Não teve história a nossa saída das Mabubas. O facto de não
reter pormenores convence-me disso. Contudo, recordo-me muito bem de, talvez
estupidamente, ter recordado o dia em que, montados nas viaturas do MVL, saímos
do degredo da Neriquinha e iniciámos aquela empolgante aventura que foi a
grande viagem desde as terras do fim do mundo até ao paraíso de que agora nos
despedíamos. Bem, paraíso apenas por comparação com o inferno que nos serviu de
morada nos primeiros dezoito meses e pouco, ermo do qual ninguém tinha
saudades. Pela parte que me toca, nunca me passou pela cabeça que alguma vez
pudesse voltar àquele quadrado areento delimitado por uma ferrugenta cerca de
arame farpado. Contudo, admitia que, se alguma vez voltasse a Angola, um dos primeiros
locais que procuraria visitar seria certamente a barragem e a camarata,
provavelmente em ruínas, onde se situava o quarto que partilhei com o Morais e
que decorámos como se fosse a nossa casa.
Mais uma vez encafuei as minhas tralhas dentro da mala,
cuidei de verificar que não deixava nada para trás e arrumei tudo o melhor que
pude numa das viaturas que, no largo frente ao comando, aguardavam o momento de
nos levarem para a cidade. Acomodei-me num canto qualquer, disse adeus a quem
ficava e aguardei sem pressa a hora da partida.
As viaturas subiram a rua, lentamente. Passaram frente à
messe, depois pelo boteco do Manolo, o barracão do cinema e finalmente a
cancela de controlo já guardada por soldados acabados de tomar o nosso lugar. A
guerra seguia em frente, naquela sistemática substituição de contingentes, uns
a chegar outros a partir numa permanente adaptação a novos lugares e novas
missões. Para os recém-chegados, a acalmia necessária para lamber as feridas da
alma, para nós, o adeus definitivo aos quartos de sentinela, às rondas
nocturnas e à limpeza das armas, arrumadas a um canto desde que libertos da
savana.
A viagem até Luanda foi curta e sem surpresas. Era uma
estrada normal como todas as estradas. Nos últimos oito meses havíamo-la
percorrido inúmeras vezes e era certo que nada iria acontecer que merecesse ser
memorizado. Passámos pelo posto de controlo do Sassa, logo ali abaixo, antes do
Caxito, bordejámos os canaviais da Tentativa onde uma máquina preparava a terra
para nova plantação, atravessámos Porto Quipiri, o desvio para a Barra do
Dande, depois Sassalemba, os campos de algodão e de mandioca e, em pouco tempo,
logo depois de Kifangondo, iniciou-se a descida em direcção ao Cacuaco onde o
bando de flamingos cor‑de‑rosa, catando a praia, parecia nunca dali ter saído passeando-se
pachorrentamente como sempre os vi fazer nos últimos meses em que me habituei a
mirá-los. Aquela seria a última vez; nunca mais os tornaria a ver.
Penetrámos o trânsito citadino. Nada a que já não
estivéssemos habituados. Os últimos tempos nas Mabubas, com as frequentes idas
e vindas a Luanda, fizeram-nos esquecer o silêncio da enorme e desértica
savana. Mas esta última viagem materializava o regresso definitivo à
civilização, ao bulício da cidade, ao trânsito, com tudo o que isso tem de bom
e de mau. Para mim, contudo, representava finalmente a fuga às agruras e aos
tratos de polé infligidos por uma natureza hostil. Agora sim, a mata ficava
para trás e a guerra, que sentimos ir desaparecendo das nossas vidas no sossego
das Mabubas, chegara definitivamente ao fim.
Entrámos no Grafanil, uma espécie de antecâmara para o inferno das matas e o stress da guerra para quem chegava a Angola. Passáramos por isso dois anos e quase dois meses atrás. Mas, para nós, que chegávamos ao fim daquela malquista missão, representava o limiar da civilização e o recomeço da vida que ficara parada no tempo.
Entrámos no Grafanil, uma espécie de antecâmara para o inferno das matas e o stress da guerra para quem chegava a Angola. Passáramos por isso dois anos e quase dois meses atrás. Mas, para nós, que chegávamos ao fim daquela malquista missão, representava o limiar da civilização e o recomeço da vida que ficara parada no tempo.