Memórias das aventuras e desventuras de 140 militares que, em Novembro de 1971, armados de G3, foram largados num ermo algures no meio das remotas savanas das terras-do-fim-do-mundo nos confins de Angola
terça-feira, 19 de maio de 2009
ANGOLA - A Guerra e a sede.
Dois longos dias sem inimigo nem água, sendo que o primeiro não nos faz falta nenhuma. O sol não dá tréguas e continua a derramar ondas de calor chamejante desde que nasce até se esconder no horizonte vermelho, num presságio de promessa de novo inferno para o dia seguinte.
As reservas de água carregadas no rio há dois dias atrás estão esgotadas há muito. Vem-nos à memória, em jeito de miragem de uma onda de frescura, a malfadada travessia do rio dias atrás às sete da manhã. Há quem verta um resto de água quente na tampa do cantil para molhar apenas os lábios, voltando a guardar religiosamente as gotas que restaram, como se de ouro ou uma relíquia se tratasse. Há quem se atire para o chão e jure que não sai mais dali, para logo mudar de ideias mal a coluna preguiçosa se põe de novo em marcha em busca de um oásis que ninguém promete.
A língua fica pastosa e dificulta o falar. A saliva é praticamente inexistente. É como se viéssemos a mastigar cola. Os lábios ásperos e gretados ouvem-se roçar um no outro e queimam.
- Água! Ouve-se na frente.
- Água!
Passos apressados, um ânimo que parece renascer não se sabe donde, um ir destapando um cantil que ferve à cintura vazio e seco.
- ... água?
A “água” é um charco pestilento calcado por dezenas de pegadas de animais, mistura de lodo e algum líquido que borbulha à superfície, onde pululam uns bichinhos minúsculos de pouco mais de meio centímetro, movimentando-se num saracotear de corpo todo – que em pequeno costumava ver nas valetas de água parada da minha aldeia misturados com os girinos – a que se dava o nome de saltitões.
Muitos não resistem. Procuram uma zona de maior profundidade, três a quatro dedos, inclinam o cantil e enchem-no até onde é possível, procurando enxotar as pequenas jangadas de porcaria pestilenta que se precipitam em direcção à boca do cantil. Com uma bola de algodão tapam o bocal do outro cantil e vertem-lhe aquele líquido meio espesso que vai deixando o algodão empapado de lama e saltitões que se debatem como nós pela sobrevivência.
Juntam-lhe um daqueles comprimidos militares que garantem destruir a maior parte das doenças (além do fígado e dos rins) que pululam nas águas podres – teoria jamais comprovada, mas que ajudava a beber qualquer porcaria para não morrer de sede – e agitam o cantil com grande intensidade procurando aumentar o efeito do químico. Alguns nem dão tempo sequer a que se derreta e apazigúe alguns dos milhentos micróbios que se preparam para ajudar o IN, devorando-nos a nós.
O sabor é horrível mas só param depois da quarta ou quinta golada, não vá o saborear antecipado corromper a vontade de matar a sede. Alguns resistentes parecem preferir o risco de morrerem à sede, mas têm algumas armas escondidas em que confiam e que hão-de utilizar na hora certa e no momento apropriado.
Cai a noite estrelada e fresca. O desânimo é enorme. No silêncio murmuram-se maldições.
- Agora só faltava os turras atacarem, ouve-se.
- Se trouxerem água até a G3 lhes dou, carago. Que puta de vida. Que mal fiz eu a Deus? Andou a minha mãe a criar-me com tanto carinho para isto.
Ninguém tem vontade de comer. A sede tira qualquer vontade de mastigar ou engolir o que quer que seja. No mato morre-se de sede. Dificilmente se morre de fome. A água até a fome engana.
A boca tem um sabor estranho, o raciocínio imobiliza-se, o pensamento tem um único sentido: chuva, rios, mar, vinho, cerveja, água, água, água …
Na escuridão que já nos envolveu há duas ou três horas, vislumbro três vultos que deslizam em silêncio saindo duma tenda afastando-se ligeiramente da zona de concentração, sendo claro o cuidado que põem em não fazer o menor ruído para não serem vistos. Tanto quanto me é dado a perceber, um pouco mais além agacham-se os três e ficam imóveis. A situação desperta inicialmente a minha curiosidade. Há militares que ficam de sentinela de noite guardando o sono dos companheiros que dormem. Mas não assim. Normalmente são quatro que se dispõem formando um quadrado, alguns metros para lá das tendas dispostas em círculo. Admito uma segunda circunstância relacionada com a satisfação de necessidades fisiológicas, cujo uso tinha regras. Mas em grupo não me parecia apropriado. E para outras, … essas sim de grupo... o momento não me parecia o mais oportuno...
