falta de combustível.
E assim foi.
Ronco poderoso assistido por uma fumarada branca a sair dos escapes dos motores e eis que o PV-2 se lança em nova correria pista afora, elevando-se pesado nos ares.
Pouco tempo depois chegam dois aviões ligeiros, conforme prenunciara o Cap. Pêpe. Aterram e solicitam reabastecimento para as buscas que haveriam de ter lugar a partir daquele momento. Trata-se do proprietário do Cessna desaparecido, que dirige ele próprio um dos aviões, e traz consigo um outro também pertença da sua empresa.
Abastecem mas não levantam, porque o comando da operação de busca estava já confiado à Força Aérea, na pessoa do Cap. Pêpe, entretanto no ar.

A operação de busca e localização desenvolve-se por três dias utilizando o PV-2 e os dois aviões ligeiros da empresa, que se foram revezando com outros, sendo que o proprietário se manteve sempre presente no envolvimento das buscas. Presente e sempre muito nervoso. Viríamos a saber mais tarde que esta débil paz de espírito se relacionava com problemas de seguro de vida do piloto desaparecido, desenhando-se o pior dos cenários, caso não fosse encontrado com vida.

Quinta-feira, quarto, e último, dia de buscas, por decisão do Cap. Pêpe, partindo do princípio de que já não seria possível encontrar sobreviventes.
Delineada uma esquadria de busca a distribuir por quatro aviões agrupados num derradeiro esforço para encontrar o avião desaparecido, cada piloto tomou lugar na sua aeronave e levantou. Pêpe foi o último. Antes de subir ao PV-2, lançou-me um desafio:
- Anda daí porque tenho a sensação que nos vais dar sorte. Além disso conheces a zona e podes dar-nos uma ou outra pista.
Eu, que nunca me dei bem com os pés fora de chão firme, fosse em mar ou ar, ainda esbocei alguns argumentos enfeitando a minha relutância.
- Levantas e daqui a meia hora vais ter que me trazer de volta, com o “gregório” em primeiro plano…
- Não. Vamos levar aqui a banheira muito direitinha e sem ondas.
Convenci-me.

Naquele ponto das buscas havia uma única perspectiva; encontrar eventuais sobreviventes. O avião era na altura secundário. No Leste de Angola era frequente a queda de aeronaves sem grandes consequências para os ocupantes, tendo em conta a planura da savana. Logo, se tivessem sobrevivido, haveriam de se movimentar em busca de socorro. Nessa perspectiva, e tendo em conta alguma experiência de sobrevivência no mato que já possuíamos, havíamos sugerido, nos briefings de fim de dia, a busca em chanas abertas com água, porque a sede de cinco dias haveria de os prender num local com água e melhor visibilidade para quem os procurasse.

Tínhamos pouco mais de cinco minutos de voo. Sentava-me num banco solitário plantado a meio do avião, que na verdade voava direitinho, como havia prometido o Pêpe. Sem que nada o fizesse prever, o avião faz uma subida abrupta, para logo de seguida cair sobre a asa esquerda apontando o bico ao chão. Pensei: pregou-me uma partida, o Pêpe. Mas que raio de altura escolhida para brincadeiras.
- Pêpeeeeeeee…! Pára lá com essa m…. – gritei cá bem de trás onde me sentava agarrado a uma pega da fuselagem do avião.
Não obtive resposta no imediato, porque o PV-2 continuava meio louco como se lhe tivesse dado um ataque de nervos. As cabriolas continuavam e eu segurava-me como podia.
Na verdade era quase um verdadeiro ataque de nervos, mas de alegria.
- OS GAJOS ESTÃO ALI…!!! – grita o Pêpe meio embriagado de exultação, abrindo a porta do cockpit e apontando-me para baixo.
Olhei pela pequena janela quando o PV-2 fez um voo rasante ao solo e apenas vislumbrei três pessoas em perfeita loucura no chão: cambalhotas, saltos, abraços, braços no ar.
O Sargento de apoio à tripulação apareceu com um bidão de água preparando-se para o atirar pela porta do avião, entretanto aberta.
- Onde é que você vai com isso? – indaguei.
- Vou atirar aos gajos. Devem estar a morrer de sede. Já passaram cinco dias.
- De sede? Os gajos estão num rio… Estão é a morrer de fome…
O Sargento olhou-me, abanou a cabeça e balbuciou:
- Está a ver, capitão. É o que dá andarmos sempre aqui no ar. Nem nos apercebemos da realidade no chão.

