Muito haveria ainda para dizer sobre as particularidades das
chanas do Cuando Cubango. Será talvez
mania minha insistir nisto mas, a verdade é que ainda recordo, quase em
detalhe, aquelas imensidões que nem o arvoredo se atreve a incomodar. Começando
num verde luxuriante no pico da época das chuvas, aquelas cearas de capim
viçoso, mudam de cor ao sabor dos equinócios, esmaecendo num processo que as
vai matizando lentamente de amarelos tímidos até adquirirem aquele ocre de restolho
seco que enegrece por efeito das grandes queimadas, voltando a rejuvenescer com
as primeiras águas da época seguinte. É uma natureza que, morrendo pelo fogo,
renasce das cinzas, exuberante e pujante como se o fogo lhe conferisse
vitalidade.
Eram estas mesmas chanas
que, formando uma intricada e caótica sucessão de espaços impossíveis de
contornar, se interpunham no nosso caminho, dificultando o andamento das
viaturas, como se, resistindo, se procurassem vingar da nossa intromissão que,
bem se pode dizer, profanava a quietude daquele mundo selvagem, sobrepondo-se ao
suave murmúrio do roçagar do capim embalado pela brisa amolengada por força do
calor sufocante que chegava a calar o cucuritar das rolas empoleiradas no esparso
arvoredo circundante. O facto é que, para se ir a qualquer lado, não havia
forma de seguir em frente sem as atravessar já que, a tentativa de as
contornar aumentava a distância e não se resolvia a questão. Podia-se evitar
atravessar uma chana, mas caía-se
necessariamente no meio de outra.
Com o tempo, aprendemos a conhecê-las, especialmente as que
se atravessavam no caminho que nos levava ao Rivungo, local onde, para além da
Marinha, da PSP e da PIDE, existia um destacamento da companhia da Neriquinha. Explica-se
assim porque se conhecia bem aquele caminho de longo tracto.
Cruzávamo-lo com
frequência, não só pela necessidade de manter a ligação com os nossos que lá
estavam como, também, pelo facto de constituir a única via para o
reabastecimento da tropa, dos marinheiros, dos polícias e das estruturas administrativas ali existentes,
sem deixar de lado a população dos kimbos que se encontravam nas imediações.
Trilhar aqueles caminhos era uma aventura; por muitos
cuidados que se tivesse e por muito que se pensasse que já se sabia tudo,
acontecia sempre algo de inesperado. Sair da Neriquinha em direcção ao Rivungo
tinha horários de partida mais ou menos estabelecidos mas, a hora da chegada,
embora estimada, nunca era uma certeza. No regresso, a história
era a mesma. Um dia, o desagradável aconteceu comigo; na ida, tudo correu
dentro do previsto mas, no regresso, quando o pior já ficara para trás, as duas
berliets enterraram-se nos lamaçais das chanas
do Cúbia quando ainda o sol mal tinha acabado de despontar. Só dali conseguimos
sair ao fim do dia, já noite cerrada, depois de muito trabalho e a ajuda
preciosa que entretanto veio da Neriquinha em nosso socorro.
É verdade, cruzar aquela savana exigia muito cuidado e a
escolha criteriosa do trilho por onde se rolava. Retenho gravada na memória a
imagem daquela chana que antecedia o kimbo
do Lihaona. Não havia forma de lá chegar a não ser seguindo pelo troço de
picada enlameada que a cruzava. A situação foi sendo resolvida colocando
transversalmente uns troncos de árvore os quais, com o passar das viaturas, se
foram enterrando na lama, conferindo a consistência necessária. Mas isso
obrigava a que ali se passasse muito devagar num permanente bamboleio com os
pneus mastigando a lama e resvalando nos troncos escorregadios, castigando a
estrutura das viaturas e os ossos de quem lá ia.
O episódio que agora recordo e a que, felizmente não
assisti, faz parte da história da companhia e desenrolou-se naquele bocado pouco consistente que ligava os kimbos
do Liahona e do Mugamba. Enquanto durava a estação seca, a picada que por ali
serpenteava secava e endurecia. Com o tempo e o passar frequente das viaturas,
foi ficando compactada e adquirindo consistência. Quando as chuvas regressavam e
as areias abeberavam de água, aquele bocado de caminho ficava submerso mas, ou
porque já estivesse suficientemente endurecido ou por qualquer outra razão que
não sei explicar, permanecia com a consistência necessária para as viaturas
poderem passar sem atascar, desde que se rodasse muito lentamente e não se
desviassem nem um nadinha de nada do traçado da picada submersa.
Até que, um dia, por razões que me não chegaram, o pior
aconteceu. Parece que, por culpa involuntária de alguém, talvez à mistura com
um quanto baste de excessiva confiança e complementado com um bom bocado de
imprudência e uma pitada de má sorte, o condutor de uma berliet desviou-se do traçado submerso da picada.
Ainda que o desvio tivesse sido ligeiro, patinou, enterrou-se na lama e
imobilizou-se. Tentou fazer marcha atrás, usou dos truques que entretanto a experiência
já lhe ensinara para sair do atoleiro, mas tudo foi em vão. A viatura quedou-se,
ali, submissa, presa na lama. Cortaram árvores, fizeram fustes, escavaram,
empurraram, puxaram, usaram os macacos hidráulicos, desenvolveram teorias e fizeram
experiências. Mas nada resultou. A noite fez descer o seu manto negro, os
mosquitos atacaram em força, o cansaço tomou conta de todas e a viatura
continuou queda e muda, presa no amplexo peganhento da lama.
Vieram reforços da Neriquinha, construiu-se um acampamento e
por mais de uma semana, desde o nascer ao pôr-do-sol, todos se afanaram nos
trabalhos necessários ao desatolanço da berliet, muitos dos quais debaixo de
água. Não conheço os pormenores, mas ouvi dizer que quase foi preciso levantar
a viatura aos poucos metendo-lhe troncos por baixo.
Quem não ficou contente, foi o nosso comandante, lá no Cuito Cuanavale. Não me admiro nada que tenha descarregado os seus maus fígados em cima do capitão. Na sua forma pouco compreensiva de ver as coisas, certamente entendeu que a culpa, fosse qual fosse, teria sido do comandante da companhia, não obstante este tivesse estado a quilómetros de distância do local