Desligo-me da situação porque nem me apetece indagar. Disponho-me a tentar dormir.
Cinco minutos depois.
- Meu Alferes, meu Alferes! Já viu? Sussurra-me o furriel “Montijo” entrando de cócoras na tenda em grande agitação.
- O quê? Pergunto, sem me mexer nem abrir os olhos. Achei que na altura me podiam até atacar que a vontade de me mexer seria nula.
- O Serrano, o “Galinhas” e o Gama estão ali atrás das tendas de joelhos a rezar para que chova. O meu Alferes já viu o que é que a merda da falta de água faz? Os gajos piraram. Têm os miolos cozidos do sol.
- Não me parece “Montijo”. Na hora do aperto a fé é a última arma para algumas pessoas. Você não acredita em Deus? Disse, continuando de olhos fechados perguntando-me a mim próprio por que carga de água trazia eu aquele tema para a conversa numa altura daquelas.
- Nunca fui de ir à missa, meu Alferes. Só me lembrei de Deus quando estive quase a patinar naquele acidente em que me ia partindo todo contra um poste. Ia lá deixando os dentes todos. Já lhe contei essa, não contei? Depois curei-me e olhe, nunca mais me lembrei disso outra vez.
- Pois é “Montijo”; quando a vida começa a andar para trás é que as pessoas se lembram de Deus. É assim como quando faz trovões. Depois, passa a tempestade e só se voltam a lembrar quando trovejar de novo.
- Não tinha que morrer. Senão tinha morrido mesmo, não acha? Eu só me lembrei. Mas não pedi nada. Eu nunca acreditei em Deus. O que tiver que ser é... e seja o que Deus quiser...
- Claro, “... e seja o que Deus quiser “Montijo”… ”.
- Vamos mas é dormir ó “Montijo”, porque assim nem sentimos a sede. Amanhã à noite estamos em casa.
O “Montijo” acomoda-se na tenda virando-se de costas para mim enquanto abafa um riso fungado que se lhe escapa pelos dedos que comprimem o nariz.
- Meu Alferes! Tenho a impressão que já está a pingar...
- Não goze “Montijo”, não goze.
- Os gajos piraram. O “Galinhas” então, mesmo sem sede já é marado.
Na mata às sete horas já se dorme. Naquela noite seriam umas nove quando nos dispusemos a tentar descansar, perturbados como estávamos com a falta de água que nos martirizava de uma forma difícil de traduzir por palavras. Os tormentos da sede confundem-nos de tal forma o raciocínio e os sentimentos que o que fica na memória é uma espécie de dor vazia de imagens, cuja recordação traz mal-estar e um enorme desejo de não lembrar.
Duas da madrugada. Em enorme sobressalto agarro-me à espingarda com o “Montijo” em grande alvoroço dentro da tenda.
- Meu Alferes, meu Alferes; porra chove para caraças; o cantil, o cantil!
Uma das características do clima de África é a alternância brusca entre um sol radioso ou uma noite estrelada e uma chuvada diluviana em menos de uma hora, para logo depois tudo serenar.
O alvoroço era indescritível. Inventavam-se mil e uma maneiras de apanhar a água que caía generosamente do céu. Fizemos uma goteira a partir do bico dos ponchos que formavam a tenda e a água corria a fio ali mesmo à nossa frente. Alguns soldados dançavam em grande algazarra à chuva agarrados uns aos outros, perante a escamação do Alferes Chagas que lembrava em vão a necessidade de observância do silêncio e das normas de segurança.
- Eu quero que os turras se f....
Era o tipo de resposta que invariavelmente se conseguia ouvir, numa perfeita loucura que subvertia os conceitos e preconceitos, comandos e hierarquias, que no escuro de uma noite de chuva intensa sofregamente abençoada se misturavam e confundiam.
A água sabia à borracha dos ponchos e trazia um leve travo salobro do suor que se lhe entranhava durante o dia quando transportado às costas dobrado e atado ao saco. E tudo porque ninguém se atreveu a perder as primeiras gotas que caíram e o lavaram de três dias de poeira e transpiração transbordante. A chuva podia terminar de um momento para o outro. O céu escuro não deixava adivinhar a dimensão da chuvada.
Choveu toda a noite. Foram bebedeiras de água e de pragas devolvidas ao sossego dos espíritos saciados da guerra da sede. Qual alambique destilando o melhor álcool, cada cantil sabia melhor que o anterior, depois de bem lavados os telhados da tenda que nos abrigava. Ninguém mais dormiu. Não só porque todos queriam beber até não poder mais, mas também porque a chuva inesperada encharcou tudo, entrando pelas tendas adentro.