Comunicada a posição dos sobreviventes, o PV-2 regressou de novo sereno e pousou perfeito.
- Como vês, viemos direitinhos como prometi – disse o Pêpe da porta do cockpit entretanto aberta, com uma euforia quase menina estampada no rosto, quando o avião já rolava em movimento lento para parar.
- Pois, mas lá no sítio perdeste a cabeça.
- Encontrar sobreviventes de quedas de aeronaves é a maior alegria que um piloto pode ter. Mas deixa-me contar-te; aquele braço de rio onde os encontrámos estava fora da quadrícula de buscas. Quando cheguei à bifurcação deu-me uma pancada e enfiei o avião naquele pequeno afluente do rio. Foi a sorte deles. Estavam mesmo ali à entrada.

Por volta das 17:00 um helicóptero da F.A. haveria de resgatar os três ocupantes do avião, depois de estes já terem devorado oito rações de combate entretanto lançadas dos aviões.
A história daqueles cinco dias confrontava a simplicidade das circunstâncias com o sofrimento dos três ocupantes do Cessna.
Haviam, na verdade, saído do Rivungo com muito pouco combustível, dirigindo-se à N´riquinha para reabastecer. Um procedimento normal. O piloto, um jovem pouco experiente e desconhecedor daquela área, orientou-se pela carta – antiga e obsoleta, como todas as daquela região – e dirigiu-se à antiga N´riquinha Velha, a dezoito km de distância da actual N´riquinha, sendo aquela a única que figurava na carta.
Desconhecedor da verdadeira localização da pista, ainda não assinalada nos mapas, procurou durante perto de uma hora sem a encontrar, vindo a cair a cerca de 70 km para sul.
As peripécias dariam um pequeno livro.
Num breve resumo.
Eram três os ocupantes: o piloto, um jovem africano com cerca de 23 anos (funcionário da General Electric), que se deslocava a um determinado local para reparar uma avaria, e um outro jovem cabo-verdiano que havia pedido uma boleia no Rivungo.
O jovem africano era a terceira vez que caía de avião…, mas afirmava: “… não será por isto que vou agora começar a andar a pé…”.
Nos momentos que antecederam a queda, quando o combustível faltou, enquanto o alvoroço se instalava dentro da aeronave, especialmente por parte do jovem cabo-verdiano gritando que iam morrer todos, o experimentado técnico da G.E. tomava conta dos acontecimentos: “… Calma! Ainda não morremos. Senta e reza. Se não souber rezar, senta só e acalma…”.
O piloto tendo apontado para uma chana com mais de 1 km de largura e chão plano onde poderia ter aterrado sem grande dificuldade, entendeu que mais “suave” seria pousar no pequeno curso de água que ali corria. O avião capotou de imediato resultando um ferimento no sobrolho do piloto e a destruição parcial da aeronave.
A deslocação que decidiram empreender a partir do local, procurando encontrar uma picada ou sinais de vida, foi uma epopeia que lhes perdurará pela vida fora.
Sem reservatórios onde pudessem transportar alguma água, deitaram mão das mais incríveis opções. A namorada de um deles acabou sonegada de um perfeito perfume e água-de-colónia refrescante para as tardes de calor ardente; os frascos foram esvaziados e neles acomodados alguns decilitros da preciosa água.
A fome devassou a perspectiva de morte na queda do avião e intricou mirabolantes esquemas de sobrevivência; horas foram passadas em emboscada a um rato que se enfiara num buraco e se recusou obstinadamente a participar naquela história, que, afinal, não era a sua.
Caça em abundância à distância de um tiro de flecha – mas sobranceira a um corta-unhas perdido no fundo do bolso que jamais encontrou préstimo naqueles dias – “… pareciam rir-se de nós...", percebendo-os desarmados e vulneráveis ao fragor de um único rugido de leão a bocejar o términos de uma sesta dormitada à sombra de um embondeiro”.
A noite e o medo montaram sentinelas que incendiaram todos os minutos que o cansaço rogava por um breve repouso de corpo e alma.
As horas, depois os dias, faziam bramir um âmago com 500 anos de submissão e a suspeita de uma eterna e vil escravidão: “… os portugueses, onde estão os portugueses que não nos vêm sequer procurar. Que é feito dos portugueses? Onde estão a porra dos portugueses…?”, recalcitrava estridente o desespero do jovem africano especialista em inopinados mergulhos na selva africana.

