Lembro-me bem; durante o tempo em que o Morais, o nosso
furriel vagomestre, esteve ausente, gozando no puto umas merecidas férias,
longe daquela terra de ninguém, fui incumbido de o substituir na arte de
alimentar o pessoal sem ultrapassar a verba diária de vinte e dois escudos e
meio por cabeça. A tarefa não era fácil e a experiência nenhuma, mas lá me
desenrasquei o melhor que pude, procurando compor, com os parcos víveres
existentes, qualquer coisa que se pudesse comer. A chatice é que, dia após dia
e sem que disso me desse conta, fui ultrapassando a fasquia do orçamento.
Não me recordo das chatices que o Morais teve de enfrentar
para voltar a meter as coisas sobre carris. É provável que a ameaça de
levantamento de rancho, a propósito de uma das ementas mais detestadas
(dobradinha com feijão) tenha sido um acontecimento que se se terá desenrolado
quando fui mandado para uma segunda comissão no destacamento do Rivungo.
Sorte a minha, que só soube dos pormenores muito tempo depois
de tudo ter acontecido.
O texto que se segue é da autoria do Morais, o nosso vagomestre de então.
.... O texto que se segue é da autoria do Morais, o nosso vagomestre de então.
Enquanto
decorreram os dezoito meses de destacamento na N’riquinha, consegui gozar dois
períodos de férias, de trinta e cinco dias, no “Puto”. Com as deslocações, via
Luso (Luena), Nova Lisboa (Huambo) e Luanda, as ausências atingiam cerca de
cinquenta dias, períodos que fui substituído, como responsável pelo serviço de
alimentação, pelo Egídio Cardoso.
A
contabilidade do serviço exigia um inventário ao armazém cada final de mês, com
o qual verificávamos se o consumo de géneros alimentares estava dentro do
orçamento de receita para o mês em causa.
Os
primeiros meses de estada na N’riquinha, embora coincidissem com a estação das
chuvas, foram relativamente generosos em caça e, por via disso, além de nos
alimentarmos melhor, pudemos gastar menos em alimentação. O serviço foi passado
ao “vaguinho” Cardoso, com um excedente de tesouraria correspondente a cerca de
dez dias de alimentação.
Quando cheguei
do primeiro período de férias, aguardámos a chegada do fim do mês para a
passagem do testemunho. O “vaguinho” em exercício tinha desenvolvido um
trabalho notável no serviço, e era alvo de grandes elogios, pelo empenhamento e
grande imaginação posta na elaboração das ementas, ao ponto de alguém, bem situado
junto do comando, ter pressionado, sem sucesso (o primeiro sargento Pinto foi
contra), a sua passagem a efectivo. Feito o inventário e uma estimativa à gestão
cessante, constatou-se que havia um défice no serviço de cerca de vinte dias de
alimentação. Ou seja, durante três meses viveu-se acima das possibilidades.
Posto o problema ao conselho administrativo (comandante da companhia e primeiro
sargento), e porque o défice teria que ser compensado no futuro, sob pena de
responsabilização e pagamento dos montantes em falta, foi decidido “apertar o
cinto”.
A
situação chegou rapidamente ao conhecimento de toda a companhia, e comecei a
ouvir ameaças veladas de que, se tal acontecesse, ia haver “levantamento de
rancho”. O contingente lisboeta liderava a “revolta”.
Por
todas as razões e também por solidariedade com o “vaguinho” Cardoso, houve que
prosseguir no caminho traçado, evitando as ementas que fossem mais
dispendiosas, até porque o entusiasmo pela caça tinha esfriado. De facto, os
habituais voluntários não estavam tão disponíveis para continuar, e a época das
queimadas ainda não se iniciara. A primeira caçada que liderei, neste período,
teve como resultado uma cabra do mato (bambi) e um nunce, insuficientes para
dar uma refeição a toda a companhia.
O pretexto
para um incidente apareceu quando se serviu, ao almoço, uma dobradinha com
feijão. Como era norma, a comida era igual para todos, oficiais, sargentos e
praças, e confeccionada nas mesmas panelas. Servidas as terrinas para os
doentes na enfermaria e para as messes, passava-se a atender os praças. Quando
estava a terminar a minha refeição fui chamado ao refeitório para ouvir a
reclamação de que a comida estava imprópria para consumo porque o feijão tinha
bicho, e mostraram pratos onde se viam dois ou três feijões com um ponto negro.
Entretanto chegou o comandante da companhia que mandou formar na parada e
tentou convencer o pessoal a retomar a refeição, porque todos os oficiais e
sargentos tinham consumido a mesma feijoada, sem notarem nada de anómalo: Não
havia levantamento de rancho!! E avisou que a cantina estaria encerrada e só
abriria depois do jantar. O pessoal persistiu na decisão.
O comandante
da companhia, para evitar que o incidente se repetisse mandou que o saco de sessenta
quilos de feijão, recentemente encetado fosse servido aos hóspedes da pocilga,
situada nas traseiras do aquartelamento. Posso garantir que desobedeci a tal
ordem, e o feijão, tão proteicamente enriquecido, foi por nós consumido nas
sopas, depois de processado no “passe-vite”… a vingança foi servida quente.
“vaguinho
“ Morais