Meditativo, o “Montijo” está sentado à porta da tenda de pernas cruzadas e olhar fixo no fio de água que escorre para dentro do cantil.
- Porra meu Alferes! E choveu mesmo. Diz sem tirar os olhos da água que corre límpida para dentro do terceiro ou quarto cantil que enche.
- Agora é que você começa a ir à missa ó “Montijo”.
- Náh! O meu primo era um beato do caraças que até ajudava à missa. Mesmo assim não deixou de se enfiar por uma ribanceira abaixo com uma bebedeira que nem queira saber. Olhe, ainda ficou com menos dentes do que eu.
- Mas ó “Montijo”; isso foi da bebedeira.
- Ó meu Alferes; e Deus naquela altura também estava distraído ou com os copos, não? Ao que consta, Deus não dorme... nem bebe. Só que... sei lá…
Pronto. E assim se tresmalhou mais uma ovelha que se admitiria poder constituir-se num sério candidato ao rebanho de Deus, passada que foi aquela provação de tão grande aperto e sofrimento.
Talvez na próxima, quando Deus e os homens ousarem desafiar as convicções de um “Montijo” que entende que a chuva nem sempre cai quando Deus quer ou manda…/…
P. Cabrita
Excerto do livro “Capitães do Vento” Dezembro de 1970, algures nos Dembos – Norte de Angola
sábado, 16 de maio de 2009
Perdidos na noite
De certeza que ali não seria encontrada população. Ficava fora do limite de segurança definido. Qualquer elemento que ali fosse encontrado seria considerado guerrilheiro ou simpatizante. Não creio que a tropa tivesse por ali passado nos últimos anos. Na melhor das hipóteses talvez só os Flechas, que esses, nunca se sabia por onde andavam. Quando eram lançados numa operação, recebiam da tropa a ração de combate, enterravam-na à saída do kimbo e passavam uma semana ou mais em perseguição dos guerrilheiros. O resultado quase nunca se conhecia. Constava que os perseguiam dia e noite sem serem detectados até que, no momento mais oportuno, atacavam e não deixavam ninguém vivo para contar. Nunca consegui confirmar se isso era verdade. Fazia parte dos segredos da pide.
Verdade era andarem pelo mato durante semanas. Quando regressavam, desenterravam as latas da ração e entregavam-nas à família. Eram recrutados pela pide entre a população de etnia bosquimane, um povo tradicionalmente nómada e auto-suficiente, que sobrevivia naturalmente do que a mata dava. Aliás, contava-se que o ódio que tinham aos guerrilheiros, radicava no facto de a guerra lhes ter imposto uma vida sedentária, alterando-lhes os costumes, em total contradição com o seu ancestral modo de vida. E isso era visível nas cubatas que construíam. Mal atamancadas, com ar de provisório.
O plano para a missão do Silva previa a recolha do grupo três dias depois, num determinado local devidamente assinalado no mapa, exactamente onde findava o risco que definia a picada, sinal óbvio que dali para diante, apenas existia a profundeza da mata africana, virgem, intocada, como parte de um território imenso e selvagem.
A operação de resgate ficara à minha responsabilidade. Dispunha para isso de uma viatura Berliet, vinda de propósito da Neriquinha, já que, no Rivungo, apenas se dispunha de dois Unimogs, dos pequenos.
Ainda assim, dada a dimensão do grupo a recolher, era certo que apenas a Berliet não chegava. A ajuda veio da PSP que dispensou o seu velho Unimog, maior e em melhor estado que os nossos. Partimos por volta da meia-noite. O plano era fazer a viagem durante a noite, de forma a chegar ao local previsto pela manhã do dia seguinte.
Seguimos em direcção a sul, por um percurso já nosso conhecido, do qual saímos, algumas horas depois, virando à direita e penetrando numa zona desconhecida por uma picada pouco marcada, sumida em alguns troços, sinal de que há muito a tropa por ali não andava.
Chovia desalmadamente. O tempo arrefecera e as roupas molhadas aumentavam o desconforto. A noite, densa, enegrecida pela ausência de lua que parecia ter-se mudado para outras paragens, conferia ao ambiente um toque dramático. Só a picada, pouco batida, permitindo um andamento mais ou menos suave, poupava os ossos aos agressivos solavancos.