Quinto dia de uma desesperança já assumida e aceite.
Pouco além das 9 horas da manhã.
Um ruído de avião… uma alucinação entre tantas outras… um sonho acordado fermentando um desejo.
Possante e inequivocamente vivo o PV-2 rompe os céus num ronco abrupto e desesperadamente amigo. Cabriola como criança na areia da praia; rasa-lhes as cabeças num afago terno e acolhedor. Agita as asas como que acenando uma alegria que desejava comungar desesperadamente.
Por entre as mais destemperadas manifestações de regozijo, uma voz meio submersa numa emoção de novo escravizada, refunde uma confiança perdida:

“… afinal há portugueses… Olha só os portugueses que estão chegando…! Portugueses! Portugueses…!”

P.C.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Saudades de mulher branca

Se há algo de que um homem sente saudades é de mulher. Especialmente se acabou de completar 20 anos e para mais, sendo tropa. Nestas circunstâncias, mulher é coisa que, se não se tem à mão, vira obsessão.
Se está próxima e se sente a falta, força-se o encontro, mitiga-se o desejo e a saudade não chega a aparecer. Outra coisa é ser obrigado a abandonar aquela que escolhemos (ainda por cima linda) e ser levado para o outro lado do mundo. Sem qualquer hipótese de reencontro, desejar o que deixámos para trás ganha outra dimensão.
Mas quando, para além de tudo isso, somos relegados para o cantinho mais remoto do fim do mundo, como foi o caso da Neriquinha, os desejos explodem, multiplicam-se, moem o juízo e até doem, mesmo aos mais insensíveis. E garanto que só quem passou por isso sabe verdadeiramente o que é.
Ao fim de um mês a calcorrear as areias do Cuando Cubango, qualquer burra de saias, mesmo daquelas que se parecem com uma bota da tropa, começa a parecer-se com algo susceptível de despertar secretos instintos lascivos.
Com o passar do tempo, as mulheres da população, que nada deviam à beleza, pelo menos a beleza a que estávamos habituados, começam a ter graça, não obstante a pele áspera e o cabelo tipo esfregão, para não falar do cheiro característico, capaz de anular apetites insaciados. Mas, como quando se tem fome, até pão bolorento se come, os kafecos (mulher adolescente) eram mesmo a única alternativa possível, se bem que isso obrigasse a uma prévia preparação com uma parafernália de pomadas, unguentos e anti-inflamatórios contra a praga de doenças sexualmente transmissíveis que por ali grassavam, passando obrigatoriamente, após a visita, por um demorado banho purificador.
A máxima era, cautelas e caldas de galinha nunca são de mais e ninguém queria ter de ouvir as recriminações do Dr. Lacerda:
- Eu não te disse para teres cuidado! Da próxima vez que me apareceres assim, dou-te uma porrada.
O desejo de acariciar uma pele branca e macia e enterrar as mãos em cabelos sedosos tornava-se obsessivo. Aos poucos, a imagem que se procurava reter da amada deixada no puto, ia-se endeusando, virava miragem e ganhava foros de beleza extrema, quase sobrenatural.
Cada carta recebida era lida e relida. Procuravam-se cheiros que a longa viagem da missiva dissipara. Ansiava-se por uma fotografia recente que reavivasse a memória e fizesse relembrar os contornos, as curvas, os meneios. Esperava-se, enfim, que nos trouxesse de novo o imaginário do contacto impossível, da voz sensual ... eu sei lá …!!! Sabem que havia quem recebesse cassetes gravadas?
Na verdade, tudo isso só acentuava o desejo do reencontro, contribuindo para ressacas afogadas nuns golos de whisky, quando havia.
