Não retenho
grande coisa sobre o Cuito Cuanavale. Se calhar é trauma; associei-o sempre ao
comandante do batalhão e é no que dá. Imaginei sempre o local como uma espécie
de coito do comandante, feito à sua imagem, e não resistia à contraditória
mania de bem dizer o facto da Neriquinha estar bem longe, lá no interior
profundo e inóspito da savana o que, pensava eu, não convidava tão ilustre e
indesejável figura a aparecer por ali; se a minha memória não me atraiçoa, isso aconteceu uma única vez, pelo menos que
eu tivesse dado conta. E, mesmo assim, talvez por azar meu, foi o suficiente
para levar um raspanete que, por imerecido e humilhante, me deixou este trauma
que teima em não desaparecer. Logo eu, que tudo fazia para não infringir as
regras.
Tirando
isso, apenas retenho do Cuito Cuanavale a ideia de que o rio, lá em baixo,
estabelecia a fronteira entre a terra de ninguém onde fui obrigado a viver por
uns longos dezoito meses e o limiar da civilização que se foi insinuando aqui e
ali através de sinais perfeitamente visíveis aos olhos de quem se habituara a
planuras imensas onde as estradas se resumiam a picadas sinuosas e cansativas
escavadas pelos rodados das viaturas na areia entediante da savana.
O facto é
que, da passagem por aquele local, apenas recordo a estrada que dali levava a
Serpa Pinto, de terra sim, mas firme, de macadame, com largura suficiente para acomodar
trânsito em dois sentidos permitindo um andamento vivo que, para mim, se
assemelhava a uma velocidade excessiva quando comparada com os pouco mais de
cinco quilómetros por hora a que estávamos habituados. Decididamente, saíamos
das terras esquecidas do fim do mundo e, em velocidade de cruzeiro,
caminhávamos em direcção à civilização de cujas mordomias já quase só se
retinham imagens longínquas.
Em menos de
um nada, aportámos a Serpa Pinto. Aquele bocado de estrada que liga o Cuito
Cuanavale à cidade foi vencido em cinco horas, uma coisa sem significado quando
comparado com o tempo que gastávamos a percorrer uma centena de quilómetros por
qualquer das picadas que fomos obrigados a cruzar nas nossas andanças por
terras da Neriquinha.
Não nos
deram tempo de conhecer Serpa Pinto ou então, a minha memória não foi capaz de
reter nada que me faça lembrar a cidade. Não guardo nem uma imagem de um café
ou cervejaria, uma simples tasca ou algo de semelhante. Mas é verdade que
almoçámos na cidade e muito provavelmente devo ter-me lançado na demanda de uma
bica. Digo isto porque nem me passa pela cabeça imaginar que não tenha querido matar
saudades de um cafezinho tirado à pressão, bebidinha que chegámos a considerar coisa
de ficção. O facto é que, tudo o que recordo não passa de uma imagem fugaz de
um parque de viaturas isolado e que intuí localizado na periferia da cidade.
Ali mudámos
de meio de transporte; as viaturas, próprias para vencer terrenos arenosos,
foram substituídas por outras que nos levariam dali ao destino e, para não
variar, também estas mais adequadas ao transporte de carga que não de gente.
Contudo, para nós, habituados a picadas
irregulares e poeirentas, a suavidade do asfalto mais do que compensou o
desconforto e a falta de assento enquanto que o ar, agora completamente limpo, apenas
era irrespirável pela intensidade do calor.
A viagem não
tem história. Os mais de mil e cem quilómetros que separavam Serpa Pinto do
nosso destino prometiam uma viagem longa e monótona. Recordo a primeira metade
do percurso, definido por uma estrada ondulante, sempre a direito, como se fora
um carrocel que, em vez de andar à roda, seguia sempre em frente num sobe e
desce sem fim que os motoristas aproveitavam para poupar combustível; desligavam
o motor nas longas descidas deixando as viaturas rolar livremente até atingirem
velocidade considerável, a suficiente para, ganhando embalagem, galgar parte
substancial da subida que se seguia e só quando o andamento ameaçava morrer, ligavam
de novo o motor para vencer o resto da subida e embalar de novo em roda livre para
a depressão que antecedia a lomba seguinte.
Embora o
andamento atingisse, por vezes, uma velocidade significativa, a viagem não
deixou de ser monótona e cansativa através de um território imenso com
paisagens a perder de vista e cheias de coisa nenhuma, cenário que nos acompanhou
até ao fim do dia. O Alto Hama, mais ou menos localizado no centro do
território, na província do Huambo, foi o sítio escolhido para uma paragem. Por
ali ficámos umas horas que penso terem servido fundamentalmente para o descanso
dos motoristas já que não é possível falar de pernoita nem de jantar. O repasto
resumiu-se a uma ou duas latas da ração de combate provavelmente acompanhadas
por uma cerveja adquirida num estabelecimento comercial ali existente. Dormir,
de verdade, não creio que alguém o tenha conseguido. Dormitar talvez seja o
termo mais adequado para definir a forma como cada um passou aquele bocado de
noite; recostámo-nos por aqui e por ali, num deixar passar o tempo, à espera da
hora aprazada.
Talvez por
isso se tenha recomeçado a viagem bem cedo. Por volta das três horas da manhã
já as viaturas rolavam através da noite sem noção exacta do sítio por onde andávamos.
Por mim, aproveitei o embalo e fui dormindo, aos bocados. Desperto por um
solavanco mais vivo, voltava a dormitar face a ausência do que quer que fosse
que justificasse manter-me acordado. A verdade é que não me lembro de um só
pormenor daquele percurso.
Sei que não
passámos por Luanda. Naturalmente, por alturas de Viana, as viaturas seguiram
por um atalho que nos deixou na estrada que leva ao Caxito. Passámos pela
fazenda Tentativa, atravessámos o Caxito e pouco tempo depois desembocámos na
rua principal das Mabubas.
Dia catorze
de maio, a tarde ia a meio quando, finalmente, após quatro dias a calcorrear
mais de mil e setecentos quilómetros de picadas e estradas, desde os confins
das terras-do-fim-do-mundo até ao extremo oposto daquele vasto território,
chegámos ao nosso destino. Era promissor
o cenário que se desenrolava à nossa frente à medida que as viaturas rolavam
pela rua principal até estancarem no largo que se seguia à primeira
correnteza de casas, frente ao edifício do comando. A lembrança ainda bem viva
do ambiente hostil e poeirento da Neriquinha deixou-me a agradável sensação de
que acabáramos de entrar num local que prometia parecer-se com um bocado de
paraíso ali às portas de Luanda e bem pertinho do mar.
Pode parecer contraditório mas, naquele momento, deixou de fazer sentido a sensação de conforto e segurança precária propiciada pela cerca de arame farpado da Neriquinha.