A berliet seguia na frente, por um troço de picada que corria pelo meio de uma chana não alagada. Atrás, a alguma distância, o pequeno Unimog da PSP saltitava sem se distanciar muito. Camuflada pela noite, uma pequena manada de palancas foi denunciada pela luminosidade dos faróis. Os seus olhos, quando atingidos pela luz, brilhavam tão intensamente no escuro que quase os podíamos contar. De noite, não podiam correr. Quando encadeados, ficavam estáticos e a luz intensa dos faróis baralhava-os.
Dois tiros certeiros deitaram por terra dois dos animais. Mandei avançar a berliet para os carregar. Contudo, a altura considerável da carroçaria e o seu peso exigiram maior força braçal, obrigando a que o unimog que aguardava imóvel na picada se aproximasse. Foram precisos seis homens para conseguir carregar os bichos.
- Será que aqui a picada desapareceu?
Podíamos perfeitamente estar num troço em que o rasto antigo tivesse desaparecido, engolido pela vegetação.
Questionei o guia. Mas a noite parecia tê-lo baralhado. Limitou-se a estender a mão e apontar uma direcção. Seguimos a indicação. Contudo, da picada, nada.
A chuva, intensa, continuava a cair, impiedosa, persistente, grossa, incomodativa.
Parámos. Raciocinámos. Não podia ser. Apenas nos tínhamos afastado uns escassos metros. A picada não podia estar tão longe. Era por ali, algures, perto.
Insisti junto do guia. Avançamos mais um pouco, sem rumo definido.
- Perdemo-nos! Concluí.
A luz dos faróis iluminou, por entre as bátegas grossas, um rasto de pneus, fresco.
- Finalmente! Pensei.
- Este deve ser o rasto que deixámos ao sair da picada para recolher a caça!
Deduzi, esperançoso. Agora era só segui-lo e logo estaríamos de novo no caminho certo.
Estranhei as árvores, tão perto. Quando avançámos pela chana, estavam mais afastadas. Mesmo assim, continuámos.
Rapidamente me apercebi que seguíamos em círculo. O rasto fora feito pouquíssimo tempo atrás. Que sensação estranha. Era como se andássemos atrás de nós mesmos, mas com o nós sempre a fugir, como o cão procurando alcançar a cauda.
Olhei o guia. Até então não soltara palavra. Estava nitidamente desorientado. Perdido.
A chuva aumentara de intensidade. Parecia que o céu se abriu e cismou de nos castigar, mantendo-nos bem encharcados. Sentia a água a escorrer pelas costas. Entrava abundantemente pela gola do camuflado, por debaixo da aba do quico. O poncho deixou de funcionar como impermeável. Apenas nos mantinha quentes.
- Dormimos aqui.
- Continuar nestas condições pode significar estarmo-nos a embrenhar cada vez mais na mata ... andar sem rumo.
Cada um se aconchegou onde pôde, procurando abrigo da chuva. Uns inutilmente debaixo da berliet, já que a carroçaria esburacada não oferecia protecção. Açoitado pelas bátegas intensas, sentei-me encostado a uma árvore procurando minimizar o efeito do dilúvio. Inútil. Acabei por me esticar ao comprido no pequeno declive formado pelo terreno à volta do tronco. Dada a inclinação, a água escorria livremente por debaixo do corpo. Sempre era melhor que dormir numa poça.
Por estranho que possa parecer, adormeci.
Acordei pouco depois. O dia nascia por entre os ramos das árvores. Parara de chover, sinal que dentro de pouco tempo os abrasadores raios solares que sistematicamente se seguiam a grandes borrascas, secariam a roupa, a pele, a boca, a mata, tudo.
As duas peças de caça, responsáveis pela situação, jaziam no fundo da berliet. O calor provavelmente se encarregaria de nos estragar o petisco. Tudo dependeria do tempo que levaríamos a chegar a casa. Abriram-se as palancas e retiraram-se as vísceras. Retardaria a decomposição e durariam mais tempo.
Com o romper da aurora o guia encontrou rapidamente o seu rumo. Afinal apenas estávamos a cinco minutos da picada. Ali tão perto, porém tão longe. Afastada da nossa vista pela escuridão, de nada valeu o estar ali ao lado.
Retomámos o caminho, agora mais endurecido pela chuva e liberto da esgotante e incomodativa poeira, o que permitiu aumentar a velocidade. Chegámos ao destino mais cedo do que esperávamos. A picada foi-se sumindo progressivamente até desaparecer como se fosse água de riacho em areias desérticas.
Conferia com o mapa, deveria ser ali o ponto de encontro.
Mas o Silva não estava. Ninguém estava à nossa espera.
- Será que chegámos muito cedo? Alvitrou alguém.