Era um facto, o desejo de mulher branca era algo que, creio, todos sentiram intensamente. Só que uns conseguiam disfarçar a falta enquanto outros a publicitavam.
- Só gostava de ver uma … nem que fosse de longe!
Confessava-se, com nostalgia evidente.
De facto, ao fim de meia dúzia de meses, mulher branca estava para nós como algo de que se ouvira falar, como se apenas a tivéssemos visto uma vez, em sonhos, mas nunca ao vivo. Olhar a fotografia era como se olhássemos para a caderneta de cromos de estrelas de cinema procurando imaginar como seriam em carne e osso.
Lembro-me que, nove meses passados, acabado de chegar à cidade do Luso, de passagem para Luanda a caminho das férias, ia sendo atropelado no meio da rua ao ficar especado, seguindo com olhares extasiados a primeira mulher branca que via ao fim de tanto tempo de isolamento. É verdade que também contribuiu o facto de já me ter desabituado do trânsito. Na Neriquinha, não havia ruas ou estradas, nem trânsito nem automóveis, já que as duas ou três berliets e os poucos unimogs eram como gota no oceano daquela savana imensa atravessada aqui e ali por picadas irregulares.
Não foi por acaso que ao fim de muitos meses me decidi a gastar uma pipa de massa e fazer uma viagem quase interminável até Lisboa, para gozar o mês de férias a que tinha direito. O pretexto era poder sair dali e rever a família. Na verdade, creio que se fosse só pela família (que certamente me perdoará o pecado) não teria metido pés a caminho.
A viagem era cara e durava uma semana, com paragens no Luso, Nova Lisboa e uma eternidade em Luanda para cumprir um conjunto de formalidades militares no Quartel General e perante um paspalho dum Sargento-Ajudante que tinha a missão de controlar as licenças, aproveitando o ensejo para controlar também o atavio. Para lidar com aquele exemplar de militar estúpido, era preciso cuidado. A probabilidade de não se gozar as férias e termos de regressar à Neriquinha, não era hipótese a pôr de parte.
Na Verdade e bem pensadas as coisas, o que me empurrou para fora da Neriquinha foi o desejo incontido de acariciar a pele aveludada e os cabelos sedosos que deixara no Cais da Rocha à partida de Lisboa. O desejo de sentir de novo o cheiro e o hálito fresco de mulher nem me deixou pensar duas vezes e foi-me tirando o sono à medida que a data da partida se aproximava. Era como se quisesse confirmar que, afinal, ela existia, era real, de carne e osso e que eu podia tocar-lhe.
Foi sol de pouca dura. As férias passaram num ápice e em pouco mais de um nada estava de regresso à Neriquinha, com as saudades de novo a atormentar-me os sentidos.
Certo dia, um avião militar, proveniente de Luanda e tendo como destino final a base de Henrique Carvalho, apareceu nos ares da Neriquinha. Avariara-se um motor e já voava à algum tempo apenas com o outro a funcionar. Não sendo aconselhável ir mais longe aterrou ali mesmo. Afinal, a nossa pista, de terra empoeirada, era um AR (Aeródromo de Recurso).
Para nossa surpresa, o Dakota vinha praticamente lotado com militares da Força Aérea e respectivas famílias. Aliás eram mais as famílias que se dirigiam a Henrique Carvalho para aí se juntarem aos respectivos maridos, na sua maioria oficiais da força aérea.
Quando se abriu a porta do Dakota, que se imobilizara na pista em frente à porta de armas, a surpresa foi total.
Uma a uma foram saindo mulheres. Primeiro uma, depois outra e mais outra e ainda outra. Ao todo, quase uma dúzia. Bem vestidas, penteadas, cheirosas e brancas meu Deus…!!! Todas elas..!!! Umas louras, outras morenas, até ruivas havia. Usavam sapatos que se enterravam na poeira sujando os pés delicados, que por ali não havia asfalto … nem calçada. Sapatos eram coisas que as mulheres da Neriquinha desconheciam, até porque não havia modelos que se adequassem àqueles pés.