Mandei avançar mais um pouco, a picada podia ter desaparecido ali mas continuar um pouco mais à frente. Avançámos mais dois quilómetros seguindo a direcção que presumivelmente seria a continuação da picada. Mas nada. Quem a marcou (as picadas não se constroem) ficara-se mesmo por ali. Dali para a frente nunca ninguém passara, certamente.
Esperámos.
- Pode ser que venham a caminho.
Mas nada. Nem sinal. Tentámos o rádio. Sintonizou-se a frequência. Como resposta apenas o irritante barulho de frigideira ao lume.
E agora?
Tentámos o contacto com a base. Não conseguimos ligação. Provavelmente era distância a mais para o moderno Racal TR 28. Aos insistentes “base, base, charlie chama” apenas se obtinha como resposta, o silêncio.
Que fazer? Esperar? Regressar sem o pessoal?
- Será que o doido do Silva levou a missão para além do previsto?
- Se calhar, foram atacados e na sequência da escaramuça, perderam-se.
Resmungou alguém.
- Não, perdidos não!
Lembrei que, com um guia como o velho António, ninguém se perdia. Era homem de confiança e que conhecia a região como a palma da sua mão.
O meio-dia aproximava-se. Conferenciámos. Esperar mais era inútil. Pura perda de tempo.
Iniciou-se o regresso ainda com a esperança que o António levasse o grupo até à picada que nos trouxera ali. Se assim fosse, encontrá-los-íamos pelo caminho. A hipótese fez-nos acelerar a marcha com a ajuda do terreno pouco batido.
Mas nada. Do Silva e do seu grupo não se encontrou sinal. Voltámos ao Rivungo de mãos a abanar.
E agora?
O Alferes Fausto contactou a Neriquinha. Chamar a Força Aérea para a busca era uma hipótese.
Que não. Não se justificava. Ainda era cedo para isso.
Era preferível seguir outra estratégia. Voltar ao local foi a opção
Resultou, o grupo foi encontrado já na picada nossa conhecida, muito acima do local inicialmente combinado. Provavelmente se eu tivesse por ali ficado mais umas horas, tê-los-ia encontrado no caminho de regresso.
O Silva, de facto, por razões que desconheço, avançou mais no terreno do que o previsto. O António, conhecedor da região, concluiu ser preferível progredir para a bifurcação das picadas, mais a norte, já em direcção ao Rivungo e em sentido contrário ao do planeado. Caminhar para o local previamente definido, seria voltar para trás.
Falhara o timing e a bateria do TR 28 que, ao pifar, inviabilizou a comunicação.
Na chegada ao Rivungo o Silva não culpava ninguém. Para ele tudo correra normalmente. Apenas um pequeno percalço deixara os seus homens à beira do esgotamento e com os cantis vazios. Salvara-os as fortes chuvadas que possibilitaram matar a sede com recurso a palhinhas feitas de capim, por onde sorviam a água que se acumulava aqui e ali.
Olhei para o António.
- Então Homem! Pensei que se tivesse perdido!
- Não Furrié, isso comigo nunca aconteceria.
Confidenciou-me depois, como se fosse um segredo, que seria incapaz de pôr em risco a vida dos seus amigos.
Recordo o velho António como um homem bom. Alguém para quem se olha como se fosse um pai. Alguém em quem se confia. Cegamente.
Não. Com ele, certamente ninguém se podia perder.
segunda-feira, 11 de maio de 2009
MABUBAS
Não, ainda não é tempo de começar a contar histórias sobre as Mabubas. Essa é a parte final da saga.
Mas, ando a acompanhar um blog, mantido diariamente por um engenheiro que actualmente trabalha em Angola. Não é do nosso tempo, anda ainda na casa dos 30, mas escreve histórias do quotidiano de Angola. Algumas delas trazem recordações que levam a pedaços da nossa passagem por aquelas paragens.
Um certo dia, o Afonso Loureiro, contou sobre um passeio que fez à Barra do Dande.
Não resisti e num comentário feito nessa história, desafiei-o a andar um pouco mais e ir até às Mabubas.
Fez-me uma surpresa. Foi lá, tirou fotografias, contou a história do que viu e publicou tudo.
Recomendo a leitura. E também, o comentário do Pedro Cabrita que explica por que desapareceu a água da barragem.
O endereço da história é:
http://afonsoloureiro.net/blog/?p=2410
E para quem quiser ver a desolação total, está disponível no Google Earth. Vejam:
http://maps.google.com/maps?q=-8.532+13.696+(Mabubas)&t=k&hl=en&ie=UTF8&ll=-8.534351,13.697698&spn=0.00452,0.006609&z=17&iwloc=addr