Foi um corrupio. O pessoal abandonou os seus afazeres, aperaltou-se e aproximou-se. Uns mais de perto, outros mais ao longe, com respeito, sem alarido, mas com um desejo impossível de conter: ver mulheres brancas … e tão bonitas que elas eram. De repente, as mulheres ganguelas e até as kamachis, estas mais apresentáveis que aquelas, voltaram a ser tão feias quanto as acháramos à chegada.
Foi um dia memorável. Dentro do possível fizeram-se as honras da casa oferecendo o pouco que se dispunha: uns assentos junto à messe para as visitas se sentarem, uns refrescos e muita conversa, já que um passeio turístico pelo local era coisa impensável. As senhoras não deveriam estar interessadas e o calçado que usavam não o permitiria. Por outro lado, não havia nada para ver, a não ser que se quisesse mostrar o despojamento daquele nosso mundo, coisa que nem nos passou pela cabeça. Já estávamos habituados demais ao local para achar que isso era importante.
Entretanto, o pessoal, numa atitude de basbaque, ia rondando. Feromonas à solta, provocadoras, contaminavam o ar arrancando suspiros aqui e ali. Uns faziam comentários em surdina, outros apenas olhavam em silêncio. Palavrão foi coisa que desapareceu de repente. Falava-se pouco, não fosse sair alguma inconveniência, algo que pudesse ferir ouvidos tão delicados, como decerto seriam os de senhoras tão bem apresentadas.
Creio que por algum tempo até a segurança foi descurada. Não ponho de parte a possibilidade de os sentinelas terem abandonado o posto, nem que fosse apenas pelo tempo necessário para deitarem uma olhadela.
O súbito aumento populacional daquele bocado de savana delimitado por arame farpado foi de pouca duração. Pouco tempo decorreu, pareceu-nos, até que um outro avião aterrou na pista e recolheu as ilustres visitantes, levantando voo no meio de uma nuvem de pó em direcção a norte até desaparecer, diluído no azul intenso do céu.
Na Neriquinha apenas ficou o Dakota imóvel e silencioso e uma centena e meia de homens com água na boca, tecendo comentários sobre a beleza que, com olhares gulosos, acabavam de desfrutar.
- Vistes aquela loura…? A de blusa cor-de-rosa.
Perguntava um ao parceiro do lado.
- Sim, mas a morena, a de saia azul, era bem melhor. Viste as pernas dela?
Respondeu o interlocutor, procurando a concordância do outro sobre o pormenor dos membros inferiores da senhora.
- Cá para mim eram todas a estrear!
Sentenciou alarvemente o atrevido do costume.
O avião avariado, jazendo na pista, indefeso, obrigou a um reforço das sentinelas, pelo menos durante as noites que se seguiram e contribuiu para manter a animação por mais uns tempos. Com efeito, no dia seguinte, chegou um Nord Atlas que ali deixou um motor novo e uma equipa de mecânicos, que levou mais de uma semana a retirar o motor avariado e a montar o novo, garantindo um corrupio de curiosos à sua volta seguindo com interesse o desenrolar dos trabalhos.
Finalmente, com força renovada e depois de alguns ensaios e dois voos experimentais, o Dakota disse adeus à Neriquinha, deixando por uns tempos um sabor nostálgico.
Creio que foi a primeira e talvez a única vez que por ali foram vistas mulheres brancas. Para a maioria do pessoal da 3441, foi a única oportunidade, em dezoito meses, de poderem apreciar coisa tão desejada, ainda que apenas de longe e sem lhe poderem tocar. Nem sequer cheirar.
Ficaram apenas suspiros … muitos.